Durante a II Guerra Mundial, um covarde e indeciso oficial das forças aliadas recebe sem merecer uma condecoração por bravura em combate. Mas o facto da indicação ter partido de um charmoso e destemido capitão que no passado foi amante da sua mulher transforma a honraria em fonte de ódio e desejo de vingança.
“Havia o teatro (Griffith), a poesia (Murnau), a pintura (Rossellini), a dança (Eisenstein), a música (Renoir). Mas agora, existe o cinema. E o cinema é Nicholas Ray.
Por que razão ficamos gelados perante as fotografias de Bitter Victory, embora saibamos que são as fotografias do mais belo dos filmes? Por que não exprimem nada. E por boas razões. Enquanto que uma fotografia apenas é suficiente para simbolizar Broken Blossoms, uma apenas de Charles Chaplin em A King in New York, uma apenas de Rita Hayworth em The Lady from Shanghai, uma apenas, até, de Ingrid Bergman em Eléna, a fotografia de Curd Jurgens, perdido no deserto de Tripoli, ou de Richard Burton ridiculamente vestido com um albornoz branco, já não tem qualquer relação com Curd Jurgens ou Richard Burton no ecrã. Um abismo que é todo um mundo. Qual deles? O do cinema moderno.
E é neste sentido que Bitter Victory é um filme anormal. Já não nos interessamos pelos objectos, mas por aquilo que existe entre os objectos, e que se torna, por sua vez, em objecto. Nicholas Ray obriga-nos a ver como real aquilo que nem sequer víamos como irreal, ou que nem víamos. Bitter Victory parece-se com aqueles desenhos que pedimos às crianças para encontrar, à primeira vista, o caçador entre um aglomerado de linhas sem significado.
Não se deve dizer: atrás de um raide de um comando britânico no quartel-geral de Rommel, dissimula-se o símbolo da nossa época, pois não existe nem atrás nem à frente. Bitter Victory é aquilo que é. Não existe, de uma parte, a realidade, que é o conflito entre o tenente Keith e o capitão Brand, e de outra parte, a ficção, que é o conflito da coragem e da cobardia, do medo e da lucidez, da moral e da liberdade, do que sei e que sei. Não. Não se trata mais da realidade nem da ficção, nem de uma que ultrapassa outra. Trata-se de outra coisa. De quê? Das estrelas, talvez, e dos homens que gostam de olhar para as estrelas e sonhar.
Magnificamente montado, Bitter Victory é superiormente interpretado por Curd Jugens e Richard Burton. É a segunda vez, de pois de Et Dieu… créa la femme, que acreditamos na personagem Curd Jurgens. Quanto a Richard Burton, que soube tirar partido de todos os seus filmes precedentes, bons ou maus, é, dirigido por Nicholas Ray, absolutamente sensacional. Será ele uma espécie de Wilhelm Meister de 1958? Pouco importa. Não seria suficiente dizer que Bitter Victory é o mais goethiano dos filmes. De que serviria refazer Goethe, ou refazer o que quer que seja, Dom Quixote ou Bouvard et Pécuchet, J’accuse ou Voyage au bout de la nuit, visto que já foram feitos? O que é o amor, o medo, o desprezo, o perigo, a aventura, o desespero, a amargura, a vitória? Que importância tem isso quando se olha para a estrelas?
Nunca as personagens de um filme nos tinham parecido tão próximas, e ao mesmo tempo, tão distantes. Perante as ruas desertas de Bengazi, as dunas de areia, pensamos, de repente, e por um segundo, noutra coisa, nos snack-bars dos Campos Elíseos, numa rapariga que amámos, em tudo e em qualquer coisa, na mentira, na cobardia das mulheres, na frivolidade dos homens, nos jogos de máquinas a moedas, pois Bitter Victory não é o reflexo da vida, é a vida em si feita em filme, vista detrás do espelho onde o cinema a capta. É, ao mesmo tempo, o mais directo e o mais secreto dos filmes, o mais educado e o mais grosseiro. Não é cinema, é melhor que o cinema.
Como falar de um filme como este? De que serve dizer que o encontro entre Richard Burton e Ruth Roman, debaixo do olhar de Curd Jurgens, está montado com enorme brio? Poderá ter sido uma cena em que fechámos os olhos. Pois Bitter Victory, como o sol, faz-nos fechar os olhos. A verdade cega.”
*Texto de Jean-Luc Godard, tradução retirada daqui.
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