Corações é a segunda incursão de Alain Resnais no universo literário do escritor inglês Alan Ayckbourn, de quem tinha adaptado doze anos antes, o díptico Smoking/No Smoking e que agora se debruça sobre a peça Private Fears In Public Places. Para os mais ortodoxos seguidores de Resnais, o filme é considerado uma obra prima e um regresso a um universo mais identificável com os trabalhos anteriores do cineasta, depois das derivações musicais dos dois filmes anteriores.
No entanto, excluindo a parte musical, há claros pontos de contacto com É Sempre A mesma Cantiga. Um conjunto de seis personagens de meia idade (três homens e três mulheres) que vão vivendo os seus desencontros afectivos e se vão cruzando para construir uma teia que remete frequentemente para a desolação a que a solidão conduz. Como é costume, não há aqui personagens que sejam enquadráveis nas categorias de Bem ou de Mal. Há uma visão sobre a vida de todos eles, com as suas virtudes e fraquezas que, nem pelo facto de parecer eminentemente amoral, deixa de ser profundamente afectiva. Acompanhamos o percurso de um soldado desempregado, com o casamento em ruínas e que tem como principal confidente um empregado de bar. Encontra uma outra mulher, insegura e vacilante que vive com o irmão, um agente imobiliário que procura uma casa para o casal cuja relação está a desintegrar-se. Com este agente imobiliário trabalha uma mulher, cristã quase fanática, e que vai a casa do barman tomar conta do seu pai, enquanto trabalha. E assim se fecha o círculo das seis personagens. O tom, por vezes é ligeiro, mas vai ganhando uma tensão crescente, naquele que é um dos filmes menos optimistas de Resnais. Há aqui uma densidade proveniente do desencanto, uma espécie de fatalismo resignado, que afasta Resnais do estilo mais ligeiro e espontâneo de Rohmer, que passou a vida a filmar encontros e desencontros emocionais entre as pessoas. O tom de Resnais é claramente mais grave e circunspecto. Mesmo quando existem situações que podem fazer rir, o panorama geral é sempre mais pesado. Para isso serve-se de uma forma particularmente engenhosa de filmar: o filme é quase sempre um diálogo a dois, raramente estando mais ou menos personagens a ser filmadas em simultâneo. É certo que já o tinha feito em Smoking/No Smoking, onde Azemá e Arditti se desdobravam numa série de papéis diferentes, mas cujas personagens nunca se sobrepunham ou coabitavam. Só que aqui nenhum actor representa mais do que uma única personagem, pelo que há uma vontade propositada de fazer conduzir toda a fluidez do argumento, através dos diálogos entre as personagens. Num ambiente depurado e austero, mais uma vez integralmente rodado em estúdio, vemos uma cidade de Paris gelada, com interlúdios de neve entre os diálogos, repetindo, embora de forma ainda mais artificial, o mesmo efeito visual de Amor Eterno.
O filme foi apresentado a concurso no Festival de Veneza de 2006, mas perdeu o Leão de Ouro para Natureza Morta de Jia Zhang-ke. Em contrapartida, Resnais foi contemplado com o Leão de Prata, prémio para o melhor realizador. André Dussolier, Pierre Arditti e Lambert Wilson integram o lote de actores masculinos, todos já habituais nos seus filmes.; Sabine Azemá, esposa de Resnais, é a única repetente, sendo os outros dois papéis femininos desempenhados por Isabelle Carré e Laura Morante, que nunca tinham filmado com o realizador..
Muitos críticos consideram Corações como o melhor dos cinco filmes que Resnais realizou no século XXI. Seja o melhor ou não, aqui está o exemplo de um cineasta que se reinventa a cada novo filme e que quase cinquenta anos depois de Hiroshima Mon Amour, continua a ser capaz de surpreender.
*Texto do Jorge Saraiva.
*Texto do Jorge Saraiva.
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