quinta-feira, 31 de maio de 2018

Noites (Noites) 2000

João vive da prostituição; é um homem já perto dos 30, com os olhos vazios e o corpo roído pelas drogas e pela vida. O pouco que tinha deixou-o para trás para andar por aí, sem nunca procurar nada de especial. Antes trabalhava nos cafés ou nas obras, mas o vício tornou-o amargo e é preciso ganhar mais dinheiro e mais depressa. Teresa já o acompanha há mais de três anos. Sem sonhos nem ambições, cedo deixou a casa dos pais, Teresa tem uma natureza sombria e é levada por um instinto suicida, que a faz perder o amor-próprio. Agora está doente e deixa-se andar suja e desprotegida. Devia fazer tratamentos no hospital, mas já tanto lhe faz... Teresa e João acompanham-se neste processo repetitivo e cansado.
Sozinhos, mas ante o vazio repetitivo, o tempo sem mudança, a dor contínua, a exposição descarnada da mais irremedível das grilhetas (a heroína), estão os dois protagonistas de "Noites". É um filme curto, sem passado nem devir para os seus protagonistas,  sem parentesco no cinema português, que nos obriga a olhar para os toxicodependentes de um modo obsessivo. Onde, no quotidiano, sem desviar o olhar, aqui Cláudia Tomaz força-nos uma realidade. Uma realidade dura, em que a dupla protagonista (Cláudia Tomaz/João Pereira), também interpretes e co-argumentistas, casal que a edificação do filme emparceirou) se expõe até ao limite, na dúbia e perturbante vacilação das fronteiras do que é cinema e do que é verdade, do que é preciso do que haja de verdade para que o cinema seja alguma coisa da vida. Ternura e aflição, quase nada de raiva, eia o que "Noites" exala. Acho que ninguém saberá dizer se este é um grande filme, mas é, com certeza, um objecto onde se jogam coisas fundamentais para o lugar do cinema. E isso basta.
* In Expresso, 9-9-2000.

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terça-feira, 29 de maio de 2018

...Quando Troveja (...Quanto Troveja) 1999


A relação de António e Ruth termina inesperadamente. Ruth vai viver com Pedro, o melhor amigo de António. António, desesperado, deixa-se esmagar pelas suas próprias fraquezas. Mas, do bosque, surgem dois estranhos seres, Violeta e Gaspar, que vão interferir na vida de António… 
"O título de "... Quando Troveja" começa por reticências e começa bem. O título do primeiro filme de Manuel Mozos ("Um Passo, outro passo, e depois...", de 1990, feito para a RTP) tinha-as no fim, só que o "depois" foi a experiência traumática de Xavier (rodagem em 1991, falência da produtora, filme inconcluído todo este tempo - e o material, digo eu que já o vi, era excelente, o que agrava a frustração). Depois de um esperançoso alvor, um buraco negro de quase dez anos - e agora um retorno que que tem praticamente o sabor de um recomeço. Não admira que o filme seja um bocadinho negro - o que é que se esperava?
António, o protagonista, não é um sujeito muito interessante. A mulher de quem gostava trocou-o por outro e o rapaz desceu a rampa dos abismos: álcool, solidão partilhada com uma companheira de morada a quem a asma parece colocar às portas da morte, sobrevivência através de fracos recursos de pequeno-burguês intelectual (traduções e etc.), habitação em estado de pré-desmoronamento - há fendas, insectos, e os caroços das cerejas atiram-se em frente, para um chão que adivinhamos conter todos os restos provisórios de existências que estão numa encruzilhada que pode ser apenas a antecâmara do oblivio. Correm por ali fantasmas de suicídio - logo desde a sequência de abertura - nada vale a pena. 
Uma personagem assim não tem muito para nos ensinar. Nem para nos distrair. Mas consegue, por artes mágicas de um filme que as invoca muito concretamente, ter alma de herói, porque é mais difícil sobreviver à selva da infelicidade urbana, armadilhada pelos desencontros da vida, que é a selva do Vietname. Na realidade e no cinema. Na selva do Vietname há tiros e correrias, adrenalinas, combates de frente ou de través, acção. Na selva da infelicidade, os protagonistas estão tomados pela tragédia da apatia, pelo estado vegetativo de um dia que se segue a outro sem remissão, não fazem coisa alguma e não vêem como saír do buraco. Pior: as mais das vezes, as tentativas que encetam conduzem-nos em sentido contrário, não sem antes terem experimentado o agravo da humilhação que quase sempre vem no contrapeso de tais empresas. Só por milagre as coisas se podem voltar a pôr sobre carris. 
É aqui que Quando Troveja faz apelo a duas personagens rigorosamente únicas em toda a caminhada do cinema português. Dois adolescentes que de crianças muito infelizes se transformam numa espécie de duendes da floresta, duas criaturas que contêm em si toda a dor, inocência e esperança do mundo e que vão interferir nas outras vidas para consertar a insustentável desdita que nelas reina. Nada de extraordinário, porém. António regressa à superficie do poço para onde se deixara afundar, as cores da realidade perdem as tonalidades de negrume, chuva, noite e deliquescência, vão-se os azuis e os castanhos, ressurgem amarelos e claridade - e é como se uma pitonisa se intrometesse entre nós e o filme e nos começasse a sussurrar coisas bonitas ao ouvido. Os duendes dançam entre luzeiros e regozijo, o filme de Manuel Mozos pode fechar porque a tempestade - aquela tempestade, pelo menos - já passou. 
Como se vê, Quando Troveja não tem uma história de seres singulares. É gente como eu e vocês, em percurso muito comum, aí se fixando o seu primeiro trunfo: nada de reflexões vastas, nada de recolocar o destino do país, nada de Portugal, anos 90, mas uma coisa íntima, estreita, breve. Simples não se dirá, porque é de extrema dificuldade o terreno que pisa - para credibilizar os vários níveis de realidade em que decorre, para materializar as suas personagens (e Miguel Guilherme faz o pleno do desamparo sem miserabilismos, no desempenho do protagonista), para dar dramaticidade a um quotidiano sem elementos de excepcionalidade. Simples não, que a morfina da vida é bem complicada." 
* Texto in Expresso de 5-2-2000

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segunda-feira, 28 de maio de 2018

Glória (Glória) 1999

Ivan vai viver com o pai, Vicente, chefe de estação dos caminhos de ferro de uma aldeia remota no interior de Portugal. As pessoas andam ocupadas com o seu trabalho, cada uma enredada na sua própria vida. Glória vive a sua carreira e parece afastar-se de tudo e de todos. O único lugar seguro do planeta é o refúgio de Ivan que fica feliz por poder partilhar o segredo com Glória. Um pequeno abrigo escondido no rio, debaixo da água que separa os mundos. Apetece ficar aqui...
"Manuela Viegas não pertence ao universo dos contadores de histórias. Talvez porque venha da montagem com incursões no ensino da Matemática e formação de economista, percebe-se que o seu terreno de eleição seja formal: modelos, linhas, circulações abstractas - nada de psicologia. Os materiais humanos estão antes de serem personagens (antes que um organizador de histórias as preencha de uma função, lhes afirme traços característicos ao serviço dessas histórias - processo corrente - ou então deles faça brotar um devir, uma acção encadeada, deles façam brotar histórias). Os humanos são pessoas - opacas - e o olhar da câmara não sabe, delas, mais nada do que aquilo que mostra. 
Há uma linhagem de "Glória". Começa, certamente, na fecundidade do universo de António Reis, passa pelo corte aberto por Pedro Costa, mas não tem a prodigalidade do primeiro (uma severidade impregnada de afectos), nem a aspereza do segundo. É, ao seu modo, um cinema mais moderno, pois não ilude a sapiência de uma estetização do sujo, do pobre, da barba de três dias que hoje circula como valor. E não só no cinema - veja-se a fiel coincidência do cartaz original do filme (com a assinatura de Julião Sarmento), infelizmente substituído, na campanha para o lançamento português, por um outro de muito menos adequadas notações visuais electrónicas. É uma estetização que parte de simulacros, que cultiva de maneira acentuada uma preocupação de perfeição, de um modo tão obsessivo que à proposta de deslumbramento a que não devemos furtar-nos, apetece contrapor a impetuosidade da unha que respasse a superfície da tela. - para ver se há algo por baixo, para ver se sangra. Não há maneira de o saber e não é licito apostar no escuro."
Texto in Expresso - 11-12-1999

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domingo, 27 de maio de 2018

Chuva (Chuva) 1999

Duas mulheres no interior de uma casa de paredes verdes. Luz reflectida do exterior projecta a sombra transparente das gotas de chuva nas suas faces. Falam de uma pessoa que lhes é comum, um homem que desapareceu, e agora estas duas mulheres só têm uma à outra para lembrar algo que lhes foi querido, um momento da sua vida em que foram felizes. Num momento anterior procuram-se nas ruas da cidade, na confusão e no ruído, o trânsito e os comboios.
Luis Fonseca fundou em 1993 a produtora Contracosta Produções, com Francisco Villa-Lobos, e foi assistente de realização em filmes como "Aqui na Terra", de João Botelho, "Os Olhos da Ásia", de João Mário Grilo, e anotador em "Porto Santo" de Vicente Jorge Silva, e "Glória" de Manuela Viegas, curiosamente filmes que já vimos, ou ainda iremos ver, neste ciclo. Também já aqui tínhamos visto anteriormente "Antes que o Tempo Mude", a sua primeira longa metragem, realizada em 2003, do qual este "Chuva" é uma espécie de antecipação, pela equipa, e pela temática, ambos com Monica Calle, uma actriz com quem trabalhou várias vezes, tanto no teatro como no cinema.
Na altura da estreia de "Antes Que o Tempo Mude", Jorge Leitão Ramos escreveu: "Do autismo de "Chuva" ao estremecimento de "Antes que o Tempo Mude" vai a distância entre o balbuceio complicado e o sopro vital que é a marca de um verdadeiro cineasta. Na novíssima geração de realizadores portugueses - emergindo do campo da curta-metragem - Luis Fonseca marca posição como um daqueles (um dos raros...) que vai valer a pena seguir com esperança."

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sábado, 26 de maio de 2018

Longe da Vista (Longe da Vista) 1998

Eugénio, um simpático sexagenário, cumpre pena numa prisão portuguesa. Para passar o tempo torna-se correspondente de um emigrante português nos Estados Unidos sob o pseudónimo e a personalidade forjada de uma mulher, Maria da Luz. Inventando uma história dramática, Eugénio, obtém algum dinheiro do emigrante que o ajuda a suportar os longos anos de prisão. Um dia, um jovem recluso, Vasco, vem partilhar a cela com Eugénio que lhe revela o seu invulgar passatempo, no qual aquele participa com as suas fotografias. Quando Eugénio morre, doente e desiludido, Vasco pega na caneta e começa a escrever uma carta ao emigrante. 
 Partindo de um argumento baseado em factos verídicos, João Mário Grilo assina um belo, comovente e inteligente drama psicológico sobre a malancolia, a solidão e a amargura da prisão. Rodado em décors reais de instituições prisionais, "Longe da Vista", é um irónico poema sobre a impossibilidade de deter o espírito humano, a partir da história do velho e desiludido recluso que para matar o tempo assume a personalidade de uma jovem mãe solteira com uma atribulada e infeliz vida que vai narrando em longas cartas ao seu correspondente nos Estados Unidos, um emigrante português em busca de uma mulher para casar que se apaixona e comove com as cartas da infeliz portuguesa, nunca imaginando tratar-se de um velho, doente e imaginativo recluso. "Longe da Vista" é um dos filmes mais surpreendentes de João Mário Grilo que deu a Canto e Castro um dos papeis mais marcantes da sua carreira no cinema.

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quinta-feira, 24 de maio de 2018

Porto Santo (Porto Santo) 1997

"Dois viajantes solitários, um navegador e uma repórter fotográfica, que se encontram na ilha de Porto Santo. A fotógrafa vai parar à ilha quando o avião que a transportava sofre uma avaria durante uma tempestade e é obrigado a fazer uma aterragem de emergência. Fascinada com a beleza do sítio, decide permanecer ali mais algum tempo. Entretanto, no mar alto, a tempestade interrompe também a viagem de um iate, obrigando o seu navegador solitário a regressar à terra firme. Na ilha há um pequeno museu dedicado a Cristovão Colombo. Consta que Colombo viveu lá durante o período do seu casamento com a filha do primeiro capitão donatário de Porto Santo. A figura mítica de Colombo vai unir os dois solitários.
Vicente Jorge Silva assinou em 1997 uma primeira obra que assenta, acima de tudo, em duas evidentes paixões: o cinema e a bela ilha de Porto Santo. Da memória de Colombo aos pássaros exóticos passando por essa dimensão de terra perdida no mar-oceano onde se cruzam destinos, itinerários e sortilégios, físicos e emocionais, "Porto Santo" é um belo, sereno e por vezes fascinante jogo de mistérios, acasos e memórias, protagonizado por dois solitários viajantes dos finais do século XX: uma fotógrafa e um navegador. Uma surpreendente primeira realização de Vicente Jorge Silva, servida pela magnífica fotografia de Mário Barroso e por um trio de excelentes actrizes: Leonor Silveira, Beatriz Batarda e Ana Zanatti." RTP

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quarta-feira, 23 de maio de 2018

Os Olhos da Ásia (Os Olhos da Ásia) 1996

Padre japonês da Companhia de Jesus, Julião Nakaura foi, em 1583, um dos quatro jovens embaixadores enviados a Roma pelos Jesuítas, como prova da cristianização do Japão. Cinquenta anos depois dessa gloriosa embaixada, que tanto fascinou as cortes da Europa, Julião é forçado a dar, de novo, prova de fé, desta vez perante a obstinação da milícia e dos tribunais do Shogun, que o querem forçar à apostasia. Julião resiste e será Miguel Chijiwa, um dos seus companheiros de embaixada, que o conduzirá, tragicamente, ao martírio. Traído por Cristóvão Ferreira, que não aguenta o sofrimento da tortura, Julião morre ingloriamente... ou talvez não. Aos olhos da Ásia, Nakaura permanece um dos símbolos mais profundos e indecifráveis do diálogo surdo entre o Oriente e o Ocidente. Daí, a razão deste filme.
"O martírio de Nakamura Julião e a apostasia de Cristóvão Ferreira são dos episódios mais fascinantes das relações luso-nipónicas do século XVII. Três séculos depois, João Mário Grilo foi aí buscar o entrecho central do seu filme. É um feliz regresso do cineasta à prática do cinema, três anos depois de "O Fim do Mundo" - até porque "Os Olhos da Ásia" aborda uma questão assaz ausente do cinema português: a esfera religiosa. Na verdade, mais do que uma hagiografia martiriológica, interessa a João Mário Grilo avançar para o interior das questões de fé. As linhas finais do filme - de um Cristóvão Ferreira assimilado à cultura do Japão dirigindo-se ao "fantasma" de Julião mártir - são, a este respeito, lapidares: "Eram palavras, Julião, eram palavras".
Ao apresentar "Os Olhos da Ásia" perante o público de Locarno, o director do festival, Marco Muller, declarou que ele fora o único filme dos filmes seleccionados que o fizera chorar - o que dá bem a dimensão do impacto que a fita pode provocar. Até pela "ausência do único culpado - Deus", como frisou Jean Rouch numa intervenção entusiasmada no debate que se seguiu à projecção". Expresso 24-08-1996

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terça-feira, 22 de maio de 2018

Corte de Cabelo (Corte de Cabelo) 1995

Rita nunca tinha pensado muito em casar - uma rapariga com 19 anos tem a vida pela frente ainda para mais se é bonita, e tem uns cabelos negros, negros, e longos como a noite... E no entanto aqui está ela no Centro Comercial das Amoreiras, a pensar em Paulo, rodeada do brilho dos anúncios luminosos e dos reflexos das montras, a caminha em direcção ao cabeleireiro, onde as amigas, impacientes, a aguardam... Hoje é o dia do casamento da Rita. Todas querem ajudar. Nucha, a manicura trata-lhe das unhas, Lena, o cabelo, as colegas da perfumaria, uma maquilhagem fabulosa. Mas... e se o Paulo só gosta de mim pela minha beleza? As amigas desesperam. Mas Rita já decidiu. Pega numa revista e ordena à cabeleireira que lhe corte o cabelo, assim, como este... muito curto!
"Foi em meados dos anos 90 que Joaquim Sapinho trouxe uma lufada de ar fresco ao cinema português com "Corte de Cabelo". O filme deixava uma sensação de novidade, sentida pela crítica e pelo público. Foi também a estreia de Joaquim Sapinho nas lides cinematográficas, marcada por prémios internacionais como o da Crítica para a melhor actriz (Carla Bolito) do Festival de Genebra e a nomeação para o Leopardo de Ouro do Festival Internacional de Cinema de Locarno de 1995. “Corte de Cabelo” trata do caos da vida urbana e da complexidade da vida a dois com um subtil sentido de humor." in Público

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sábado, 19 de maio de 2018

Ao Sul (Ao Sul) 1995

"Ao Sul" é a história de um homem (Henrique/Antonino Solmer) que regressa da Holanda a Portugal, depois de muitos anos de ausência, o coração dividido entre insatisfatórios amores abandonados, a vontade de retorno ao Alentejo natal como bálsamo para uma vida que percebemos ter sido gasta em coisas sem importância. Agarrar o tempo e a raiz - eis o seu projecto. A realidade que vem encontrar é-lhe, todavia, hostil. Em Lisboa, a memória de ocorrências na Guerra colonial reacende conflitos esquecidos; o Alentejo, incapaz de se reconverter a uma agricultura concorrencial, recebendo-o como um traidor que vem trabalhar para uma grande empresa holandesa. Um sopro de desespero atravessa "Ao Sul" como uma adaga suspensa sobre o pescoço de todos nós. Em Portugal abafa-se.
Fernando Matos Silva filma esta respiração sufocante, fazendo-se cruzar no filme uma miríade de personagens. Primeira constatação: a maior parte dessas personagens existe, quer dizer, tem, mesmo se a sua passagem é curta, densidade humana, peso, justificação dramática. Mérito, já agora, também dos actores. Não falo de Antonino Solmer, que desde já tem aqui o melhor desempenho da sua carreira cinematográfica,  mas dos outros, dos que pouco espaço e pouco tempo têm para nos convencer, como José Manuel Mendes, Luísa Cruz, Miguel Guilherme ou Manuel Cavaco: brevíssimas interpretações, perfeito entendimento. E se também há personagens frágeis (caso do avô louco, interpretado por Canto e Castro, ou de Liberato/João Cabral), isso se deverá mais a problemas do argumento que a inabilidade dos intérpretes. É que Fernando Matos Silva (que teve Maria Isabel Barreno como co-argumentista) não resistiu à tentação dos símbolos, a uma sobrecarga de elementos que desviassem a leitira do filme para lugares mais vastos, introduzindo, aqui e ali, desequilíbrios incomodativos, porque tornando óbvio o que melhor seria ir perdurando subterraneamente. Aliás, "Ao Sul" teria ganho muito com algum incremento de contenção.
Estamos em presença de um filme que gere precariamente os equilíbrios. Constatação que não deve iludir-nos o essencial. A força de uma narrativa que trás dentro de si uma convicção e uma força humana que nenhuns desequilíbrios anulam. A dor no rosto de Luísa Cruz, a luz do espaço alentejano, o homem que corre a medir o espaço de uma casa, seu novo território, uma cena de amor físico que cheira à mais funda solidão, são coisas destas que nos fazem guardar um filme e saber o que quer dizer pensar cinema. Coisas que estão em "Ao Sul", feito por um cineasta que sabe o que fala.
Texto no Expresso de 2-9-1995

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sexta-feira, 18 de maio de 2018

Três Palmeiras (Três Palmeiras) 1994

Lisboa, num dia de Inverno de 1994, entre as seis e as catorze horas. Uma mulher de quarenta anos desespera ("ter a idade que tenho e não saber nada de ter filhos") nas últimas oito horas que precedem o nascimento do seu primeiro filho. Entre risos e lágrimas, o seu companheiro, um homem muito mais novo do que ela, inventa-lhe histórias que coincidem com as horas que passam e lhe aliviam a dor. Trágicas, cómicas, caóticas e alucinadas.  No preciso momento em que, ao princípio da tarde, o cadáver de um dos personagens é retirado do rio, um recém-nascido solta os primeiros e emocionantes berros da vida. De manhã, Lisboa é assim.
"Um freixe de histórias entrecruzadas num filme que faz manhã em Lisboa. A cerzidura é precária, mas não o material de base onde onde se entrevê um sem número de hipóteses para outros tantos filmes, possíveis de construir isoladamente, com outro tempo, outra respiração. Filmes em géneros diversos, do melodrama ao musical, da história de amor ao registo fantástico, expostos como numa montra de charcutaria. E tal como aí, uma a uma, é provável que as "delicatessen" fossem de aprovar. Em conjunto é quase certo que os sabores se anulem e que haja indigestão em perspectiva". Jorge Leitão Ramos.

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quarta-feira, 16 de maio de 2018

Zéfiro (Zéfiro) 1993

Zéfiro é um filme sobre Lisboa, a última das cidades mediterrâneas, condenada ao Atlântico pelo estuário vastíssimo que a separa "da outra banda". A princípio, o trajecto escolhido parece ser o dos cacilheiros, os "ferry-boats" que ligam a margem Norte à Margem Sul do Tejo, na realidade, quando chega à margem sul, o filme muda inesperadamente de registo e, enquanto nos fala dos povos que sucederam ou coexistiram no Sul profundo de Portugal, cruza a planície do Alentejo, e desde do outro lado até ao mar, onde pára finalmente, a contragosto, como se quisesse continuar até ao Mediterrâneo. Depois volta desencantado para cima, e é já de noite quando atravessa o rio de novo.
Zéfiro é uma crónica histórica de Lisboa face ao Sul, onde a um discurso quase de carácter didáctico-informativo se sobrepõem fiapos de ficção, como se o espaço visitado segregasse, ele mesmo, uma vontade de imaginar, como se as planuras, os castelos ou as vielas tivessem lá dentro ficções.Um marinheiro pode, por isso, ser acometido de uma vontade de dança no convés de um cacilheiro, um misterioso cavaleiro árabe pode atravessar os campos do Alentejo, como uma visão, um homem pode esfaquear uma mulher nas sombras vizinhas a S. Vicente de Fora e fugir desabaladamente. E sobre tudo pode pairar a sombra errante de Corto Maltese. É quase um principio poético que enforma a construção de Zéfiro, de José Álvaro Morais, cineasta de pouquíssimos filmes, perguntamo-nos todos porquê, mas que sempre inventa, procura, joga, cria.
* Texto de Jorge Leitão Ramos.

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segunda-feira, 14 de maio de 2018

Encontros Imperfeitos (Encontros Imperfeitos) 1993

Mário esteve envolvido num atentado em África. Todos pensam que foi um acidente, mas Mário sabe que não foi. Escondido agora no Alentejo, sabe que, mais cedo ou mais tarde, "eles" o vão encontrar e, no entanto, não quer fugir não quer fugir com uma nova identidade enquanto não descobrir a sua paixão, Alice. Mas, "eles" encontram-no, mas Mário consegue escapar com a ajuda de Matilde, uma mulher fascinante que lhe dá abrigo...
Primeira, e única, longa metragem de ficção de Jorge Marecos Duarte, um realizador da geração da Escola Superior de Cinema de 1980/81, que tinha já um passado interessante na área, tendo trabalhado como assistente de realização de Fonseca e Costa e Fernando Lopes, além de ter produzido "Sem Sombra de Pecado". Para a sua primeira longa de ficção Jorge Marecos Duarte tentou construir um "thriller" inteligente combinando acção e muitas reviravoltas psicológicas, e de certa forma até conseguiu. Era a primeira vez desde "O Lugar do Morto" que o cinema português lançava um filme tão declaradamente comercial, mas os resultados ficaram muito aquém do anterior, tendo "Encontros Imperfeitos" saído de circulação por muito tempo.
Vale também pela recordação do excelente elenco: Diogo Infante (uma quase estreia, era apenas o seu terceiro filme), Fátima Belo, Paula Guedes, Nicolau Breyner, João Grosso, João Perry, Maria João Luis, Curado Ribeiro, e o omnipresente Canto e Castro.

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domingo, 13 de maio de 2018

O Fim do Mundo (O Fim do Mundo) 1993

Foi por coisa pouca. Mas o certo é que Augusto Henriques (Henrique Viana) matou Conceição das Neves (Adelaide João). Tudo por causa da água de um riacho. Agora, aos 65 anos de idade, Augusto vai enfrentar, pela primeira vez na sua vida, a prisão, um julgamento, polícias e tribunais. E ainda por cima ele até nem se acha culpado. Afinal de contas foi a mulher que se baixou porque ele tinha feito pontaria ao ombro.
Mais um episódio da série da RTP "Os Quatro Elementos", representando a Terra, é, ao mesmo tempo, o melhor episódio desta pequena série, e um dos melhores filmes de João Mário Grilo. Grilo já tinha filmado a história do passado em "O Processo do Rei", e desta vez fala sobre a história contemporânea, abordando temas como o despovoamento do interior e a emigração. É um filme de poucas falas, onde se fala praticamente o essencial, e cada palavra tem o seu peso na caracterização de cada personagem, mas mesmo assim vale pela excelente prestação dos actores. Carlos Daniel tem a sua melhor prestação em cinema, e José Viana e Alexandre Lencastre também brilham a grande altura.
Sendo ele um telefilme feito para a RTP, "O Fim do Mundo" andou "perdido" durante muito tempo, nunca tendo lançamento comercial em DVD ou VHS, mas merece ser visto como um filme por inteiro. Foi também exibido no Festival de Cannes em 1993.

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sábado, 12 de maio de 2018

Das Tripas Coração (Das Tripas Coração) 1992

Dois gémeos ruivos de vinte anos, Beatriz e Armando realizam o seu sonho tornando-se bombeiros. No exercício dessa função Armando acode a uma linda vizinha em apuros. Entre eles nasce uma calma amizade, mas que se transforma nas conversas com a irmã, numa paixão escaldante. Beatriz começa então a sentir estranhos sintomas: ouve fogos! Para se proteger do ruído destas imaginárias fogueiras ela compra um walkman, coisa que contribui para a isolar dos outros e sobretudo do irmão. Até que, por acaso, descobre a cura: beijos. É simples: basta que alguém a beije para que o silêncio volte à sua cabeça. Passa então de homem em homem, escolhendo de preferência turistas, que ela não verá nunca mais....
Alguns dos filmes portugueses mais interessantes dos anos noventa eram sobre a adolescência, e a forma como tentavam construir a sua subjectividade. Joaquim Pinto constrói uma bela, tocante e intensa história em torno de dois irmãos gémeos, um rapaz e uma rapariga, ambos bombeiros que se deixam perturbar muito mais pelo fogo interior das suas paixões, desejos e receios, que pelo fogo real que combatem no quotidiano. Pinto mais uma vez traça o retrato de jovens almas em conflito num filme sensível e amargo que conta com a participação de Leonor Silveira, Armando Cortez e Márcia Breia no elenco.
Contribuição de Joaquim Pinto para a série “Os Quatro Elementos” (co-produção Madragoa, RTP, La Sept) em que lhe coube filmar o Fogo, ao lado de João César Monteiro (a Água: "O Último Mergulho"), João Mário Grilo (a Terra: "O Fim do Mundo") e João Botelho (o Ar: "No Dia dos Meus Anos").

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sexta-feira, 11 de maio de 2018

Rosa Negra (Rosa Negra) 1992

Rosa Negra. Uma cidade que se encaixa na serra. Um comboio atravessa os campos. Uma mulher, Fernanda, regressa nele, profundamente ferida, após uma conjugalidade interrompida. Um homem, António, regressa no mesmo comboio. Foi, em tempos, forçado a partir. Será agora julgado por um crime que não cometeu. Na estação, António encontra Mariana que ele não vê desde miúda. Rosa Negra fica entre a serra e a cidade. Ali se encontram António e Mariana. Ali começa tudo. A vida.
"Com uma intensa carreira ligada à realização e produção televisivas, bem como à passagem pela Universidade Nova de Lisboa enquanto docente, Margarida Gil é provavelmente a mais canónica das cineastas referidas nesta breve listagem. Tendo sido casada com João César Monteiro, identifica-se com uma geração de realizadores da qual fazem parte Alberto Seixas Santos, Fernando Lopes, Paulo Rocha ou Rita Azevedo Gomes, entre outros, que buscaram incessantemente uma ligação entre o cinema nacional e o cinema de autor. A actual presidente da Associação Portuguesa de Realizadores nasceu na Covilhã, em 1950. Quatro décadas mais tarde, regressou às origens para filmar uma história de memórias e desencontros, dando a conhecer uma Serra da Estrela permanentemente fustigada por incêndios. Os diálogos, escritos com a colaboração de Maria Teresa Horta, oferecem o mimetismo de uma cidade fechada, com a qual a cineasta parece ter contas a ajustar. “Adeus, terra adormecida, adeus, que me vou embora”, canta Teresa Salgueiro, na composição propositada de João Gil. Pela narrativa perpassa a partilha de experiências da condição feminina, sintetizada na fala de uma personagem: “Eu… antes de mim, a minha mãe, filha de outra mulher.” Gerações que transmitem a melancolia, a falta de suporte, a vontade de algo que parece sempre mais difícil de atingir em virtude de uma condição. Como o comboio que vem de Lisboa e que, percorrendo paisagens idílicas, tarda tanto em chegar. Seriam também estas as últimas interpretações de Mário Viegas e de Zita Duarte." do site Pála de Walsh.

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quinta-feira, 10 de maio de 2018

Um Passo, Outro Passo e Depois... (Um Passo, Outro Passo e Depois... ) 1991

Início da carreira de Manuel Mozos, Um Passo, Outro Passo e Depois… tornou-se uma obra praticamente invisível. Porque, depois da perda dos materiais originais, só pode ser visto numa versão transcrita para vídeo, com péssima imagem (sem definição, cheia de “flou”, com as cores alteradas e deterioradas) e som em não muito melhor estado, que não é Um Passo, Outro Passo e Depois…. Apenas, infelizmente, a sua ruína.
 E que podemos adivinhar a partir deste pequeno destroço sobrevivente? Em primeiro lugar, uma gritante contiguidade entre Um Passo… e o Xavier que pouco depois começaria a ser rodado. É verdade que alguns actores (Pedro Hestnes, Sandra Faleiro, Cristina Carvalhal) passaram de um filme para o outro, e que esse pormenor influencia a sensação de proximidade. Mas esse pormenor é apenas isso, um pormenor. Porque o tipo de personagens é bastante semelhante: jovens mais ou menos perdidos em paisagens semi-urbanas, ou na fronteira entre o urbano e o rural (a julgar pelo genérico final, o filme foi rodado na zona de Oeiras e Paço de Arcos). Os lugares são também bastante semelhantes: escolas, cafés, cenários duma espécie de “urbanismo incompleto” (ver a sequência nocturna, nas obras). O modo narrativo, mesmo que aqui se aposte numa linearidade que não seria a de Xavier, contém já alguns sinais do que Mozos depois desenvolveria com outro fôlego e outra amplitude: repare-se nas elipses, nos saltos espaciais e temporais, nos espaços em branco que ficam por preencher nas relações entre as personagens, espaços esses que o decorrer do filme se encarrega de esclarecer (ou não). 
 A que podíamos acrescentar a profunda melancolia que percorre todo o filme – e de que o “confronto” entre o grupo de jovens e o velho contínuo Nogueira (Canto e Castro) é simultaneamente um veículo e o ponto de chegada. Nogueira – grande interpretação de Canto e Castro – é uma personagem fascinante, no seu mutismo solitário, na sua marginalidade auto-imposta (“a minha vida está muito bem assim”, diz a certa altura). Mas também é tudo menos uma personagem “transparente”, e há uma relação de poder (o magro poder que lhe confere o estatuto de contínuo) muito interessante e muito equívoca entre ele e o bando dos miúdos: a noite da perda das chaves, passada entre o orgulho e a humilhação, confere à personagem uma complexidade fascinante, uma espécie de brilho “opaco” que a vai tornando cada vez mais perturbante.
Texto de Luis Miguel Oliveira

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terça-feira, 8 de maio de 2018

O Processo do Rei (O Processo do Rei) 1990

Portugal oferecia nesse tempo um estranho espectáculo à Europa. D. Afonso, filho do feliz D. João de Bragança, reinava, era louco e imbecil. A mulher, filha do Duque de Nemours, prima de Luís XIV, ousou conceber o projecto de destronar o marido. A estupidez do rei justificou a audácia da rainha. Apesar de ser senhor de uma força muito além do normal, de ter dormido durante muito tempo com a mulher, foi por ela acusado de impotência, e tendo Marie Françoise adquirido no reino, pela habilidade, o que Afonso tinha perdido pelo furor, fê-lo aprisionar (Novembro 1667) e depressa obteve de Roma uma bula que lhe confirmou a virgindade e lhe abençoou o casamento com o cunhado, Pedro.
Terceira obra de João Mário Grilo, oito anos depois de "A Estrangeira", um filme que foi selecionado para Veneza. Desde os anos oitenta que é um dos realizadores mais certeiros, filmando quase sempre com algum tempo de intervalo, e quase sempre certeiramente. "O Processo do Rei" era sobre um tema que ele viria a debruçar-se novamente em "Os Olhos da Ásia", a ficção história onde o cinema encontra umas verdades na dobras do tempo, de outras formas de quotidiano. Nestes dois filmes há um forte sentido de tragédia, como se o mundo contivesse, em si, a capacidade de ser feliz.
Vamos estar de olho neste realizador durante este ciclo, e podem esperar dele mais quatro filmes. 

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segunda-feira, 7 de maio de 2018

A Mulher do Próximo (A Mulher do Próximo) 1988

O mundo pacato da família Castro Silva é repentinamente abalado pela notícia do falecimento do pai, Mário, na companhia da sua jovem amante, Terry, num brutal acidente de viação. Quando a viúva e a filha, Cristina e Isabel, se deslocam à casa mortuária para identificarem o cadáver, descobrem que o pai da rapariga vitimada é António, outrora amigo de Mário e grande amor de Cristina...
"Expondo-se, em auto-ironia, no altar de um utilitarismo social que se espera também ele cumpra, este filme, esta comédia mordaz, faz ponte e ruptura com a obra anterior de Fonseca e Costa. Ponte, pela permanência da burguesia desocupada como protagonista do seu cinema, ruptura pelo abandono de referências directamente politico-ideológicas. História muito bem arquitectada, com um elenco saboroso (dando oportunidade ao primeiro grande papel no cinema de Carmen Dolores e  um come back por cima de Virgílio Teixeira, e a actriz brasileira Fernanda Torres na composição de mais um retrato de mulher a juntar à galeria de Fonseca e Costa - ao lado de Maria Cabral em "O Recado", Victoria Abril em "Sem Sombra de Pecado, ou de Assumpta Serna em "Balada da Praia dos Cães", "A Mulher do Próximo" constituiu um sucesso de público, confirmando o realizador na linha da frente das preferências dos espectadores portugueses." JLR

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domingo, 6 de maio de 2018

Matar Saudades (Matar Saudades) 1988

O filme passa-se numa aldeia de Trás-os-Montes e tem como protagonista um homem que, depois de ter emigrado para França, regressa à sua aldeia onde tudo parece ter mudado. Abel (Rogério Samora) resolve regressar depois de ter recebido uma carta do irmão a informá-lo que algo se passa com Teresa (Teresa Madruga), a noiva que deixou em Portugal. Enquanto a aldeia se prepara para a representação do "Acto da Paixão", em que Teresa participa, Abel prepara-se para a vingança. 
Fernando Lopes, a partir de um excelente argumento, assinado por ele próprio de parceria com Carlos Saboga e António Pedro Vasconcelos, realizou em 1988, "Matar Saudades", uma terrível e tocante história de paixão e morte numa esquecida aldeia de Trás os Montes. "Matar Saudades", onde se refletem alguns dos temas mais caros ao cinema de Lopes, como a nostalgia do passado e as dificuldades de adaptação à inevitabilidade transformadora do presente, é, na verdade, um belo, agreste e amargo filme, que conta com um grande elenco onde se destacam os nomes de Rogério Samora, Teresa Madruga e Eunice Muñoz.

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sexta-feira, 4 de maio de 2018

Flores Amargas (Flores Amargas) 1988

Um dia de festa na comunidade timorense encalhada no Vale do Jamor. Um guerrilheiro que veio de Timor e a sua história. Um olhar sobre um povo abandonado.
Em Maio de 1989, pouco depois de "Flores Amargas" ter sido estreado na RTP, a sua realizadora, Margarida Gil, dava uma entrevista ao Diário de Lisboa. E, à pergunta "quais foram as reações ao filme?", respondia: "Permitiram-me perceber que o desleixo em Portugal é ainda maior do que eu pensava. Ainda supus que o filme levasse as pessoas a falarem de Timor, mas nem isso". Todos estes anos volvidos, como que por ironia, não é Flores Amargas que faz falar de Timor, mas o facto de o futuro de Timor ser o que sabemos que torna mais aguda a consideração que o filme merece.
Originalmente pensado com um dos episódios da colecção "Fados" - e como tal mostrado em 1989 - Flores Amargas é uma ficção de cariz paradocumental. Filmada junto dos refugiados timorenses atirados pela descolonização para o Vale do Jamor, tornando-os como actores de uma trama-pretexto, o essencial do filme está ao nível do testemunho e talvez mereça mais respeito como gesto ético e solidário que como obra estética. É a descoberta dos rostos, dos olhares, da perplexidade das coisas a sobrepor-se a uma hipótese de ficção tecida com fios tão frágeis que, verdadeiramente, não chega a existir. 
Anote-se que foi para aqui que João Gil compôs o tema musical dedicado a Timor que, depois, teve a função de se tornar um quase-hino.
Texto de Jorge Leitão Ramos

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quinta-feira, 3 de maio de 2018

O Nosso Futebol (O Nosso Futebol) 1985

"Portugal : cem anos de futebol e de história. Joga-se, desde o princípio, um insuspeitável jogo feito de inúmeros jogos parcelares num permanente confronto de opositores que se sucedem povoando sempre os mesmos dois meios-campos : Portugal. Que história é essa que se conta? Que aguerridos jogos, afinal, se vê jogar?
O nosso futebol : futebol da nossa história. Desde 1888. Os aristocratas dos primórdios contra os inglêses, o Ultimato, o «jogo do coice», a insolente desforra do «Grupo do Destino», o regicídio de 1910, o Lisboa-Madrid, o futebol da república, confrontos na União, o Carcavelinhos, a plebe em acção, a Grande Guerra, vencedores e vencidos, o quadro eléctrico, as multidões. A crise, os golos de Salazar, milhões de adeptos, o Estádio Nacional, heróis lendários, os Cinco Violinos, a vitória contra os ingleses, Fátima, Futebol e Fado. A televisão. Anos sessenta : o apogeu e o Totobola. O Benfica-Barcelona, a Taça das Taças, a Minicopa, Eusébio, os negros das colónias no estádio, avindos irmãos, o quebrar da onda, o 25 de Abril, verdes e encarnados, o transe. Novas vitórias de velhos clubes. E hoje, que vontades, que futuro para as incalculáveis lutas?
A história do futebol em Portugal, desde os finais do século XIX até meados dos anos 80 do século XX, num documentário muito particular de Ricardo Costa que estabelece paralelos entre a História do país e a história do futebol, entre os jogos que fizeram história e os Jogos da História. Por um lado, evoca a progressão do futebol, dos clubes, dos jogadores e das associações desportivas. Por outro, reflecte sobre a trajectória do país, do Ultimato ao 25 de Abril. Há quase vinte anos, este filme sobre as subtilezas e as coincidências, históricas e desportivas, que ligavam o futebol à política, foi encarada com muitas reservas e perplexidade. Hoje, já ninguém pensa o mesmo.
A narrativa é conduzida por António Vitorino d´Almeida, que também é o autor da música."

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quarta-feira, 2 de maio de 2018

Pelos Pergaminhos do Cinema Português

O Cinema Português nunca teve um caminho fácil, desde os tempos mais primórdios até à actualidade. Nunca houve muito dinheiro para fazer filmes, e infelizmente também nunca houve muito público para os ver, porque não é respeitado pela grande maioria da nossa população, embora seja muito reconhecido fora de portas.
Ao longo dos quase dez anos dos Thousand Movies (One e Two) o cinema português sempre um cantinho muito especial. Foram partilhados mais de 300 filmes portugueses, e vários foram lançados aqui pela primeira vez na internet, não por serem novinhos e acabadinhos de saír, mas porque eram documentos de visão obrigatória, não só para a nossa população mas também para o mundo inteiro..
No ciclo que hoje começa, e que se prolongará até ao final do mês (com 25 filmes), iremos visitar uma época fulcral nesta filmografia: a que vai desde meados dos anos 80, até ao início do século 21. Foi uma época bastante criativa, em que o cinema português andou claramente aos solavancos. Muitos filmes estreavam, e pouco depois desapareciam do mapa, como se tivessem deixado de existir.
Estes 25 filmes, foram escolhidos livremente, e incluem algumas dessas raridades que desapareceram da circulação pelas mais variadas razões. Alguns deles, pelo menos quatro, até poderão ser revistos pela primeira vez neste ciclo.
Até amanhã, e bons filmes.

terça-feira, 1 de maio de 2018

Penn & Teller Get Killed (Penn & Teller Get Killed) 1989

O duo Penn e Teller interpreta-se a si próprio nesta comédia de humor negro, um relato satírico do que o público imaginaria que ambos fazem nas suas vidas quotidianas. Boa parte do argumento envolve Penn e Teller a fazer brincadeiras um com o outro, e ainda com a namorada de Penn, Carlotta (interpretada por Caitlin Clarke). A piada final, como implica o título do filme, tem sérias consequências para os três.
Derradeira obra de Arthur Penn para o cinema, porque depois deste filme continuou a fazer trabalhos para a televisão, não muito revelantes. Este Penn do título não é Arthur Penn, mas sim o comediante Penn Jillette, que com Teller faz uma dupla de comediantes que esteve muito em voga nos anos oitenta e noventa.
Depois de uma carreira tão rica em cinema, foi uma triste forma de terminar a carreira, para Arthur Penn. E assim também termina este ciclo, que espero que tenha sido do vosso agrado.
O filme não tem legendas.

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Noite Gótica (Dead of Winter) 1987

Katie McGovern (Mary Steenburgen) é uma actriz desempregada que vive com o marido e o irmão. Vai a uma audiência que encontra num jornal, e é seleccionada para filmar um pequeno vídeo que será enviado ao director para aprovação. O senhor Murray (Roddy McDowell) é o homem quem assegura a audição, e leva Katie para uma mansão isolada onde irão gravar o video. Mas as coisas não correm bem e Katie apercebe-se que foi feita prisioneira...
Lançado discretamente nos cinemas em 1987, para pouco depois passar para a televisão por cabo paga, "Dead of Winter" continua como um filme de género incompreendido, não é um thriller de suspense, ou uma entrada no terror gótico, mas sim um shocker ao estilo de Grand Guignol, que começa com um gancho inocente.
O argumento de Marc Shmuger e Mark Malone (uma adaptação não creditada de um livro de Anthony Gilbert chamado "The Woman in Red" e que tinha sido anteriormente filmado num filme chamado "My Name is Julia"), tem alguns buracos, mas o realizador Arthur Penn consegue contornar essas questões com um elenco forte e convincente, principalmente Steenburgen, que era uma actriz de topo na altura.

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