Vocês Ainda Não Viram Nada é o penúltimo filme de Alain Resnais e foi um dos mais injustiçados, já que na minha opinião é o melhor filme do cineasta francês de todo o século XXI. Infelizmente só foi estreado em Portugal após a sua morte e juntamente com Amar, Beber e Cantar que, sendo mais popular e reconhecido como testamento final do realizador, acabou por o ofuscar imerecidamente. Trata-se da adaptação de duas peças do dramaturgo Jean Anouilh (Eurydyce e Cher Antoine Ou L`Amour Raté) que foram fundidas num único argumento por Resnais e Laurent Herbiet, que já tinha colaborado em As Ervas Daninhas.
Renais quis afastar de imediato a ideia de que queria fazer deste filme uma espécie de testamento e nem por o tema mais uma vez se relacionar com a morte, deveria ser visto como uma espécie de premonição para um cineasta que tinha 90 anos na altura da sua realização. «Se fosse uma espécie de testamento nunca teria a coragem e a energia para fazer o filme», afirmou o cineasta na altura da sua apresentação no Festival de Cannes. Pelo contrário, deve ser entendido como uma homenagem a Jean Anouilh cuja peça Eurydice de 1942, teve um forte impacto no então jovem Resnais. O filme tem uma construção elíptica por trás de uma simplicidade desarmante. Inicia-se com uma série de telefonemas feitos pela mesma pessoa para um conjunto de actores que são tratados pelos próprios nomes. Trata-se do mordomo do célebre dramaturgo a anunciar a morte do seu patrão e a convocá-los para um último encontro em sua casa, para conhecerem o seu desejo final. Movidos pela tristeza e pela curiosidade nenhum deles falta e reúnem-se na ampla casa do dramaturgo, com reminiscências vagas ao palácio onde decorre a acção de O Último Ano em Marienbad. Os actores vão assistir a uma nova representação de Eurydice, por uma companhia de teatro constituída por jovens actores que lhe tinham enviado uma gravação. Os actores mais veteranos constituiriam uma espécie de plateia crítica que apreciaria o desempenho dos seus colegas mais novos. Entre os actores/espectadores havia duas gerações que consistiam em duas representações da peça em épocas distintas. Somos colocados perante dois focos de atenção complementares: a do desempenho dos actores mais jovens e a reacção dos mais velhos. O que é absolutamente assombroso neste filme é que, a partir de certa altura, os actores mais velhos, que ainda se recordam do texto da peça, começam, primeiramente quase em surdina, depois de forma cada vez mais aberta, a representar o texto. A partir de certa altura, nenhum deles fica preso às cadeiras em que estava sentado e transformam o auditório em que placidamente assistiam à representação, num novo palco. O trabalho de interacção entre os três grupos (um no vídeo e dois no auditório) é absolutamente assombroso. Resnais consegue fazer interagir os diferentes momentos de representação sem que se perca o fio à meada da peça, o que não é tarefa fácil. Mas o que é absolutamente notável, é o tom comovente do grupo que vive a representação como um retorno a memórias passadas. Resnais baralha intencionalmente os planos, pondo deixas de um dos planos de representação que são respondidos por outro. A veia insubmissa do velho mestre sempre a funcionar...
Em Vocês Ainda Não Viram Nada regressa em força, talvez mais do que nunca, a sua paixão pelo teatro, como componente estruturante do seu cinema. É um filme sobre a memória, sobre as relações entre a realidade e a ficção por um lado e os diversos níveis da própria ficção, por outro, sobre o papel da imaginação. E é um filme sobre a vida e a morte, mas, em momento algum, é um filme autobiográfico ou uma espécie de testamento. Aos 90 anos Resnais estava mais jovem do que nunca....
*Texto de Jorge Saraiva
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