Todo o exacerbamento e irracionalidade de Petra von Kant (é a paixão de Petra por Karin, mas também é a devoção da misteriosa criada Marlene por Petra) têm neste filme, a que apetece chamar mais um “melodrama de câmara” (ou de “quarto”, mesmo) do que uma adaptação teatral (porque o décor é mais “câmara”, mortuária inclusive, do que “palco”), um tratamento de que não está completamente ausente uma profunda ironia. Como se Fassbinder soubesse muito bem – e quem duvida que sabia, de facto – que estava a lidar com esteréotipos e referências, e que, trabalhando-os sempre no sentido do seu próprio excesso, a única verosimilhança possível e aceitável era a desses próprios estereótipos e referências. Dito de outro modo: se uma crítica recorrente a este filme recai sobre o seu “irrealismo”, sobre o absurdo que é a vida (e a paixão) deste conjunto de personagens, forçoso é responder que qualquer suposto “realismo” de Petra von Kant nunca teria grande razão de ser. Fassbinder trabalha sobre abstracções, conceitos, temas: e a realidade destes elementos é a única que conta no seu filme. Aliás, é difícil imaginar uma contiguidade plausível entre o mundo que se verifica no apartamento de Petra e o que fica para lá das suas portas e janelas; o quarto de Petra é uma ilha, pedaço arrancado ao mundo, e a própria Petra é uma criatura que parece não ter outro espaço para existir senão naquele apartamento. De certa forma, essa é a sua tragédia; ou é, pelo menos, a tragédia da sua relação com Karin: pois se a dominadora Petra consegue manter sob o seu poder a criada Marlene (misteriosíssima personagem) e manter a sua influência sobre a amiga Sidonie, a mãe e a filha, a chegada de Karin, demasiado rebelde e porventura mais manipuladora do que a própria Petra, vem pôr em causa o seu poder, e inverter por completo a sua relação com aquele espaço. Se Petra, no princípio do filme, está no seu domínio, qual raínha na sua corte, e o apartamento é uma confirmação da sua ascendência, no fim vemo-la como quem ficou reduzida a esse espaço, mais prisioneira do que outra coisa. Se a ambiguidade do espaço sempre fora mais ou menos clara (veja-se o comentário que Fassbinder insere por via da canção In My Room dos Walker Brothers), no fim ela resolve-se: o apartamento perde a sua característica festiva e “mundana” para passar a ser apenas a confirmação da profunda solidão de Petra (que assiste, dir-se-ia que semi-louca, à partida de Marlene, enquanto o gira discos toca The Great Pretender dos Platters).
Se a ironia e a ambiguidade marcam peremptoriamente Petra von Kant, elas são corporizadas na perfeição pelo lote de magníficas actrizes que Fassbinder reuniu, para um filme que, de resto, é manifestação cabal do seu talento como “women’s director”. Hanna Schygulla nunca foi tão esguia nem tão incerta como aqui, mas Margit Carstensen (que é bem capaz de ter neste filme o papel da sua carreira) é assombrosa no constante vai e vem entre a lucidez e a loucura, o controlo e a perca total, a dependência e o individualismo, a crueldade e a vulnerabilidade.
* Texto de Luis Miguel Oliveira
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