sexta-feira, 6 de março de 2020

De Hoje para Amanhã (Von Heute auf Morgen) 1997

De Hoje Para Amanhã é a terceira incursão de Straub e Huillet na obra do compositor austríaco Arnold Schoenberg de quem já tinham adaptado Introdução a «Música de Acompanhamento Para Uma Cena de Cinema (1972) e Moisés e Aarão (1975). As razões para esta insistência, como já notei em texto anterior prendem-se menos com razões políticas e mais com a radical independência e o grande sentido de renovação estética que Schoenberg trouxe à música do século XX.
De Hoje Para Amanhã é uma ópera num único acto composta no final de 1928 e com um libretto de Max Blonda que é o pseudónimo de Gertrud Schoenberg, a esposa do compositor. Musicalmente segue a orientação da livre dissonância e do dodecafonismo que também estão presentes em Moisés e Aarão. Mas ao contrário da ópera filmada em 1975, De Hoje Para Amanhã é uma comédia moderna sobre as relações entre um casal de meia idade. Aparentemente a sua relação é estável, mas já marcada pelo tédio de uma vida em comum sem sobressaltos nem grandes excitações. Numa noite em que ambos saem, o marido sente-se atraído por uma amiga da esposa e comunica-lhe a vontade de ter uma relação extra-conjugal. Esta responde que também conheceu um cantor de ópera por quem se sentiu atraída. O que é particularmente interessante em todo o libretto é que este se desenvolve numa perspectiva puramente feminina a que não deve ser estranho a sua autoria. Tomando a iniciativa ela acha-se ainda atraente e capaz de ser sedutora e resolve mudar a sua vida. O ponto forte do filme reside na relação dialéctica que se estabelece entre o casal. Numa primeira fase parecemos estar presentes uma situação clássica: o marido domina a situação e nem por sombras pensará que a mulher poderá ter outra reacção para além da submissão. Mas a resposta e o desafio desta, altera todas as premissas. Ela vai assumir declaradamente o comando e será ele que terá que se submeter. A possibilidade de ela materializar as suas ameaças torna-o ciumento e despeitado e fragiliza-o de imediato. O que parece ser um drama familiar transforma-se numa comédia de costumes o que só lhe dá uma acutilância reforçada. O que é mais interessante é o desafio ao estereótipo do poder masculino intocável e inatacável. Se pensarmos que a ópera foi criada no final da década de 20 do século passado, percebemos o cariz pioneiro da mesma que merece figurar no cânone das mais destacadas obras feministas. 
É o primeiro filme de Straub e Huillet inteiramente rodado em interiores, neste caso num teatro transformado em estúdio de filmagens. Começa com imagens do ensaio da orquestra o que faz pressupor que o live sound tão característico dos seus filmes se mantém. Depois vemos algumas imagens panorâmicas do teatro e em particular das cadeiras vazias. Finalmente a única incursão no exterior é a imagem de um muro onde está escrito à mão em letras maiúsculas a frase Onde Jaz O Teu Sorriso Escondido. Será este (com excepção da palavra escondido) o título do célebre documentário de Pedro Costa que acompanha a montagem de Sicília, o filme seguinte dos cineastas. Toda a encenação e as imagens a preto e branco (marcando mais um contraste com Moisés e Aarão) são meticulosamente estabelecidas para servir a música e as palavras. E isto porque não é em vão que se transporta para cinema a primeira ópera dodecafónica da história da música.
Legendas em inglês
* Texto de Jorge Saraiva

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