É difícil igualar a fama da segunda longa-metragem de Sergei Einsenstein, que se tornou fonte de conflitos ideológicos entre o Leste e o Ocidente, a Esquerda e a Direita, assim como uma película de visão obrigatória para todos os cinéfilos do planeta. Décadas de censura e apoio militante, ensaios incontáveis que analisam a sua estrutura, simbolismo, origens e efeitos; milhares de citações visuais - tudo isto contribui para escurecer a história por detrás do filme. Potemkine pode ser pouco exacto a nivel histórico, mas a sua visão lendária sobre a opressão e a revolta, a acção individual e colectiva, e também a sua ambição artística de trabalhar em simultâneo com corpos, luz, objectos triviais, símbolos, rostos, movimento e formas geométricas transformaram-no numa mina cinematográfica única. Como verdadeiro artista de grande ecrã, Eisenstein conseguiu criar um mito tão comovente como magnífico.
No entanto, é preciso não esquecer que esta sensibilidade estética estava imbuída de um significado político: o desejo de uma "mudança do mundo, empreendida por homens voluntariosos", mudança essa que fazia parte dos sonhos do início do século XX e que era conhecida pelo nome "revolução". Mas mesmos que não estejamos cientes do que a revolução significou, ou melhor, mesmo que não conheçamos com precisão os seus resultados, é evidente que a força de uma aventura épica sopra no ecrã e fá-lo mover, sempre que se assiste a Potemkine. Seja qual for o nome que lhe atribuamos, esta aventura é o único impulso que conduz o povo de Odessa à liberdade, os marinheiros do couraçado epónimo à luta contra a fome e a humilhação, e o próprio cineasta à invenção de novas formas e ritmos fílmicos.
Demasiadas vezes, os espectadores assistem apenas a excertos de "O Couraçado Potemkine" ou a algumas das suas cenas e sequências mais famosas. Ficarão decerto surpreendidos ao experenciar a força que emana desta película, quando é vista na sua totalidade, ou seja, quando é tratada como uma história comovente e dramática, e não como uma caixa de esmolas inestimável de onde se retiram, de vez em quando, peças individuais.
Este modo renovado e inocente de aceder ao filme devolverá a todos aqueles ícones que se nos tornaram familiares a sua pregnância inicial: o carrinho de bebé que cai nos degraus; o rosto de um marinheiro morto sob uma tenda no fim do cais; os vermes na carne; os óculos do poder político, militar e religioso que, cego, espera no vazio. Antes que a interpretação ideológica o transforme, o leão de pedra ganhe vida, rugindo com fúria e energia, torna-se uma metáfora do próprio filme. Ele simboliza a concepção ousada do cinema que Potemkine transporta e, tal como a película, desprende-se do seu estatuto monumental e surge, uma vez mais, vivo e fresco, sempre que um novo espectador o contempla.
Texto de Jean-Michel Frodon
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1 comentário:
Obra prima. Obrigado.
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