Após a interrupção da parceria com Emeric Pressburger e a dissolução da produtora The Archers, Michael Powell realizou um filme menor, Honeymoon (1959), antes de se abalançar a Peeping Tom, o seu filme mais controverso de sempre e aquele que na altura mais dividiu a opinião da crítica e do público.
Peeping Tom é a expressão em calão para a palavra francesa voyeur, ou seja, aquele que gosta de observar os outros de forma indiscreta e disso retira prazer, nomeadamente de natureza sexual. Aqui essa componente está afastada, sendo substituída pela sensação de medo. O filme tem um argumento de Leo Marks e concita todos os nossos pavores. Não são precisas grandes introduções para percebermos o que se passa: um fotógrafo discreto e tímido vive com uma dupla personalidade. Por trás da sua afabilidade e da sua vontade expressa de se isolar das pessoas. existe um monstro que procura levar as mulheres a uma situação de terror absoluto, para, em seguida, as assassinar. Este tipo de argumento que se aproxima dos thrillers psicológicos e dos filmes de horror, remete de imediato para o universo psicanalítico. Neste caso, não directamente para o complexo de Édipo de Psycho de Alfred Hitchcock (quase da mesma altura e com quem foi frequentemente comparado), mas para um trauma violento causado pelo abuso psicológico por parte do pai. A câmara de filmar de que Mark Lewis (Carl Boehm) se serve é um objecto ambivalente: serve para reavivar a recordação do trauma de infância, mas também como fonte de acalmia mórbida, através do assassinato das mulheres que são suas vítimas. Esta polaridade de opostos desagua num universo sado-masoquista (mais uma vez sem a componente sexual) da personagem do protagonista, que tanto argumentista, como realizador optaram por deixar opaca e enigmática. Apesar da utilização muito apropriada da cor, com o predomínio dos tons quentes, do brilhantismo quer da fotografia, quer da música e do desempenho sóbrio e eficiente dos actores, o que me fascina mais é a excelência do argumento e da realização. O primeiro é denso e complexo, com inúmeras ramificações, muitas vezes mais sugeridas do que desenvolvidas; a segunda porque em momento algum, Michael Powell se deixa levar pelos clichés do género. Não há sangue, não se filmam mortes, excepto no final por uma conclusão lógica do argumento, não há a criação de uma expectativa artificial nos espectadores. Não estamos, de facto, na presença de um filme de terror. O serial killer é apresentado como um homem perturbado, mas nunca como uma espécie de demónio que tem prazer em fazer sofrer as suas vítimas. É esta indefinição, de um assassino que sofre por matar as suas vítimas, mas que depois retira prazer de vê-las sofrer, cuja explicação para os seus actos é apenas antevista, mas nunca totalmente explicada, que torna Peeping Tom num dos mais perturbantes filmes da história do cinema. Como aconteceu em toda a sua carreira isoladamente ou com Michael Pressburger, não abundam as personagens lineares. Mas talvez não exista nenhuma com o grau de ambiguidade de Mark Lewis. Neste jogo de duplicidades, somos incitados enquanto espectadores a estabelecermos uma ligação afectiva com o protagonista de ar sofredor, bons modos e palavras tranquilas, quase pedindo desculpa pelo facto de existir.
O filme praticamente arruinou a carreira na Grã-Bretanha do seu mais prestigiado cineasta. Mais do que fria, a recepção de grande parte da crítica foi de um encarniçamento total contra o filme. Muito mais tarde, Michael Powell diria com a habitual fleuma britânica: este foi um filme que na época ninguém queria ver, mas que agora todos já viram ou querem ver. Até eu que não sou um absoluto incondicional dos filmes do género, sou capaz de reconhecer facilmente a sua genialidade.
* texto de Jorge Saraiva
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