"Há mais de vinte anos - rigorosamente, desde "Dina e Django" (1981), Que Solveig Nordlund vem falando de filhos. Nesse filme era uma jovem que se deixava enredar pelo romantismo da fotonovela e acabava a cometer um crime. Em "Até Amanhã, Mário"(1993) e "Comédia Infantil" (1997), eram miúdos de risco, em cenários sociais devastados. Em "Aparelho Voador a Baixa Altitude" 2001), era um próximo futuro em que as crianças nasciam mutantes e a procriação se tornava interdita. Nesse caminhar, chegou agora Solveig Nordlund a um ponto extremo: "A Filha" é uma história de desespero suicidiário, lá onde os fantasmas de incesto e da violência se convocam.
O filme começa em ambiente reconhecível: uma gala de televisão, o seu protagonista, produtor de "reality shows" escandalosos de sucesso vai à Madeira receber um prémio, entre flashes de fotógrafos e a pressão libidinosa de uma mulher que percebemos ser sua amante. Mas há uma ameaça no ar: o nosso homem recebe uma mensagem da filha no telemóvel, a urgir que venha para casa ou não a verá mais... Ele faz todos os esforços para vir, mas acaba por ceder à chantagem da amante. E quando chega a Lisboa a filha desapareceu de facto. Entra em cena uma jovem candidata a apresentadora de um novo "reality show" a ser produzido. Uma jovem disposta a tudo para conseguir a fama. Disposta a mentir-lhe dizendo onde a filha está, disposta a tomar o lugar da própria filha...
Não há no cinema português memória de um filme assim. Um filme que parte de um quotidiano banal para um universo concentracionário onde a crueldade e a alienação tomam conta. Uma crueldade fria, lenta, sistemática, onde se cavalgam em rota de colisão um pai atormentado e abusador e uma rapariga que acredita até à insanidade na sua capacidade de manipulação. Uma alienação em que a existência oscila nos seus valores mais essenciais - não há um único personagem eticamente sustentado em todo o filme, todos se movem sem padrões que não sejam os do egotismo - e em que a loucura do protagonista é apenas um desvio mais pronunciado a uma desnormalização generalizada. Há um desencanto cavado no olhar de Solveig Nordlund, o mundo corrompeu-se sem esperança. Na obra da realizadora aflora a sua matriz escandinava, mais de trinta de mediterraneidade não apagaram os genes socioculturais em que se formou."
Texto in Expresso, Jorge Leitão Ramos
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