Na altura em que foi lançado em Portugal, Providence gerou uma forte polémica entre os cinéfilos. Este era apenas o segundo e último filme que Resnais faria na década de 70, contrastando com a actividade mais intensa dos anos 60, aqueles que verdadeiramente consolidaram o seu prestígio. Mas lançaram também o lastro de um cineasta difícil, elíptico, defensor da chamada «obra aberta», na qual muitos elementos centrais têm uma abordagem propositadamente ambígua, de forma a que cada espectador a possa interpretar da forma que julgue mais adequada.
A razão da controvérsia que Providence gerou em Portugal (aliás como um pouco por todo o lado) é que se trata do mais hermético filme de Resnais. Claro que numa época em que predominava o cinema militante e com uma mensagem clara de apelo à acção transformadora da sociedade, este filme ganhou muitos detractores que acusaram Resnais de um certo pedantismo intelectual. O tempo mitigou este reacção e Providence hoje é encarado como uma obra prima, um dos mais sérios candidatos a melhor filme do realizador.
O filme tem a característica de ser o seu único originariamente falado em inglês. Adapta de forma muito livre uma peça de David Mercer. Na véspera do seu 78º aniversário, Clive Langham, escritor renomado e solitário, afunda-se doente e alcoólico. Resolve então escrever sobre a sua família, os dois filhos e a nora. Mas fá-lo de uma forma absolutamente perversa e frequentemente desconexa. O seu filho Claude é transformado num advogado diabólico e sem escrúpulos, com um prazer mesquinho em ser algoz das suas vítimas. A sua nora é apresentada como uma mulher frívola e sedutora disposta a atraiçoar o marido com o seu próprio irmão Kevin, que aqui surge sem vontade própria e enigmático. Enquanto o escritor se diverte imenso com a sua imaginação desbragada, os espectadores assistem de forma perplexa ao desenrolar da acção por si imaginada, como se ela fosse a realidade, naquilo que o próprio cineasta chamou de «divertimento macabro». O ambiente sombrio (embora o cineasta tivesse falado de uma comédia) contrasta com a segunda parte do filme, como se a calma apolínea inevitavelmente sucedesse à tempestade dionisíaca, em que na sua propriedade (Providence) se reúnem os seus três familiares. Aí ficamos a perceber que não existe nenhuma correspondência, nem existencial, nem afectiva, entre as personagens e a sua caracterização na pena tresloucada do escritor. Esta segunda parte do filme, revela-nos uma família harmoniosa no dia do aniversário do escritor. Alguns críticos, como Alain Robbe-Grillet, o argumentista de O Último Ano em Marienbad, foi um desses críticos. Mas é mais um aspecto desconcertante de Providence pelas evidentes desconexões entre as duas partes do filme.
O que nos coloca perante a questão central de Providence, pelo menos na forma como eu o interpreto; o processo de elaboração criativa em arte, a sua ligação à realidade e o papel desempenhado pela imaginação. Resnais referiu-se a uma metáfora sobre a criação e a desintegração. Mas as possibilidades de abordagem são tantas, que cada pessoa pode fazer as que quiser, recorrendo para isso a todo o tipo de metodologias de análise, desde a Psicanálise até qualquer tipo de corrente filosófica. Poucos filmes na história do cinema, tiveram essa capacidade de permitir releituras sucessivas e de continuar teimosamente a ocultar-se ao seu desvendamento.
O trabalho de realização é perfeito como uma atenção cuidada a todos os pormenores. A atmosfera visual criada por Jacques Saulnier é pesada e claustrofóbica com predominância (sobretudo na primeira parte) para as cores sombrias em detrimento das cores vivas. O desempenho dos actores é magnífico com destaque para Dirk Bogarde e John Gielgud que afirmou que este foi o melhor filme em que participou em toda a sua vida. Pelo papel central que desempenhou na obra do cineasta, pelo desafio que representa para quem o vê (e revê vezes sem conta como é o meu caso), Providence é um momento inigualável na história do cinema.
* Texto de Jorge Saraiva.
* Texto de Jorge Saraiva.
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