O Meu Tio da América é um filme singular na carreira de Alain Resnais, sobretudo pelos seus contrastes deliberados e pela polémica que suscitou. Isto porque é uma das suas obras mais bizarras, uma espécie de documentário ficcionado em torno das teorias do psicólogo e filósofo francês Henri Laborit. Sendo um filme que se reivindica de um inesperado didactismo, acabou por se tornar na sua obra mais popular junto do público. Tal não impediu que tivesse sido, tal como o anterior, Providence, alvo de grande controvérsia, não só pelas teses defendidas por Laborit, como pela ligação que existe entre essas teses e as personagens principais do filme.
Se pensássemos apenas nas três personagens principais do filme, estaríamos seguramente no mais convencional filme de Resnais. Acompanhamos o percurso de vida de Jean um escritor e político de origem burguesa, arrogante e pouco escrupuloso, de Janine, de origem proletária e filiação comunista e que aspira a ser actriz, embora não tenha grande sucesso e René, um jovem de um meio rural, tímido e introvertido e de formação fortemente católica e tradicionalista. Durante grande parte do filme, vamos conhecendo as aventuras (e sobretudo) as desventuras das três personagens de forma intercalada, sem que nada as una entre si. O ponto de contacto reside nas intervenções explicativas de Laborit, que à luz das suas concepções do comportamento humano, vai justificando determinado tipo de atitudes dos protagonistas, embora nunca se reportando directamente a eles. Estas explicações feitas pelo próprio cientista, que aqui desempenha um inusitado papel de actor, torna, a um tempo, o filme fascinante e intrigante. As suas concepções heterodoxas no campo da Psicologia que procuram estabelecer pontes entre teorias tão contraditórias como o behaviorismo e a psicanálise, deixam-nos razoavelmente desconcertados. Afinal as histórias aparentemente banais destas três figuras que são apresentadas sem grandes artifícios e de forma razoavelmente linear. são susceptíveis de análises teóricas e de aprofundamentos diversificados. alguns dos quais nos remetem para uma aplicação aos seres humanos das concepções do fundador da Etologia, Konrad Lorenz, influência assumida por Laborit. Daí se justificarem alguns interlúdios com experiências de ratos em laboratórios, ou até cenas em que os rostos humanos são substituídos por focinhos de animais. Só numa fase adiantada, as diferentes personagens se cruzam. de forma relativamente oblíqua: Jean torna-se amante de Janine, mas são afastados um do outro, pelo ardil da mulher de Jean que inventa uma doença terminal para apelar à consciência de Janine; esta acaba por se tornar patroa de René esquecendo as suas origens comunistas, contribui para lhe tornar a vida negra, antecâmara do seu futuro despedimento.
O Meu Tio da América recebeu incontáveis elogios, foi candidato a Óscar do melhor filme estrangeiro e ganhou vários prémios do cinema francês. Tornou-se num dos filmes mais citados e amados do cineasta francês, naquela mistura extravagante entre ficção e documentário e no paralelismo estabelecido entre as teses de Laborit e as três histórias aqui desenvolvidas. É também, juntamente com o filme seguinte, A Vida É Um Romance, aquilo que estará mais próximo de um filme de grande produção, com os consagrados Nicole Garcia e Roger Pierre. a estrela emergente, Gerard Depardieu e a estreia, embora num papel secundário, de Pierre Arditti, que se tornaria num actor habitual em quase todos os seus filmes posteriores. No entanto, nenhum destes aspectos o torna num filme mainstream ou convencional. Não é um dos seus filmes da minha preferência, mas continua a ser um objecto singular e suficientemente perturbador para justificar um visionamento atento.
*Texto de Jorge Saraiva.
*Texto de Jorge Saraiva.
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