Foi sobretudo a partir dos trabalhos pioneiros e maravilhosos de Jacques Demy nos anos 60 e 70 (Chapéus de Chuva de Cherburgo, as Donzelas de Rochefort e a Princesa Pele de Burro) que se pode falar na fundação de um cinema musical francês, embora desde René Clair a Jean Renoir as canções estivessem sempre presentes.
Alain Resnais sempre gostou particularmente da rica e inspirada tradição da música popular francesa. Já tinha ensaiado em A Vida É Um Romance, alguma aproximação ao universo musical, embora de forma não sistematizada. Além disso, o cineasta deparava-se com um problema: como conseguir uma continuação condigna, depois do extraordinário sucesso artístico que foi o díptico Fumar/Não Fumar, unanimemente considerado uma obra prima? Instado a fazer uma ópera, Resnais optou por fazer uma adaptação do escritor britânico Dennis Potter que gostava de integrar canções nas suas obras.
É Sempre A Mesma Cantiga foi apreciado frequentemente pela crítica como um filme ligeiro, uma espécie de comédia de costumes de uma certa classe média francesa. Pessoalmente, discordo completamente dessa opinião. O filme fascina-me pela contradição imediata entre a estrutura das canções e o desenvolvimento do enredo entre as personagens. É que se é uma comedia, ela não deixa de ser absolutamente sombria. Estamos perante um conjunto de pessoas na casa dos 40/50 anos e um relance pelas personagens em nenhum momento nos deixa satisfeitos. Não há aqui heróis ou figuras de encantar. Há uma mulher bem sucedida profissionalmente, com uma consciência burguesa muito acerada, que sublima no trabalho e na posse de bens materiais, as frustrações de uma vida sexual sem graça: o seu marido, tímido e apagado, subordinado aos interesses da mulher e que só pensa em trocá-la pela amante; a sua irmã, hipocondríaca, guia turística frustrada e que está a fazer uma tese de doutoramento em História sobre os camponeses do lago Paladru no ano mil; um antigo amigo e namorado, ainda mais hipocondríaco, motorista particular que vem para Paris para se afastar de um casamento em ruínas e que procura incessantemente uma casa; um agente imobiliário, autor teatral nas horas vagas, homem solitário e triste, apaixonado pela irmã da primeira personagem; e o seu patrão ambicioso e sem escrúpulos, namorado da referida irmã e que nutre um ódio visceral pelo seu empregado, que, aliás, é mútuo. Do puzzle das relações entre estas seis personagens, sai um filme de matriz rohmeriana, embora mais denso e desencantado.
Mas o que torna este filme numa peça de antologia é que o desenrolar da acção é frequentemente interrompido por canções populares francesas, interpretadas em play-back pelos actores. A montagem é de tal forma perfeita que parece que as canções foram feitas de propósito para o filme. O trabalho de selecção é de tal forma meticuloso que os extractos das mais de 30 canções aqui incluídas, ganham um novo fôlego quando inseridas neste contexto. É esse pormenor que torna o filme num objecto tão inclassificável quanto irresistível. O contraste entre uma narrativa sombria e as canções que frequentemente se intercalam, tem uma efeito hiperbólico quase caricatural. Provoca uma adesão quase imediata e uma espécie de divisão de sentimentos, fazendo instalar a dúvida pelo efeito da dissonância. Afinal isto é tudo real? As tragédias pessoais quotidianas resistem a vinte segundos de play-back de uma canção popular?
No elenco está uma mistura de veteranos e, na altura. estreantes no universo de Resnais. A André Dussolier, Pierre Arditti e Sabine Azéma, juntam-se o casal Jean- Pierre Bacri e Agnès Jaoui (que já tinham colaborado, embora não enquanto actores em Smoking/No Smoking) e Lambert Wilson. É redundante afirmar que todos os desempenhos são primorosos.
É Sempre A Mesma Cantiga não é um dos melhores filmes de Resnais, mas paradoxalmente, é um dos grandes filmes da década de 90. A sua modernidade nos dias de hoje, continua absolutamente intocável.
Texto do Jorge Saraiva. Legendas em inglês.
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