Stéphane Mallarmé é hoje reconhecido como um dos mais importantes poetas franceses da segunda metade do século XIX. A sua obra é normalmente designada como obscura e hermética, mas também como profundamente inovadora e experimental onde os jogos de linguagem e a musicalidade das palavras desempenhavam um papel preponderante. Embora não fosse reconhecido na altura como alguns dos seus contemporâneos, a sua influência em movimentos artísticos do século XX como o futurismo e mesmo o dadaísmo foi amplamente reconhecida posteriormente. O seu poema Un Coup de Dés Jamais N'Abolira le Hasard (Um Lance de Dados Jamais Abolirá o Acaso) publicado em 1897 é um extenso «ensaio filosófico» justamente considerado como um precursor da poesia moderna, naquilo que se convencionou chamar de poesia tipográfica, ou seja, com verso livre e intensa musicalidade das palavras.
Foi a esse poema que Danièle Huillet e Jean-Marie Straub recorreram para realizarem a curta metragem de pouco mais de dez minutos, Toda a Revolução É um Lance de Dados. O título inspira-se numa frase do historiador e filósofo francês Jules Michelet (1798-1874) e é dedicado a Franz Van de Staak, Jean Narboni e Jacques Rivette «entre tantos outros». A concepção do filme é muito simples e bastante comum na sua forma de realizar. Um grupo de nove pessoas sentada na relva de um jardim de Paris recitam o referido poema de Mallarmé. As vozes nunca se sobrepõem, mas a apresentação do poema parece ser relativamente aleatória. Não há uma repartição equitativa nas intervenções dos recitantes. Nalguns casos apresentam excertos relativamente extensos do poema, noutros, apenas uma ou duas palavras. Apesar deste cariz aparentemente casual, percebe-se que, tal como em todos os seus filmes, houve um intenso trabalho de preparação dos actores. Mas talvez o mais interessante e enigmático de todo o filme é que antes e após a recitação do poema, são apresentadas imagens introdutórias e conclusivas. Se estas consistem num plano fixo e distante da câmara relativamente às ruas e edifícios de Paris, já as primeiras apresentam imagens do monumento aos mortos na insurreição que ficou conhecida como A Comuna de Paris de 1871. E se o poema recitado e objecto do filme não é obviamente um poema político, porquê esta associação com o episódio simultaneamente glorioso e trágico da Comuna de Paris?
«A Paris operária, com a sua Comuna, será para sempre celebrada como a gloriosa precursora de uma sociedade nova. A recordação dos seus mártires conserva-se piedosamente no grande coração da classe operária. Quanto aos seus exterminadores, a História já os pregou a um pelourinho eterno, e todas as orações dos seus padres não conseguirão resgatá-los», escreveu Karl Marx sobre os acontecimentos da Comuna d Paris.
Na minha interpretação, a junção de dois factos (A Comuna e o poema de Mallarmé) sem nenhuma aparente ligação, só pode ser estabelecida pelo elo comum de ambos (cada um a seu modo) serem formas de ruptura e apelos à transformação. No primeiro caso, social, no segundo, estético. O que significa que se toda a revolução é um golpe de dados, ela também deve ser entendida como uma transformação radical a que nada pode ser imune, sejam as velhas estruturas da sociedade de classes, sejam as velhas fórmulas anquilosadas do conformismo na criação artística.
Franco Fortini foi um poeta, ensaísta e tradutor italiano de inspiração marxista nascido em 1917 e que faleceu em 1994. A sua vida teve um percurso sinuoso: filho de mãe cristã e pai judeu, sofreu as agruras do fascismo na sua juventude, foi soldado, afastou-se da guerra e exilou-se e voltou a Itália para se juntar aos guerrilheiros que combateram a ocupação alemã. Depois da libertação foi professor secundário e universitário, sempre com uma postura marcadamente de esquerda, embora se tivesse afastado de posições mais ortodoxas após a invasão soviética da Hungria, que, aliás, vivamente repudiou.
Fortini/Cani é o primeiro filme de Huillet e Straub falado em italiano abrindo caminho para que os cineastas se radicassem neste país. Trata-se literalmente de filmar um livro, neste caso, Os Cães do Sinai escrito por Fortini pouco depois da Guerra dos Seis Dias que opôs Israel ao mundo árabe e que lhe permitiu ocupar territórios do Egipto, da Síria e da Jordânia. Ao contrário do que normalmente sucede em cinema, não se trata de adaptar uma obra literária como eles próprios já tinham feito no início das suas carreiras com dois livros de Heinrich Boll. Tanto mais que Os Cães do Sinai não é um romance, mas sim um ensaio, o que torna mais desafiante a possibilidade de o filmar. Sendo então o livro o elemento central do filme, importa analisar a forma como os cineastas o transportam para o ecrã. Primeiro há em off uma voz que vai lendo o livro ao mesmo tempo que vemos paisagens naturais italianas, filmadas em longos travellings desprovidas de som, excepto um outro ruído natural; depois vemos o próprio escritor a ler excertos da obra sem nunca fitar directamente a câmara; por vezes reina o silêncio absoluto e a câmara incide directamente sobre as páginas do livro. Existe assim uma espécie de banco de imagens (que nalguns casos recorre mesmo a artigos de jornal) com que a dupla de realizadores vai «encenando» a leitura do livro e que foi, tal como é seu apanágio, minuciosamente ensaiada. Às paisagens naturais sucede-se uma cerimónia religiosa e na parte final, algumas imagens da cidade de Florença dos anos 70. No início do livro Fortini escreveu que não há cães no deserto do Sinai (ocupado ao Egipto durante a Guerra dos Seis Dias e devolvido no final da década de 70 depois do acordo de Camp David). O objetivo é claramente político: denunciar a política agressiva do estado de Israel perante os seus vizinhos árabes, apoiado pelas grande potências internacionais e com a conivência dos media e de grande parte dos intelectuais europeus num racismo anti-árabe dificilmente disfarçável. Numa segunda parte o livro torna-se autobiográfico na medida em que relata a forma como o escritor, ainda então uma criança, assistiu ao crescimento do anti-semitismo durante o fascismo italiano e as perseguições de que o seu pai foi alvo na cidade de Florença. Este período foi igualmente muito bem descrito num dos derradeiros filmes de Vittorio de Sica, O Jardim dos Finzi-Continis que relata a perseguição de judeus em Ferrara nos final dos anos 30. Na parte final, o livro regressa ao tempo presente a partir da ideia da formação do estado de Israel e de como ele serviu para lavar a consciência burguesa das grandes potências e da sua indiferença perante o Holocausto provocado pelos nazis e de como o próprio estado de Israel atraiçoou os seus princípios originais de pluralidade e de abrangência, tornando-se cada vez mais num estado dos judeus, numa regressão a uma visão medievalista teocrática. E aborda também a forma como o racismo anti-semita do passado não pode ser combatido com o sionismo anti-árabe e a forma como estes povos têm sido sistematicamente oprimidos pelo imperialismo internacional e pelos governos corruptos dos seus próprios países.
Do ponto de vista estético estamos em presença de um exercício primoroso. Se a propósito de Moisés e Aarão, o seu filme anterior, tínhamos afirmado que a ópera nunca tinha sido filmada desta forma, Fortini-Cani filma um livro de um modo totalmente anti-convencional. Mas, talvez sejam os aspectos políticos que aqui se impõem. Mais de 50 anos depois da Guerra dos Seis Dias e mais de 40 após o filme, a situação em nada se alterou naquela região do planeta, ou, em certos aspectos, até se agravou. O que, para além da actualidade quer do livro, quer do filme, dá razão às palavras certeiras de Straub quando afirmou que o que o verdadeiramente o interessava «era a cólera de um homem já idoso, filho de pai judeu e mãe cristã e que teve a coragem, enquanto intelectual italiano, de escrever um panfleto».
Depois da curta Introdução a «Música de Acompanhamento para uma Cena de Cinema», Huillet e Straub regressam a Schoenberg no seu filme seguinte, Moisés e Aarão. Vinte e dois anos depois ainda voltariam ao compositor austríaco com o filme que adapta a ópera num único acto, Von Heute auf Morgen. Esta insistência no compositor prende-se mais com razões estéticas do que políticas: Schoenberg foi um dos grandes inovadores musicais de todo o século XX e foi sempre uma personalidade solitária, avessa a modas e a palcos mediáticos (mesmo os da sua época) características que são partilhadas pela dupla de realizadores.
Moisés e Aarão transpõe para cinema a ópera homónima. Inicialmente seria uma ópera em três actos, mas apenas foram escritos e compostos os dois primeiros. Schoenberg destruiu algumas ideias comuns em matéria de composição. Uma delas é que a música deve ser escrita anteriormente ao libreto. Neste caso específico, havia ideias específicas em termos de libreto para o terceiro acto, mas que nunca foram musicadas. A ópera baseia-se de forma livre em passagens do Exodus do Antigo Testamento que descreve a fuga dos judeus do Egito em busca da Terra Prometida. Schoenberg gosta particularmente da figura de Moisés e do seu radicalismo sem compromissos, da adoração de um Deus que não se vê e na visceral aversão às cedências do irmão (Aarão) de fazer o povo adorar um bezerro de ouro. O judaísmo terá, aliás, um papel preponderante na vida e nas concepções do compositor que terá afirmado: «finalmente aprendi a lição que me foi imposta no ano passado, e não vou esquecê-la. Não sou nem alemão nem europeu, e talvez nem sequer humano, mas sou judeu». O que Straub e Huillet fizeram foi transformar em teatro filmado o pequeno terceiro acto (que corresponde à acusação de Aarão pelo seu irmão Moisés) e esta é a única parte do filme que não é cantada. Deve estabelecer-se de imediato uma diferença de fundo. Normalmente os cineastas filmam óperas no contexto em que são executadas, ou seja, numa sala de concertos. Moisés e Aarão não é uma ópera filmada, mas um filme sobre uma ópera. Foi filmado na Itália e no Egito, sempre em cenários naturais, em som directo e sem actores a serem dobrados por cantores. A música e os cantores são os mesmos que surgem numa gravação da ópera numa edição da Philips datada de 1974. Os cenários naturais, do céu às pedras e montes, têm um papel crucial no desenvolvimento do filme, havendo mesmo uma parte, na fase final do segundo acto que foi filmada à noite. O que os cineastas fizeram «foi aquilo que ninguém faz: procurar as nervuras na partitura para saber onde será possível intervir, mudar de plano, começar um bloco sonoro e interrompê-lo» (palavras de Straub). O filme tem momentos de beleza transbordante e de uma espiritualidade surpreendente (sobretudo para os cineastas a quem não se conhece qualquer crença de natureza religiosa), bem expressas no monólogo inicial (acto I, cena I) de Moisés em que este fala com Deus. Não são as imagens que devem despertar sentimentos nos espectadores, mas sim, elas próprias, já estão impregnadas de sentimentos.
Há aqui um paralelismo na actividade de desconstrução: embora incompleta Moisés e Aarão é justamente considerada um momento fundamental de desconstrução da ópera clássica através da introdução dos conceitos estruturais do dodecafonismo; Straub e Huillet filmaram-na de forma magistral transformando a ópera num filme rompendo com todos os cânones tradicionais de fazer cinema.
PS: A única nota política consiste na dedicatória do filme ao estudante de cinematografia Holger Meins que se juntou ao Exército Vermelho no princípio de 1970 e que acabou por morrer de greve de fome na prisão. Por esse motivo a dedicatória chegou a ser alvo de censura por parte das autoridade alemãs.
Esta curta metragem de pouco mais de quinze minutos parte de uma partitura escrita por Arnold Schoenberg para um filme imaginário sobre o tema «Perigo Ameaçador Angústia Catástrofe» e faz parte de um conjunto de curtas metragens sobre compositores encomendada pelo canal de televisão da República Federal Alemã, Süd-West-Funk. A sua estrutura consiste numa pequena introdução (a cores) feita por Jean-Marie Straub a Schoenberg, à peça em si e a sua relação de amizade com Kandinsky, a que se segue (a preto e branco) a leitura de uma carta que o compositor enviou ao pintor; na segunda parte, Danièle Huillet faz uma pequena introdução ao discurso de Brecht no Congresso Internacional de Escritores em Defesa da Cultura em 1935, a que se segue a leitura de excertos do mesmo, mantendo-se a mesma ordem de relação entre a cor e o preto e branco; na parte final (e de novo a preto e branco) desfilam imagens de guerra, particularmente de bombardeamentos. A música da partitura une todos os segmentos.
A longa carta de Schoenberg a Kandinsky tem como pretexto o convite que o pintor lhe endereçou para leccionar na Bauhaus e que foi recusado. Schoenberg é um dos mais revolucionários compositores de todo o século XX e a admiração e amizade entre os dois era mútua. Schoenberg, austríaco residente em Viena era judeu e na sua obra está presente abundantemente a sua origem. As razões para a sua recusa em aceitar o convite prendem-se com a onda crescente de antissemitismo que varria a Alemanha nos anos 20 e que teria o seu triste apogeu na década seguinte. Schoenberg denuncia a escalada de Hitler e dos seus apaniguados e da tentativa de fazer dos judeus o bode expiatório da terrível situação vivida no país após a I Guerra Mundial. Esta situação de perseguição e de ódio racial está aliás muito bem documentada em filmes como Berlin Alexanderplatz de Fassbinder ou O Ovo da Serpente de Bergman. Para o compositor a consequência foi o exílio na década seguinte quando os nazis entraram na Áustria. O que é curioso é que extra-musicalmente, Schoenberg não era conhecido por ser um homem particularmente empenhado do ponto de vista político nem ser conotado com ideias de esquerda. Ficou célebre o seu misticismo e o seu carácter supersticioso do qual se contam inúmeros episódios. É certo que as suas composições dodecafónicas e atonais foram consideradas arte degenerada pelo nazismo e o seu percurso acabou por ser similar ao de outro vienense judeu seu contemporâneo, Freud, também ele acusado de ser um defensor de teorias degeneradas. Mas, possivelmente a falta de enquadramento político adequado na crítica ao nazismo levou a que o referido discurso de Brecht tenha sido incluído no filme. A tese central de Brecht, remete para a visão marxista sobre o fascismo, ou seja, de que o fascismo é o recurso de que a burguesia se serve para travar a revolução dos trabalhadores. Assim, enquanto o capitalismo se mantiver, o perigo do fascismo (a ditadura terrorista do capital financeiro) é real. Logo a luta contra o fascismo enquanto regime político é indissociável da luta contra o capitalismo enquanto sistema económico que o viabiliza. Se isto é verdade na década de 30 com regimes fascistas implantados na Alemanha, em Itália, em vários países da Europa central em Portugal e em Espanha depois da Guerra Civil), não deixa de o ser em 1972 quando o filme foi realizado e mais ainda nos dias de hoje, por razões facilmente compreensíveis a quem esteja atento ao mundo que o rodeia.
Straub considerava Schoenberg o mais importante compositor alemão desde Bach e expressou a sua admiração por ele não só neste filme, como no seguinte, Moisés e Aarão baseado numa sua ópera que ficou incompleta. Os realizadores expressam também a sua admiração por Brecht a quem recorreriam com frequência ao longo da sua obra. Por todas as razões expostas, esta Introdução a «Música de Acompanhamento para uma Cena de Cinema» parece ainda mais actual quase cinquenta anos depois do que quando foi realizado, tendo em conta a forma como os novos fascismos vão surgindo um pouco por todo o lado.
No conjunto da vasta obra de Brecht, Os Negócios do Senhor Júlio César ocupa um papel singular. Trata-se de um romance que ficou inacabado, escrito na Dinamarca, precisamente quando o dramaturgo se encontrava exilado, meia década depois de Hitler ter chegado ao poder. O romance só foi publicado postumamente e não é, obviamente, uma das suas obras mais conhecidas. Mas foi a partir deste texto que Straub e Huillet fizeram uma nova incursão na história da Roma clássica.
Quando estava a ver o filme, lembrei-me de um célebre poema de Brecht que, em boa parte, sintetiza de forma admirável a concepção materialista da história e que se aplica muito a este texto.
«Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruída,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
Só tinha palácios
Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos.
O jovem Alexandre conquistou as Índias
Sozinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos
Quem mais a ganhou?
Em cada página uma vitória.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?
Tantas histórias
Quantas perguntas»
O romance analisa com alguma minúcia e um estilo incisivo e irónico, a ascensão de Júlio César e a forma como atingiu, expandiu e consolidou o seu poder imperial. Nas próprias palavras de Brecht, «Júlio César foi o primeiro político que tratava os homens de negócios espanhóis não como espanhóis, mas como homens de negócios». Estamos ainda longe do capitalismo moderno, mas já aqui o dinheiro e o pragmatismo a que ele sempre se associa, tende a substituir as ideologias convencionais. Júlio César entendeu-o de forma admirável na sua ascensão ao poder. Os negócios de classe estão acima de tudo e são eles que determinam a escravatura, as opções políticas e as guerras. Aparece-nos assim o mais célebre imperador romano completamente despojado da aura mítica com que uma certa história o quis vestir. É um homem que provém de uma família abastada romana que pertencia ao partido democrata, supostamente para defender os mais pobres da cidade, mas que se moveu sempre por uma descomunal ambição de conquista, que, aliás, viria a materializar. Por isso, estamos em presença de uma figura hábil, oportunista e sem escrúpulos, mestre na arte da manipulação dos descontentamentos populares, que posteriormente aproveita para satisfazer os seus interesses pessoais. O romance apresenta-nos quatro
depoimentos sucessivos de um banqueiro, um camponês-soldado, um jurista e um escritor que vão narrando as suas visões de Júlio César e as suas vivências com o imperador. Os depoimentos são prestados a um jovem investigador do século XX contrastando o facto de cada um deles (os que depõem e o que investiga) vestirem as roupas das respectivas épocas. Entre os depoimentos, existem longos planos do investigador a conduzir o seu carro no tortuoso e congestionado trânsito romano da década de 70. Este aspecto, particularmente enigmático e desconcertante, remete-nos para a ideia que já tinha sido expressa em Othon de que os acontecimentos históricos não se podem nem devem confinar ao passado, antes se reproduzem noutras épocas, frequentemente com uma actualidade surpreendente.
No 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx afirmou que a história se repete sempre pelo menos duas vezes: a primeira como tragédia, a segunda como comédia. Na ambição desmedida pelo poder, na manipulação sem escrúpulos, no oportunismo e militarismo, Júlio César poderá ser facilmente comparado a qualquer ditador moderno, particularmente a Hitler que estava no seu apogeu no final da década de 30. É a este contínuo histórico que Straub e Huillet recorrem em grande parte dos seus filmes para ilustrar a forma como acontecimentos e personalidades históricas se reproduzem no presente. Ainda recentemente o professor Fernando Rosas alertou para o facto das semelhanças existentes entre a ascensão actual da extrema direita um pouco por todo o lado e o trágico avanço do fascismo nas décadas de 20 e 30 do século passado. É a este contínuo histórico, a estas Lições de História, que Brecht primeiro e Straub e Huillet depois, recorrem de forma exemplar e com o brilhantismo habitual reservado à genialidade.
Othon é o primeiro filme a cores de Straub e Huillet (que desta vez também assina a realização) e a sua segunda longa metragem. Em muitos aspectos é também a sua primeira obra em que aparecem de forma vincada algumas das características da sua obra posterior: o tom vincadamente teatral e o mergulho no mundo clássico a que regressariam frequentemente, desta vez, através da adaptação da tragédia de Pierre Corneille (1606-1684), Othon, uma das suas obras mais tardias e menos conhecidas. Straub dedicou o filme a todos os falantes da língua francesa que não tiveram o privilégio de conhecer a obra de Corneille, propondo que desta forma o escritor tivesse uma audiência mais larga. O verdadeiro título do filme é Les Yeux ne veulent pas en tout temps se fermer, ou Peut-être qu'un jour Rome se permettra de choisir à son tour, dois versos da tragédia, embora tivesse sido o nome da própria tragédia que tivesse prevalecido.
A tragédia original de Corneille situa-se no período do Império Romano, mais precisamente no ano 69 D.C. Galba o imperador romano aproxima-se do fim da sua vida e hesita na escolha do seu sucessor, ao mesmo tempo que se vão sucedendo jogadas de bastidores entre aqueles que o influenciam no sentido de se perfilarem de forma mais favorável para a sua sucessão. Um dos mais temerários é Othon, que não sendo um dos favoritos de Galba, é, no entanto, um dos mais hábeis na arte de manipular as peças que lhe permitam aceder ao poder. Embora se esteja ainda naquilo que se convencionou chamar de apogeu do Império Romano, os sinais de deterioração começam a notar-se, ainda que de forma não facilmente perceptível. A forma de Straub e Huillet transporem a tragédia para o cinema é absolutamente radical. Em momento algum podemos dizer que estamos na presença de uma adaptação romanesca que é comum relativamente às obras literárias. O que a dupla de cineastas faz (e voltaria a repeti-lo variadas vezes ao longo da sua carreira) é pôr os actores a recitar o texto na íntegra. A tarefa é árdua, uma vez que a tragédia é composta por versos alexandrinos, extremamente trabalhados, quer na sua forma gramatical, quer na sua forma fonética. O resultado é estarmos na presença de um filme feito de palavras. Os momentos de silêncio são raros, os monólogos frequentemente sobrepõem-se aos diálogos, embora nunca exista a sensação de que estes não existam. As personagens «conversam» umas com as outras, mas nunca se interrompem. Os movimentos dos actores são escassos, muitas vezes aparecem de forma inopinada na tela sem se fazerem anunciar, os planos são longos e quase sempre focados nos rostos dos actores. Estes, como se tornará num hábito nos filmes da dupla, são amadores e muitos deles nem têm o francês como primeira língua, o que gera uma notável confusão de sotaques. Othon foi filmado no Monte Palatino e na vila Doria-Pamphilj a partir de uma autorização conseguida junto do município romano por Alberto Moravia e Laura Betti a quem o filme é dedicado, para além do próprio Corneille. E embora os actores estejam vestidos com trajes da época, o enquadramento de fundo é o da Roma actual, com os seus edifícios modernos e o seu fluxo constante de tráfego automóvel. Parece que o propósito é bem claro: Othon une três épocas distintas, ou seja, o período do Império Romano em que a acção decorre, o século XVII em que foi escrito e o final da década de 60 do século XX em que foi filmado. Tratando-se de uma tragédia de cariz essencialmente político, o seu conteúdo transcende tempos e lugares. A luta desenfreada pelo poder, a manipulação através de jogos de bastidores, a ambição desmedida, a exploração de sentimentos alheios para benefício pessoal, não são apanágio de uma determinada época, antes atravessam todas como se fossem uma marca indelével da sociedade de classes.
Este universalismo da mensagem sobre uma clique da classe dominante e dos seus jogos de poder é profundamente pedagógica. Straub achava que o filme poderia ser exibido nas fábricas e que seria facilmente compreendido pela classe operária e ajudá-la na sua tarefa de transformação da sociedade. Descontando os excessos revolucionários próprios da época e de que os cineastas (felizmente!) nunca se afastaram, percebe-se que a escolha da tragédia de Corneille não foi arbitrária, uma vez que ela tem uma vitalidade enorme que pode ser perfeitamente transposta para a actualidade.
Legendas em inglês.
A primeira longa metragem de Huillet e Straub foi um projecto alimentado e consolidado ao longo de dez anos até poder ser finalmente concretizado. A dupla tinha um conjunto de ideias precisas e não abdicava da sua materialização no filme o que implicava custos elevados. Para isso foram necessárias árduas demandas para que tudo pudesse ficar como tinha sido idealizado.
O projecto era fazer uma biografia semi-ficcional sobre Bach a partir dos relatos da sua segunda mulher, Anna Magdalena Bach. Este retrato autobiográfico não abrange a totalidade da vida do compositor, mas apenas o período posterior ao seu casamento. Aliás o filme não se centra em aspectos peculiares da sua vida a qual, ao que parece, não foi especialmente entusiasmante, Os relatos, feitos em voz neutra, revelam-nos as constantes deambulações do compositor para ganhar a vida, oferecendo os seus préstimos ou sendo solicitado pelos diversos nobres que governavam as diferentes regiões da Alemanha quer em encomendas musicais, quer em locais e condições de leccionação ou de outros empregos. As palavras não são muitas e os diálogos são quase inexistentes. Sobra então uma apresentação tão extensa quanto possível da genialidade de Bach, sendo as palavras proveitosamente substituídas pela música, pelo que não será descabido dizermos que estamos em presença de um filme musical. São excertos (na maioria muito pequenos) de vinte e cinco obras suas, preferencialmente tocadas por instrumentos da época e com trajes e em espaços da primeira metade do século XVIII. O rigor chega ao ponto de apresentar partituras da época escritas pelo próprio Bach. No tom de sobriedade e rigor que caracterizará toda a sua filmografia posterior, não é de estranhar que a generalidade dos actores sejam músicos com destaque para o notável cravista e maestro Gustav Leonhardt.
Visto à distância de meio século, este ainda é hoje considerado o filme mais emblemático de Huillet e Straub, provavelmente o seu mais conhecido e popular. Alguns dos mais indefectíveis seguidores consideram-no um filme menor, acusando-o de convencionalismo. Na minha opinião, não têm razão. O filme é muito simples, com uma estrutura narrativa (se é que ela existe) linear e sem aquelas ambiguidades argumentativas típicas dos seus filmes posteriores e que dão azo a reflexões e opiniões frequentemente desencontradas. No entanto, se pensarmos de como as abordagens biográficas são feitas no cinema mainstream e a compararmos coma Crónica de Anna Magdalena Bach, percebemos a imensidão que as separa. Quando analisamos, por exemplo a biografia de Mozart feita por Milos Forman (para nos atermos estritamente a grandes compositores musicais) percebemos a diferença entre a exterioridade e a interioridade. Enquanto espectadores, vemos Amadeus como um filme sobre um compositor da segunda metade do século XVIII, mas, em bom rigor, nunca saímos, enquanto espectadores, do final do século XX. Em contrapartida, em Anna Magdalena Bach, a perspectiva que nos é dada pelos realizadores e que se transmite a quem vê o filme, é um mergulho completo na época que retrata. Não apenas entramos no universo da música de Bach. Agora também fazemos parte dele.
São menos de vinte e três minutos que marcam uma rara incursão de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet numa história de amor. Na mesma curta metragem surgem condensados a adaptação da peça de Ferdinand Brückner, Krankheit der Jugend de 1928, misturada com três poemas do poeta espanhol do século XVI Juan de la Cruz e com passagens musicais do Ascension Oratório de Bach.
Apesar da sua curta duração é um dos filmes mais complexos da dupla e o primeiro em que se sente a mistura, frequentemente surpreendente, mas nunca aleatória, de referências artísticas muitos diversificadas. Basicamente é composto por três partes distintas: numa primeira parte, sem palavras, acompanhamos um longo travelling nocturno sobre as ruas de Munique e os seus bairros de prostituição; a segunda é filmada num longo take de 11 minutos dentro de uma única divisão de uma casa e onde se sucedem os diálogos e as personagens a uma velocidade vertiginosa, quase numa mínima representação teatral em que as diversas cenas são separadas por breves momentos em que o ecrã fica negro; e uma terceira parte mais rápida e fluida que corresponde ao casamento da actriz e ao desenrolar da cena final que conduz ao assassinato do proxeneta. Nas palavras do próprio Straub, O Noivo, a Actriz e o Proxeneta é um olhar sobre a decadência da civilização ocidental. A complexa estrutura narrativa não ofusca um argumento particularmente simples: uma mulher mantida na prostituição de rua que só enriquece um proxeneta sem escrúpulos, apaixona-se por um homem e através do casamento entre ambos, vê a hipótese de abandonar o tipo de vida que já não quer manter. O proxeneta tenta retaliar e impedir que os seus lucros desapareçam e acaba por ser baleado na parte final do filme. Mas, mais importante do que uma sinopse do argumento, interessa particularmente a forma como o mesmo é apresentado e que já acima foi referido e as ilações que dele podem ser extraídas. Não é exagerado dizer-se que todos os filmes de Straub e Huillet, independentemente do seu conteúdo, devem ser submetidos a uma leitura política radical, aliás de acordo com as convicções ideológicas dos cineastas. A situação de aviltamento a que a mulher é sujeita forçada a prostituir-se e a ser explorada por um proxeneta, é uma metáfora óbvia à degradação do sistema económico capitalista e às situações de humilhação e desigualdade a que os mais pobres são sujeitos; mas o facto da mulher ser capaz de encontrar uma forma de se libertar, é uma metáfora sem ambiguidades à destruição do próprio sistema e à possibilidade da construção de um mundo novo, tal como a mulher foi capaz de o fazer na sua vida particular. Este acto de libertação prolonga de forma coerente o filme anterior, Não Reconciliados e o seu subtítulo: Ou Só A Violência Ajuda Onde A Violência Reina. A revolução é a única forma de pôr fim à decadência da civilização ocidental. O que é notável, é que a obra posterior de Straub e Huillet demonstrou que não estamos perante um revolucionarismo circunstancial do final da década de 60 e das chamas provocadas pelo Maio de 68. A obra posterior espalhada por várias décadas, demonstra que a opção ideológica e estética nunca foi renegada.
Realizado no mesmo ano que Crónica de Ana Magdalena Bach, O Noivo, a Actriz e o Proxeneta não é um filme menor apesar da sua curta duração. Hanna Schygulla e Rainer Werner Fassbinder, ainda longe do protagonismo que alcançariam posteriormente no cinema alemão, são dois dos actores constantes do elenco, naquele que segundo o texto da Cinemateca é o mais comovente de todos os filmes de Straub e Huillet.
O segundo filme de Straub e Huilet volta a ter uma duração pouco convencional (cerca de 50 minutos) e baseia-se, tal como Machorka-Muff, num romance de Heinrich Boll. Embora a realização seja apenas creditada a Jean-Marie Straub, mais uma vez se pode falar de um trabalho feito em dupla, embora só a partir da década seguinte, oficialmente a direcção dos filmes fosse assinada por ambos. Recebeu o subtítulo Ou Só A Violência Ajuda Onde A Violência Reina (citando uma frase de Brecht) e foi estreado extra-concurso no Festival de Berlim de 1965 onde provocou uma forte celeuma.
Nas palavras de Straub trata-se de uma espécie de filme-oratório que narra «a história de uma frustração, a frustração da violência, a frustração de um povo que falhou a sua revolução de 1848 e que não conseguiu livrar-se do fascismo.» Nas suas palavras houve a pretensão de tentar eliminar, tanto quanto possível, qualquer conotação histórica imediata. Ao longo dos cinquenta minutos de duração, encontramos uma narrativa fragmentada, polvilhada por um sem número de personagens onde o tempo é frequentemente ludibriado, como se a sequência narrativa não fosse realmente o mais importante. Ou seja, não há em Não Reconciliados uma vontade deliberada de contar uma história, mas apenas de encontrar um fio condutor que passe pelas acções e desenvolvimento do pensamento político das diversas personagens. Não é por acaso que na pesquisa que fiz para a elaboração deste texto, vi sinopses muito variadas, algumas das quais se parecem estar a referir a filmes completamente distintos. Por isso, mais do que procurar elaborar uma síntese sobre o seu conteúdo, interessa primordialmente tentar responder a esta questão: afinal o que fica do que passa? O que poderemos encontrar como denominador comum? A resposta não é inteiramente óbvia, mas poderá ser encontrada nas explicações iniciais do próprio Straub e que surge constantemente reflectida na obra literária de Boll. Se, grosso modo, há aqui três gerações de uma mesma família que se estende entre as décadas de 10 e o início dos anos 60 do século passado que tem como denominador comum a arquitectura, o dado paradoxal é que no serviço militar a sua função é exactamente oposta, isto é a destruição de edifícios em actos de guerra. Assim os mesmos que projectam a construção de edifícios são os responsáveis pela sua própria destruição. Uma das personagens fornece uma explicação relativamente detalhada sobre o «campo de tiro» utilizado durante a guerra. Para explodir uma ponte seria necessário fazer igualmente explodir uma igreja se tal fosse necessário, desde que esta se encontrasse no referido campo de tiro.
Esta ancoragem na dialéctica dos contrários na expressão hegeliana (a tese-antítese-síntese aqui representada pela metáfora construção-destruição-nova construção) parece encerrar em si mesma toda a tragédia da Alemanha de meados do século XIX até quase ao final do século XX. O mesmo país que produziu o mais importante pensamento filosófico da modernidade, que fez revoluções em 1848 e em 1918 (ambas falhadas) foi o mesmo que provocou duas guerras mundiais e que germinou o horror nazi que perdurou muito para além do período em que Hitler esteve no poder. Tudo se pode sintetizar numa abadia que se constrói, destrói e reconstrói, como se a vertigem pela utopia desabasse no pesadelo do abismo. Nesse sentido, Não Reconciliados é um filme alemão como poucos, porque coloca um país e um povo perante o seu passado até ele se transformar em presente. E por isso é duro até o osso ficar totalmente descarnado.
O primeiro filme de Jean-Marie Straub e Danièlle Huillet, Machorka-Muff, é uma curta metragem de cerca de dezassete minutos e que foi realizada em 1963. Embora estejamos a falar de dois cineastas franceses, o filme pode considerar-se como uma das primeiras obras da nova vaga do cinema alemão, cujo manifesto de intenções tinha sido apresentado em Oberhausen no ano anterior. Straub tinha-se exilado na República Federal da Alemanha para evitar ser mobilizado para a guerra da Argélia e foi em território germânico que fez a sua estreia na realização.
O filme basear-se-ia num conto curto do escritor Heinrich Boll a quem a dupla voltaria com Não Reconciliados de 1965 e de quem também outro ilustre par do cinema alemão, Volker Schlöndorff e Margarethe Von Trotta adaptariam, doze anos depois, o livro a Honra Perdida de Katharine Blumm. Se Boll foi sempre um escritor incómodo para o poder que se constitui na Alemanha, pela denúncia aos constantes atropelos à democracia e pelo encobrimento do passado nazi de muitas figuras proeminentes da política e dos negócios deste país, Machorka-Muff é, a este respeito, absolutamente exemplar. Um coronel alemão desloca-se a Bona para receber as insígnias de general. Um homem de extrema-direita, militarista e insensível que está disposto a salvar a reputação de um seu antecessor e herói que foi derrotado em Schwichi-Schwalache durante a II Guerra Mundial e que acabou os seus dias em França, segundo Machorka-Muff, vítima de uma tremenda injustiça. A insistência do coronel baseia-se num argumento que nos parecerá quase macabro: não morreram oito mil homens nessa batalha, mas mais de catorze mil, o que, supostamente provaria o heroísmo do referido general. Ao mesmo tempo acompanhamos a sua vida privada e, mais importante, as suas reflexões políticas que mostram que o seu apego à democracia é mínimo («a oposição não conta porque nós é que temos a maioria») aquilo a que Straub chamou uma «história de violação» a propósito desta curta metragem.
Se do ponto de vista formal, ainda estamos longe dos longos planos, da comunhão com a natureza e do artificialismo recitativo das personagens dos seus filmes posteriores, o que se torna verdadeiramente relevante, é o conteúdo acerado e certeiro de Machorka-Muff. Dezassete minutos chegam para cumprir as duas premissas essenciais do Manifesto de Oberhausen: não esquecer o nazismo e denunciar os atropelos aos direitos civis de uma democracia limitada. Palco privilegiado de uma luta ideológica sem quartel que se desencadeou com a Guerra Fria, o poder das duas Alemanhas (aqui não há inocentes, nem de um lado, nem do outro) descobriu que os nazis podiam ser reciclados para a democracia, mesmo sem serem democratas) aproveitando a sua experiência de poder e de impiedade. Essa é a principal ilação desta curta-metragem, um princípio de ajuste de contas com o passado que afinal se prolonga no presente. Reitz, Kluge, Fassbinder e Schlöndorff, entre outros, fizeram-no de forma admirável: um país que pelo cinema ajusta contas com o seu passado e a forma como ele condiciona o presente. Mas Straub e Huillet fizeram-no antes de todos.
10 COISAS QUE EU APRENDI SOBRE CINEMA DEPOIS DE TER VISTO OS FILMES DE DANIÈLE HUILLET E JEAN-MARIE STRAUB
Já não sei bem se fui eu que lancei este desafio ao Chico, ou se foi uma proposta sua: fazer um ciclo integral sobre a cinematografia de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub e escrever os respectivos textos. Eu já tinha previamente escrito os textos que acompanharam as retrospectivas de Alain Resnais, de Douglas Sirk e Michael Powell e Emeric Pressburger. Mas havia uma diferença significativa. Dos cineastas em causa eu conhecia a grande maioria dos seus filmes. De Straub e Huillet tinha visto quatro ou cinco longas metragens e nenhuma curta. O facto de ter gostado imenso de todos os filmes que tinha visto deles funcionou para mim como um impulso irresistível para conhecer os restantes de uma forma sistematizada.
Os 27 textos que vão acompanhar esta primeira parte do ciclo (a que se situa entre a primeira curta metragem de 1963 e a morte de Danièle Huillet em 2006) foram escritos por alguém que não percebe nada de cinema em termos técnicos. Nunca frequentei nenhuma escola, nunca participei na elaboração de um filme, nem sei como é que se faz. Aquilo que vão ler é apenas a perspectiva de um espectador, que viu milhares de filmes na vida e que através deles foi formando o seu próprio gosto.
O processo de elaboração destes textos foi simples e comum. Ao visionamento dos filmes seguia-se a fase do atordoamento maravilhado. Maravilhado porque os achei a praticamente todos absolutamente excepcionais; atordoado porque eles são tão diferentes de tudo o que vi, que transportar ideias e sentimentos para as palavras adequadas nem sempre era uma tarefa fácil. A paralisia da escrita era quebrada por alguma pesquisa e reflexão e, frequentemente, o voltar atrás para rever alguns momentos. O que vão ler, repito, não são grandes dissertações teóricas sobre o cinema de Straub e Huillet (façanha de que eu aliás não seria capaz), mas apenas as impressões de uma pessoa que gosta de cinema e dos filmes deles em particular. Gostaria de vos deixar de forma muito sintetizada 10 ideias fortes sobre a generalidade da sua obra e que serão desenvolvidos ao longo dos respectivos textos:
1) O Cinema é uma Arma
Desde 1963 que Straub e Huillet fizeram do seu cinema uma clara opção política e ideológica. Essa opção está para lá da transitoriedade dos acontecimentos imediatos e das querelas ideológicas mais mesquinhas. O seu cinema está claramente do lado da denúncia das injustiças de uma sociedade dividida em classes e na vontade da sua transformação revolucionária. Nenhum dos seus filmes, mesmo aqueles que aparentemente parecem estar mais distantes desta intenção, se afasta deste propósito.
2) Toda a Revolução É um Lance de Dados
A Revolução não é uma declaração de intenções nem um dogma assente em pretensas verdades irrefutáveis. A revolução é essencialmente uma forma de estar e de ser, mas não uma cartilha desenhada a régua e esquadro. Nas a radicalidade da transformação não é apenas política, mas também estética. Não faz sentido existirem grandes proclamações ideológicas, quando as mesmas são servidas por formas artísticas conservadoras e conformistas.
3) Lições de História
Com Straub e Huillet viajamos livremente pelo passado. Pela Grécia e pelo Império Romano; pela Revolução Francesa e pela Comuna de Paris. No mesmo filme misturam-se épocas distintas para lhes encontrar um laço comum. A História não se repete de forma factual, mas quando Brecht escreve sobre Júlio César estava a pensar em Hitler. Não é uma circularidade histórica no sentido literal do termo, mas a percepção que a sociedade de classes, independentemente das circunstâncias e respectivos protagonistas, é geradora de opressão, de injustiça e de exploração.
4) Quem Faz e Quem Vê
O cinema de Straub e Huillet não tem nenhum tipo de filtros. Não há nenhuma artificialidade, nem nenhuma tentativa de embelezar o produto. Não há efeitos especiais (excepto se eles forem absolutamente necessários), nem nenhuma pós produção áudio, ou a coloração química artificial. Há assim uma total ausência de mediação entre aquilo que é feito originalmente e aquilo que os espectadores têm oportunidade de ver. Poder-se-ia dizer que há neles uma visão marxista da forma de fazer cinema em que não existe nenhum privilégio de quem faz relativamente a quem vê, nenhum truque escondido nenhum mecanismo de pós-produção que leve o espectador a interrogar-se como é que as coisas foram feitas. Tudo é claro e transparente.
5) Formatos e Tamanhos Diversificados
Ao longo de 40 anos e de 27 filmes entre 1963 e 2006, Straub e Huillet não privilegiaram nenhum tipo de cinema em relação a outro. Trabalharam com obras de ficção e com documentários. Fizeram filmes sobre óperas de Schöenberg e peças de Brecht, um ensaio de Franco Fortini e a correspondência entre Cézanne e Gasquet. Os seus filmes rompem com a tradicional distinção entre a ficção e o documentário colocando-se num terreno estimulantemente inclassificável. Fizeram longas, médias e curtas metragens. Estas, por vezes não ultrapassando os dez minutos de duração, são tão relevantes como o resto dos seus filmes.
6) Respeitar as Obras de Arte
O conceito de adaptação raramente existe na obra cinematográfica de Straub e de Huillet. Os quadros de Cézanne ou aqueles a que ele se refere existentes no Louvre são mostrados na sua totalidade devidamente pendurados e emoldurados; as óperas de Schöenberg são filmadas na íntegra e no caso de Moisés e Aarão o que se ouve no filme é o mesmo que foi publicado em disco. As tragédias de Sófocles ou de Corneille são apresentadas na íntegra sem mutilações nem adaptações, ou seja, sem «arredondamentos» para a linguagem cinematográfica de forma a tornar obra pretensamente mais apelativa
7) Perfeição e simplicidade
Nada é deixado ao acaso nos filmes de Straub e Huillet desde os locais das filmagens, quase sempre paisagens naturais, até ao trabalho de direcção de actores. Estes normalmente são não profissionais. O trabalho a que eram sujeitos revelava-se frequentemente exaustivo com centenas de repetições e gravações que se prolongavam por vários meses até se encontrar o ritmo e o tom adequados. Existem numerosos ângulos e perspectivas de filmagens e o trabalho de montagem é meticuloso e frequentemente com variantes que vieram a ser aproveitados para curtas metragens. O resultado de todo este labor é um produto extremamente simples o que, no entanto, nunca deve ser confundido com quaisquer tipos de facillitismos.
8) Música, Palavras e Silêncio
Em Othon, os versos alexandrinos de Corneille, são, em si mesmos, uma linguagem musical. Straub e Huillet utilizaram a sua língua francesa materna, mas também o alemão e, mais tarde, o italiano, ao longo dos seus filmes. O prazer do texto é também o prazer da língua, o respeito pela sua musicalidade intrínseca das palavras como se elas fossem (e são!) uma linguagem paralela que se harmoniza perfeitamente com o silêncio. Sobretudo nos filmes iniciais, há longos espaços de silêncio em que a câmara se detém em longos planos fixos ou deambula por paisagens naturais mostradas sem explicações. O diálogo entre as palavras e o silêncio é um dos aspectos mais fascinantes do cinema de Straub e de Huillet.
9) Um Cinema Conceptual Que Não Procura Efeitos Fáceis
Não há em nenhum dos filmes de Straub e de Huillet nenhum argumento original, provavelmente com a excepção da curta metragem de dez minutos, Europa 2005, 27 de Outubro. Os cineastas partem sempre de um texto escrito, literário ou musical e eles são de origens e épocas muito diversificadas. Mas não se trata de uma adaptação para a linguagem cinematográfica no sentido comum do termo. Trata-se de um diálogo e um confronto com o próprio texto. Em nenhum momento se procura transformar as ideias principais de uma obra para a transformarem no argumento de um filme. Por exemplo em Antígona de Sófocles estamos em presença de um acto de filmar a tragédia na sua essência, onde não existe nenhum momento de distracção das palavras. Não há efeitos fáceis em nenhum momento da sua obra.
10) Um Lugar Que Só Neles Existe
Este é um cinema que só neles existe. Straub considera-se um herdeiro da tradição do cinema clássico, num percurso que vai de Von Stroheim a Dreyer, passando por Ford, Renoir e Fritz Lang. Mas a obra que nos vão deixando (Straub continua a fazer curtas metragens) é radicalmente diferente de tudo o que existe, uma espécie de continente isolado na história do cinema. E que verdadeiramente não é comparável ao de ninguém, embora exerça um enorme fascínio na obra de outros cineastas que se inspiram na sua austeridade rigorosa, na sua autenticidade radical e no seu brilhantismo, para criarem os seus próprios percursos.
É com esta fantástica introdução, da autoria do Jorge Saraiva, que vamos dar o início a um dos ciclos mais aguardados dos últimos tempos. Venham daí, e sigam tudo pelos textos que irão ser acompanhados nos próximos dias, acompanhados pelos filmes. Até já.
Em 27 de Outubro de 2005 num subúrbio pobre de Paris, Clichy-sous-Bois, Zyed Benna (17 anos) e Bouna Traoré (15 anos), morreram electrocutados quando fugiam à polícia que tinha efectuado uma rusga nesse local. Os jovens que tinham estado a jogar futebol com amigos, entraram em pânico e fugiram para o local errado, ou seja, a central eléctrica onde acabaram por ser vítimas do fatal acidente. Esta tragédia levantou uma enorme onda de indignação não só junto da comunidade muçulmana da localidade, mas também entre a população em geral, questionando-se fortemente a actuação das forças policiais na periferia das grandes cidades. Mais do que isso, a actuação da polícia, frequentemente acusada de brutalidade racista, apenas é a parte mais grotesca de uma situação mais profunda: a marginalização das comunidades imigrantes das grandes cidades, acantonadas em subúrbios, com péssimas condições de vida, frequentemente sem emprego, ou com empregos precários e mal pagos e sem quaisquer perspectivas de ver as suas situações poderem melhorar.
Europa 2005, 27 de Outubro é um pequeno filme de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet com cerca de dez minutos e meio de duração. O filme partiu de uma encomenda da RAI 3 por ocasião do centésimo aniversário do nascimento de Roberto Rossellini. Foi pedido a vários realizadores, entre os quais Manoel de Oliveira, David Lynch e Hou Hsiao-hsien) que realizassem curtas metragens inspiradas na personagem Irene, representada por Ingrid Bergman, do filme do mestre italiano Europa 51. O contributo de Straub e de Huillet excede um pouco os sete minutos solicitados e procura da forma original e radical que lhes é comum, transportar o cinema empenhado e militante de Rossellini para o início do século XXI. Por isso Europa 2005, 27 de Outubro, o dia em que os dois adolescentes morreram electrocutados, aborda esse acontecimento de uma forma simples, directa e crua, quase panfletária. O filme consiste em cinco reproduções com cerca de dois minutos cada, do local onde se situa a central eléctrica onde os dois jovens morreram. Uma rua anónima, com casas rodeando a referida central, iniciando-se com o aviso STOP NE RISQUE PAS TA VIE colocada junto às instalações e a câmara a filmá-la, assim como as imediações. Isto é todo o conteúdo do filme. No final em letras brancas surge a frase Chambre à gaz, Chaise electrique. Não há pessoas nem palavras, apenas ruídos naturais, entre os quais um cão que ladra. As quatro repetições têm apenas pequenas diferenças de enquadramento de imagens e de som.
Três aspectos afiguram-se-me absolutamente centrais nesta curta metragem: o local, a repetição e a mensagem implícita. Sabe-se que Straub e Huillet sempre privilegiaram os locais onde filmavam fossem eles, na Sicília, em França ou no Egipto. Aquela rua feia junto à central eléctrica não tem qualquer tipo de atracção, mas foi lá que os jovens perderam a vida, logo deve ser lá que o filme deve ser feito. A repetição tem um efeito de consolidação da mensagem, como se a monstruosidade do que se passou nesse dia, deva ser recordada tantas vezes quantas as necessárias. Finalmente a mensagem implícita não precisa de proclamações. Bastam as imagens secas e aparentemente não emotivas do local onde tudo se passou e a frase final que associa as câmaras de gás à cadeira eléctrica. Associamos a câmara de gás e a cadeira eléctrica a duas formas de executar os condenados à morte. Mas também associamos a câmara de gás ao horror nazi como supremo acto de barbaridade racista. É o mesmo racismo, corporizado na polícia, que mata um jovem árabe e um jovem negro. Afinal, e essa é uma das ideias mais fortes de todo o seu cinema, a história vai-se repetindo não exactamente da mesma forma, mas mantendo as suas características essenciais. Trinta e três anos depois do seminal Lições de História, aqui está uma exemplar comprovação de uma desordem injusta que se perpetua no mundo.
É o primeiro filme de Straub e Huillet filmado em tecnologia digital. Paradoxal e infelizmente, é também o último em que Huillet participa, antes do seu falecimento em 9 de Outubro de 2006. O que fica destes dez minutos e meios é um dos panfletos mais inteligentes e eficazes que alguma vez vi em cinema. Não são precisos grandes meios, nem grandes proclamações. Basta encontrar o sentido justo e a forma adequada para a seta encontrar o alvo.
«Numa carta, Pavese (1908-1950) escreveu: “Não sei se encontrarei o tesouro de Montezuma, mas sei que sobre o planalto de Tenochtitlan fazem-se sacrifícios humanos. Após muitos anos, não pensava mais nessas coisas, eu escrevia. Agora nem escrevo mais! Com a mesma obstinação, com a mesma vontade estoica de Langhe, farei minha viagem ao reino dos mortos. Se queres saber o que sou no presente, releia ‘a besta selvagem’ nos ‘Diálogos com Leucò’: como sempre, tudo previ há cinco anos. Quanto menos falares desta história com as ‘gentes’, mais te serei agradecido. Mas o poderei ainda?”.
Na mesa do quarto onde foi encontrado morto o autor que escreveu que “o estoicismo é o suicídio”, estavam caixas de soníferos e um exemplar do referido livro aberto na primeira página, com a frase visível: “Eu perdoo todo o mundo e peço perdão a todo o mundo. Está bem? Sem tagarelices demais por favor”. Pouco antes de morrer, anotou numa carta: “Ninguém lê os ‘Diálogos com Leucò’, embora seja meu único livro que vale alguma coisa”.» (blog Trópico)
Esses Encontros Com Eles marca o regresso de Straub e Huillet aos livros de Cesare Pavese que já tinham sido objecto da sua atenção em Das Nuvens à Resistência. Regresso a os Diálogos com Leucò, o livro favorito do escritor. Seria também a última longa metragem realizada por ambos, uma vez que Danièle Huillet morreria em 9 de outubro de 2006. Do ponto de vista formal representa o final de uma trilogia com dois filmes anteriores (Operários Camponeses e Humilhados/O Regresso do Filho Pródigo) já que os actores são os mesmos e foi rodado nos mesmos locais. O filme adapta os cinco últimos diálogos do total de vinte e sete da referida obra de Pavese. É provavelmente o mais filosófico filme dos realizadores. Os cinco diálogos apresentam-nos sempre duas personagens diferentes, ora humanos, ora divinos, representados por actores imóveis e captados em planos fixos de forma a dar primazia absoluta às palavras, evitando qualquer tipo de distração. Estes deuses mitológicos estão longe da tradição perfecionista das grandes religiões monoteístas, sobretudo da tradição judaico-cristã. A sua relação com os humanos não deve se vista na perspectiva de Kierkegaard de uma «relação sem relação» Se no filósofo dinamarquês a transcendência divina reduz o ser humano a uma inferioridade desesperada, nas mitologias clássicas, os deuses sem deixarem de o ser, surgem despidos dessa irredutível transcendência. São deuses quase humanos com as suas fraquezas e vacilações. Diria, citando de cor o filósofo alemão Ludwig Feuerbach, a expressão da criação humana à sua imagem e semelhança. E por isso, surgem naturalmente os diálogos possíveis, quase entre iguais, travados por seres humanos e deuses. É a morte, o amor, o significado da vida e a relação que se estabelece entre seres tão próximos, mas ontologicamente distintos. O sentido da procura da compreensão e dos projectos que os deuses têm para os seres humanos, sempre alvo de um misto de admiração e reserva, atravessam estruturalmente estes diálogos.
No fundo, o que pode levar um escritor conotado com o neo-realismo a escrever um livro deste tipo e a considerá-lo o seu favorito? Pavese foi um resistente antifascista que sofreu as agruras das prisões de Mussolini e que participou nas guerrilhas de libertação. Foi membro do Partido Comunista Italiano e redactor do Unitá, o jornal oficial do partido. Era assumidamente agnóstico. A generalidade da sua obra enquadra-o nos escritores italianos com forte consciência social. Face ao conjunto da sua obra, Diálogos com Leucò é considerado um livro bizarro, extremamente bem escrito, mas dissonante da sua obra. Pelo menos à primeira vista. Nem sequer é a sua obra final, uma espécie de testamento de alguém que quer seguir outro caminho. Antes do seu suicídio em 1950, Pavese publicaria ainda mais quatro livros, com destaque para a sua obra mais conhecida dentro e fora de Itália, A Lua e as Fogueiras. Esta manifestação de heterodoxia, ou mesmo de heresia face a uma ideologia normalmente pouco permeável a este tipo de dissonâncias, terá fascinado Straub e Huillet que sempre gostaram de heterodoxias, apesar das suas firmes convicções. O resultado é um filme extremamente belo, marcado pelo ritmo das palavras e que seria, infelizmente, o último de grande fôlego em que Danièle Huillet participou.
Uma Visita ao Louvre é o regresso a um filme feito quinze anos por Straub e Huillet: Cézanne. Voltam a estar presentes os diálogos entre o pintor e o seu amigo, poeta e crítico de arte Joachim Gasquet conforme foram recolhidos no seu livro sobre o pintor. Straub e Huillet mantêm a forma de abordagem das palavras com Huillet a ler em voz off todas as partes respeitantes a Cézanne, interrompidas muito esparsamente por pequenas perguntas que são lidas por Straub. Continuamos a ter um formato de média metragem desta vez com cerca de quarenta e cinco minutos de duração.
Se aparentemente estamos em presença de filmes semelhantes, na realidade são duas obras absolutamente distintas, embora complementares. Em Cézanne o pintor falava da pintura em geral e da sua pintura em particular. Aqui o autor analisa criticamente e numa linguagem profundamente expressiva as impressões que lhe causam as obras (pintura e escultura) de outros autores, nomeadamente alguns dos que estão expostos no Museu do Louvre, ou seja, praticamente de épocas anteriores à vaga surrealista da segunda metade do século XIX. Num tom sereno e sem vacilações, Danièle Huillet vai transmitindo a opinião, frequentemente heterodoxa, de Cézanne sobre um conjunto de quadros e de pintores. Os quadros são filmados em panos fixos e na sua íntegra, sem zooms para pormenores, para o espectador poder ter uma visão de conjunto dos mesmos. Mas o que é particularmente saboroso (perdoem-me a utilização deste adjectivo, mas é aquele que se me afigura mais adequado) são as reflexões de Cézanne sobre estes quadros. Tomo a liberdade de citar aqui algumas das suas reflexões:
«Eu não compreendo verdadeiramente Giotto. Gostava de tê-lo visto, mas já estou muito velho para voltar a Itália»
«A verdadeira pintura só começaria com os venezianos»
«Holbein, Clouet ou Ingres não têm nada além da linha. Ora isso é muito belo, mas não basta»
«David matou a pintura»
«O que marca o grande pintor é a personalidade que ele empresta a tudo o que toca, impulsiona, movimenta, apaixona, pois é possível ser apaixonado e sereno»
«Para amar uma pintura é preciso primeiro sorvê-la em grandes goles. É preciso perder a consciência»
«Nós perdemos este conhecimento da preparação, esta liberdade e vigor adquiridos sob a pintura»
As referências continuam sempre de forma polémica e apaixonada denegrindo os quadros de que o pintor não gosta e transparecendo uma intensa emoção sobre obras de Tintoretto e Delacroix que estão entre os seus favoritos. Mas o que mais fascina é este constante opinar, este «tomar partido» sem ambiguidades nem hesitações. Straub e Huillet mostram-nos os quadros em planos fixos, intervalados por breves separadores em que o ecrã fica negro, deixando-os respirar e terem vida própria. O que é deveras interessante, sobretudo para quem não é particularmente versado em pintura (como é o meu caso) é que as reflexões que acompanham os quadros, ajudam a interpretá-los e a avaliá-los, independentemente da concordância com as opiniões do crítico Cézanne.
Cada plano do filme acaba por se tornar, ele próprio, um quadro, ou, pelo menos uma relação entre a imagem do cinema e o objecto em si mesmo. Sempre feito de forma seca, no sentido em que não existem quaisquer artifícios para além dos quadros que se observam e a opinião crítica sobre eles. Exceptuando as imagens iniciais nas imediações do museu, um breve plano sobre o Sena e as imagens finais de uma floresta intensamente verde que evoca a mesma Sicília dos filmes imediatamente anteriores, tudo o mais é filmado dentro do museu, mas apenas dos quadros analisados. É esta demanda que transforma Uma Visita ao Louvre num filme belíssimo. Tudo pode ser simplesmente sintetizado no texto da Cinemateca: «O resultado é nada menos do que “um filme fabuloso, uma das mais entusiasmantes experiências cinematográficas dos últimos tempos. Começar por onde, destacar o quê, explicar o quê?” (Luís Miguel Oliveira»
A descoberta da obra de Elio Vittorini feita com Sicília (1999) possibilitou num curto espaço de tempo a realização de vários filmes por parte de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, nalguns casos surgidos como variações de obras anteriores. É o caso de L`arrotino (2001) de sete minutos com takes alternativos da cena final de Sicília, ou seja, do diálogo entre o protagonista e o amolador. Igualmente de Sicília é Il Viandante (cinco minutos) que retoma o diálogo entre o filho e a mãe. Finalmente de Operários Camponeses há ainda Dolando, com apenas sete minutos.
Humilhados e o Regresso do Filho Pródigo são igualmente duas variações sobre Operários Camponeses. Mas, desta vez não se trata de retrabalhar o material fílmico, mas de buscar outro excerto da obra de Gente de Messina de Vittorini. Embora se trate do mesmo contexto, este filme não é uma variação daquele. Voltamos à mesma comunidade siciliana e à floresta onde os actores leem ou recitam excertos do referido livro. Estamos na presença da mesma comunidade de trabalhadores que cria uma cooperativa na Itália recém-libertada do fascismo. Na primeira parte recebem um emissário do governo que tem a função de cadastrar as propriedades existentes no sentido de as devolver aos seus anteriores donos. O filme é, todo ele, defensor de uma concepção marxista da economia. Está aqui implícita uma infindável discussão entre legalidade e legitimidade a propósito da questão da propriedade. Pela lei, as terras e as casas devem pertencer aos seus antigos proprietários em nome da ordem burguesa de aquisições e heranças. Mas se são os trabalhadores que trabalham a terra, esta deve legitimamente pertencer-lhes a partir do princípio marxista de que deve pertencer aos trabalhadores o controlo dos meios de produção. Esta discussão transportou-me para o período subsequente ao 25 de Abril em Portugal quando havia uma acesa polémica sobre a posse da terra na zona da Reforma Agrária. A terra que estava seca e inculta foi irrigada e cultivada pelos trabalhadores que a ocuparam, tornando-a fértil. A pseudo generosidade do proprietário consiste em arrendar a terra o que só fará aumentar os seus lucros e reforçar a exploração. Em vez de ter uma terra inculta, receberá o lucro do trabalho feito pelos outros. Na segunda parte do filme alguns membros da cooperativa são confrontados com três homens armados e discutem sobre a rentabilidade económica do trabalho que arduamente desenvolveram de reconstruir a propriedade ocupada. O trabalho torna-se pouco rentável face à energia despendida, sobretudo se se tiver em conta que produzindo de forma industrializada, as grandes potências conseguem colocar os mesmos produtos a metade do preço. A partir daí desenvolve-se com uma análise da relação possível entre as grandes empresas capitalistas multinacionais e as pequenas empresas de aldeia. O filme termina com uma das imagens mais icónicas de toda a extensa filmografia de Straub e Huillet: uma mulher descalça, sentada à porta da sua casa, com o rosto ocultado pelas mãos.
Paradoxalmente, este filme acaba por ter uma dimensão muito mais explicitamente ideológica do que Operários Camponeses. Se na primeira adaptação de Mulheres de Messina, o texto demora-se muito nas memórias e nos conflitos entre os membros da comunidade, nesta curta metragem são as questões da posse da terra e do funcionamento da economia capitalista que são abordados. Pese embora as décadas que nos separam da obra de Vittorini, a essência dos problemas mantém-se. E por isso a sua actualidade é inatacável.
Operários Camponeses é o segundo de três filmes consecutivos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet de encontro com a obra do escritor italiano Elio Vittorini. Após Sicília, desta vez inspiraram-se no livro As Mulheres de Messina que também seria fonte para o Regresso do Filho Pródigo de 2003.
Tal como seria de esperar, não se trata de nenhuma adaptação ao cinema de uma obra literária, propósito que nunca fez pare dos objectivos dos realizadores. Um grupo de actores/leitores lê excertos do livro de forma pausada e sem quaisquer tipos de entoações teatrais, interpoladas por momentos em que os actores recitam sem ler. O cenário conjuga o tom espartano dos seus filmes, onde todos os aspectos acessórios são meticulosamente removidos, com uma luxuriante floresta siciliana, de um verde brilhante e encantatório. Os actores raramente fixam a câmara, com os olhos nas folhas de papel e estão vestidos de forma comum sem quaisquer adereços ou trajes evocativos dos anos 40 do século passado, época em que o livro foi escrito. Para além da voz dos actores, que na maioria dos casos estão de pé, embora por vezes se sentem nos troncos de árvores derrubadas, ouvem-se os sons dos animais na floresta, designadamente de pássaros. O filme apresenta-se assim de forma totalmente depurada nas suas duas horas de duração. Para além do genérico inicial completamente a negro e com excertos de uma cantata de Bach, apenas na fase final há uma visão panorâmica da floresta que dura cerca de três minutos e que já é habitual nos seus filmes. Estamos assim em presença de um dos filmes mais radicais da dupla e um dos que mais privilegia a palavra do escritor. Nesse sentido, aplica-se talvez como a poucos outros filmes feitos por eles as palavras de Ruy Gardnier no blog Contracampo: «Sabemos desde A Crônica de Anna Magdalena Bach que o cinema dos Straub era claro. O que não sabíamos, provavelmente, é que o fato desse filme inaugural (mesmo que o primeiro tenha sido Machorka-Muff) levar para a frente da tela todas as fontes de iluminação tinha antes de tudo um valor de manifesto: jamais esconder ou fingir qualquer coisa em sua relação com o espectador. Projecto louco, de um fôlego absurdo – afinal, fazem isso há 40 anos – e de uma dimensão mais louca ainda, a se julgar pelos caminhos que a arte audiovisual tomou logo cedo e que hoje mais do que nunca segue: acabar com a sedução como modo de relação que entretém o espectador na cadeira com o filme que vê. Dessa forma, os Straub são os únicos no mundo (com exceção talvez de Guy Debord e dos filmes de Godard realizados pelo grupo Dziga Vertov) que fazem um cinema estritamente marxista na relação com o espectador: não há aqui nenhum privilégio dos meios de produção estética e a arte não se constrói por esse privilégio (esse saber-fazer).»
Esta ausência de truques e de filtros entre o que se faz e o que se vê, estende-se igualmente às palavras de Vittorini. Os excertos lidos e recitados surgem como depoimentos o que levou Straub a declarar que tem uma estrutura de quase filme policial e onde a imagem é mais densa e as cores mais intensas, mas sempre naturais e sem estarem sujeitas aos tratamentos artificiais da química moderna. O argumento acompanha a vida de um grupo de sicilianos e as suas memórias. Não se limita à descrição da vida dura nos campos, sobretudo no Inverno e à exploração constante a que foram sujeitos. Muitos deles de origem camponesa acabam por emigrar e tornar-se operários das grandes cidades do norte de Itália, embora nunca percam as suas raízes. Embora fosse um homem de esquerda, Vittorini foi sempre um heterodoxo quer na escrita, quer na ideologia. Apesar do título fazer pressupor grandes ambições revolucionárias, essa revolução surge aqui de forma mais subliminar. Não há a descrição de lutas revolucionárias, feitos heroicos típicos de certa literatura. Há descrições de histórias comuns de gente simples, de amores e conflitos, da descrição do trabalho e da forma com as estações do ano o influenciam e até sobre as virtudes do louro e as formas de fazer requeijão.
Talvez seja desta forma, nesta materialidade da fala (mais do que da língua escrita) nestas doces palavras entoadas numa torrente serena e ritmada, neste redescobrir de uma simplicidade que se vai perdendo quer no cinema, quer na vida, que conseguimos descobrir uma nova revolução por fazer.
Sicília! marca o encontro entre o cinema de Straub e Huillet e o escritor italiano Elio Vittorini, uma das mais importantes vozes da literatura de todo o século XX. O escritor é contemporâneo de Cesare Pavese (outro autor adaptado pelos cineastas) e participou fortemente na luta antifascista e que após a guerra teve posições destacadas no Partido Comunista Italiano, chegando a ser editor do jornal Unitá, O órgão central do Partido. Abandoná-lo-ia após a invasão soviética da Hungria em 1956.
O filme baseia-se na obra Conversas na Sicília, uma das mais destacadas do escritor e que tem um cunho fortemente autobiográfico. Vittorini nasceu em Siracusa na Sicília, filho de um ferroviário e tal como o protagonista, emigrou para o Norte de Itália após a adolescência. O filme marca o regresso do protagonista a uma Sicília forçosamente muito mudada relativamente ao período em que ele lá vivia. Basicamente é composto por quatro diálogos distintos: o primeiro em que se faz passar por um regressado da América, com um vendedor de laranjas que se queixa da fraqueza do negócio; o segundo num comboio com outro regressado (e que possui uma profissão suspeita nunca especificada) sobre regressos e itinerários de viagem na ilha; o terceiro e mais extenso com a mãe (antiga guarda de passagem de nível) onde é evocado o passado da família; o último com um amolador sobre o declínio da profissão. Embora o livro de Vittorini tenha sido escrito em 1941, não há, como é costume na obra dos realizadores, nenhuma tentativa de fazer um filme situado na época em que o livro foi escrito. As imagens da Sicília são as do final do século XX, o que nos permite fazer uma reflexão interessante, aliás recorrente na obra dos realizadores: o que é que mudou e o que é que se mantém. A Sicília foi historicamente uma das terras mais pobres de Itália, a mesma Sicília de gente explorada que no cinema foi imortalizada pela obra prima de Visconti, A Terra Treme A mesma Sicília que no primeiro diálogo apresenta um vendedor de laranjas a queixar-se de que os patrões lhes pagam com esse fruto, mas que depois não as conseguem vender. Neste fresco sobre a ilha, evoca-se a emigração em massa para o continente e para a América como aliás já o tinha sido em filmes anteriores e no regresso, onde o protagonista se transforma em espectador das mudanças, quantas vezes mais aparentes do que reais. No diálogo mais longo, entre a mãe e o filho, são os mesmos fantasmas do passado que provavelmente nunca deixaram de estar presentes: evocam-se episódios de infância, sobretudo aquilo que comiam e o que o protagonista, então criança, calcorreava para ir de casa para a escola, mas numa sociedade aparentemente tão puritana, torna-se quase surpreendente o relato do amor da mãe por um quase desconhecido com quem teve um relacionamento que ela assume sem quaisquer remorsos ou problemas de consciência. Afinal parece que nem tudo mudou por aí além, para além da aparência. A motivação para a realização deste filme remonta a 1972: numa viagem pela Sicília, Straub e Huillet viram o leito de um rio repleto de laranjas que tinham sido para lá lançadas para que o mercado não fosse inundado e os preços se pudessem manter artificialmente mais altos. Como é afirmado por Luiz Soares Júnior no blog Cinética: «Todo o filme é estruturado segundo uma lógica da recitação, onde presenças - lugares, comidas, gestos, hábitos - são enfileiradas umas após as outras e, por intermédio da palavra, advêm a uma plenitude material inigualável. Mas não qualquer palavra, dramática ou expositiva; a palavra straubiana é epifânica: ela mostra a coisa em seu espaço-tempo único, infinitivamente presente; o saboroso canto, o sotaque, as pausas e precipitações que emanam da emissão dos atores, fruto de muito ensaio e judicioso treino, servem justamente para isso: não se trata de mera evocação ou descrição naturalistas, mas de presentificação. Como bem diz um texto de Fitoussi sobre as filmagens do filme, "o prazer de filmar dos Straub vem de um trabalho de reencontro, reencontro com uma realidade que preexistia ao texto, e que o texto conserva em estado latente - assim, eis o prazer dos nomes em Vittorini, todos intensificados em sua enumeração pela alegria de saber que a coisa nomeada existe ou existiu». Afinal, tudo se resume no diálogo final com o amolador que gostava que todas as facas só tivessem lâminas e onde mais do que a auto-descoberta do protagonista, ou um regresso nostálgico à infância, se encontra pelo mais essencial acto da existência, ou seja, a contemplação do mundo e, provavelmente, da necessidade da sua transformação.»
Sicília! Foi estreado em Portugal e teve edição em dvd, coisa rara na sua obra. Foi na laboriosa montagem que Pedro Costa se baseou para realizar Onde Jaz O Teu Sorriso, testemunhando a sua imensa admiração pela obra dos cineastas. Neste filme a preto e branco, tão sóbrio e incisivo como a generalidade das suas obras, mas provavelmente mais acessível a um público mais vasto, onde as paisagens não são paisagens, mas diálogos silenciosos, parecem condensar- se todos os predicados da obra de Straub e Huillet. Para quem não quiser seguir a ordem cronológica do visionamento da sua obra, Sicília! Poderá ser uma porta de entrada. Seco, telúrico e certeiro como sempre.
De Hoje Para Amanhã é a terceira incursão de Straub e Huillet na obra do compositor austríaco Arnold Schoenberg de quem já tinham adaptado Introdução a «Música de Acompanhamento Para Uma Cena de Cinema (1972) e Moisés e Aarão (1975). As razões para esta insistência, como já notei em texto anterior prendem-se menos com razões políticas e mais com a radical independência e o grande sentido de renovação estética que Schoenberg trouxe à música do século XX.
De Hoje Para Amanhã é uma ópera num único acto composta no final de 1928 e com um libretto de Max Blonda que é o pseudónimo de Gertrud Schoenberg, a esposa do compositor. Musicalmente segue a orientação da livre dissonância e do dodecafonismo que também estão presentes em Moisés e Aarão. Mas ao contrário da ópera filmada em 1975, De Hoje Para Amanhã é uma comédia moderna sobre as relações entre um casal de meia idade. Aparentemente a sua relação é estável, mas já marcada pelo tédio de uma vida em comum sem sobressaltos nem grandes excitações. Numa noite em que ambos saem, o marido sente-se atraído por uma amiga da esposa e comunica-lhe a vontade de ter uma relação extra-conjugal. Esta responde que também conheceu um cantor de ópera por quem se sentiu atraída. O que é particularmente interessante em todo o libretto é que este se desenvolve numa perspectiva puramente feminina a que não deve ser estranho a sua autoria. Tomando a iniciativa ela acha-se ainda atraente e capaz de ser sedutora e resolve mudar a sua vida. O ponto forte do filme reside na relação dialéctica que se estabelece entre o casal. Numa primeira fase parecemos estar presentes uma situação clássica: o marido domina a situação e nem por sombras pensará que a mulher poderá ter outra reacção para além da submissão. Mas a resposta e o desafio desta, altera todas as premissas. Ela vai assumir declaradamente o comando e será ele que terá que se submeter. A possibilidade de ela materializar as suas ameaças torna-o ciumento e despeitado e fragiliza-o de imediato. O que parece ser um drama familiar transforma-se numa comédia de costumes o que só lhe dá uma acutilância reforçada. O que é mais interessante é o desafio ao estereótipo do poder masculino intocável e inatacável. Se pensarmos que a ópera foi criada no final da década de 20 do século passado, percebemos o cariz pioneiro da mesma que merece figurar no cânone das mais destacadas obras feministas.
É o primeiro filme de Straub e Huillet inteiramente rodado em interiores, neste caso num teatro transformado em estúdio de filmagens. Começa com imagens do ensaio da orquestra o que faz pressupor que o live sound tão característico dos seus filmes se mantém. Depois vemos algumas imagens panorâmicas do teatro e em particular das cadeiras vazias. Finalmente a única incursão no exterior é a imagem de um muro onde está escrito à mão em letras maiúsculas a frase Onde Jaz O Teu Sorriso Escondido. Será este (com excepção da palavra escondido) o título do célebre documentário de Pedro Costa que acompanha a montagem de Sicília, o filme seguinte dos cineastas. Toda a encenação e as imagens a preto e branco (marcando mais um contraste com Moisés e Aarão) são meticulosamente estabelecidas para servir a música e as palavras. E isto porque não é em vão que se transporta para cinema a primeira ópera dodecafónica da história da música.