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Nesse universo onde tudo se pode comprar como tudo se pode comer, Moseby é obrigado a dizer a uma adolescente estilhaçada, essa Melanie Griffith que possivelmente traça o seu último caso, que ter dezasseis anos ou quarenta é igual ao litro. Não se fica melhor. Sobre a procura da obrigatória identidade para sempre. E diz-lhe isto sem gemer ou gritar, mas com uma gravidade fina e calada que tece a construção e progressão deste filme de consciência ferida. Ferido mas nunca fascinado por qualquer iconografia do looser, niilismo ou celebração, numa frontalidade que tem a ver com compreensão e amparo familiar. Pode-se ter visto e experimentado mais, ter partido a cabeça a alma e o coração, mas as certezas, ali ou aqui no século XXI dos eventos que substituíram a verdade e o comprometimento, é sempre mais chão escorregadio. Os movimentos nocturnos do título devem ter a ver com esses raros que só podem respirar bem pela calada, quando o grande embuste e a grande piada fica suspensa, pela noite dos cantos dos bichos e das músicas das crianças; junto dos que se afogam em bares ou nas sarjetas da falta de ambição que pode ser a mais justa ambição; essas casualidades que já não esperam grandes coisas, não acreditam em milagres ou no romanesco aconchegante, e então pode acontecer um vislumbre ou um encaixe como esse que Moseby teve junto a essa aparição feiticeira surgida das águas; momento, vamos sabê-lo posteriormente, também encenado, mas é preciso já estar completamente vazio para não se perceber da excepção ou da maravilhosa ilha que tão serenamente emergiu e explodiu aí, no momento mais belo e apaziguado.
"Night Moves" é assim e por tudo aonde não se pode aceder, o mais sossegado e o mais exposto momento de Penn. Uma acalmia urdida num mal-estar e numa doença que é muito mais evoluída do que a dos eléctricos e furiosos filmes passados. O sexo, a nudez, o oferecimento ou a procura, tudo isso aparece sem o fulgor do desejo. Tudo tem valor de mera troca, de vingança, de mal mesquinho. Embaciamento e entropia onde se avança a custo, sempre de pé atrás, cada um por si. Como no desporto americano, corre quem estiver com a bola. Já não há trabalho de equipa, entreajuda, solidariedade. Sem se dar por isso, estamos perante um dos mais vertiginosos climas, temperamentos, ventos dos anos setenta. Essa Nova Hollywood que proporcionou visões tão cansadas, terminais, funéreas como esta. Para se perceber agora que as tiradas sobre os filmes de Eric Rohmer não eram maldosas, não se podiam era aplicar no contexto. Pois como Rohmer, Penn também sabia que é sempre questão de envolvência e não de acessório; questão ontológica primordial, nunca efeitos que se evaporam sem o apelo da matéria. Se Moseby acaba a navegar, ainda a navegar, com tanto cadáver em torno, é porque ainda restará algo. Nem que seja só navegar. Mas navegar ainda. Pertence a um tipo não muito gregário que inclui o George C. Scott de "The New Centurions ", os espantalhos de "Scarecrow", porventura o corredor louco de "Vanishing Point". Tipo que ignora o sábio conselho "se não os podes vencer, junta-te a eles". E paga por isso. "You bastard! Bastard! Bastard!" é o que esse detective vocifera para si mesmo e para quem já não o pode escutar. Depois a câmara sobe, sobe, e ele continua a navegar. Algo se esfuma. E não temos nova situação. Assim, seco.
* Texto de José Oliveira
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