domingo, 23 de fevereiro de 2020

Da Nuvem à Resistência (Dalla nube alla resistenza) 1979

Cesare Pavese suicidou-se em circunstâncias nunca totalmente esclarecidas quando tinha apenas 41 anos, embora muitos dos especialistas da sua obra afirmem que ao longo dela existiam traços evidentes de que este poderia ser o trágico final do escritor. Apesar da sua morte prematura, a sua obra é relativamente extensa, repartida principalmente por poesia, romance, cartas, contos diários e até uma obra inclassificável, Dialoghi con Leucò, de diálogos filosóficos entre humanos e personagens da mitologia grega, que, aliás, viria a inspirar uma parte deste filme. Foi resistente antifascista, membro do Partido Comunista Italiano após a segunda guerra mundial e hoje é consensualmente considerado como um dos maiores vultos da literatura italiana de todo o século XX.
Das Nuvens à Resistência é inspirado em dois livros de Pavese O já referido Dialoghi con Leucò e La Luna e i Falò um dos seus últimos romances e, porventura, um dos seus mais conhecidos. Apenas três anos separam as respectivas publicações, mas estamos em presença de obras completamente distintas. Respeitando essa distinção, Das Nuvens à Resistência está dividida em duas partes aparentemente estanques. Poderíamos dizer que estamos na presença de duas médias metragens, cada uma com cerca de 50 minutos. A primeira, por sua vez, também se divide em seis partes que correspondem a seis diálogos distintos devidamente separados. Esses diálogos remetem-nos para o «fabuloso tempo das origens» para utilizar a feliz expressão do filósofo Mircea Eliade. Abordam as relações entre os homens e os deuses a partir da mitologia grega. Straub e Huillet voltariam a este tema e a este livro em 2006 na derradeira longa metragem da dupla, Esses Encontros Com Eles, pouco tempo antes do falecimento de Danièle Huillet. Desse conjunto de diálogos, destacaria o terceiro e mais longo, entre o velho cego Tirésias e Édipo que foi filmado de uma forma absolutamente excepcional. Um carro de bois em movimento vagaroso conduzido por um homem do qual distinguimos apenas a silhueta e os dois dialogantes filmados por trás enquanto conversam. A maioria dos temas abordados nesses diálogos é relativamente árida: a relação entre os homens e deuses, a morte enquanto libertação de um mundo de sujeição e o significado da vida são abordados no texto de Pavese de forma reflexiva, expressando sobretudo as dúvidas e os temores dos humanos face à sua relação com o transcendente. No entanto, nos dois últimos diálogos, parece existir uma apropriação de temas mais terrenos: num deles, os Frígios veneram apenas a Terra e não os deuses do Olimpo e a Terra exige constantes sacrifícios humanos para que o sangue derramado permita boas colheitas; no último, um pastor conversa com o seu filho, sobre os rituais sacrificiais que implicam a existência de fogueiras para que os deuses tragam as chuvas, mas liga esses sacrifícios ao sistema secular de exploração a que os camponeses sem terra estão sujeitos por parte dos seus patrões, uma vez que apenas os pobres são sacrificados.
Este último diálogo vai fazer a ponte com a segunda parte do filme, também ele inteiramente constituída por diálogos, numa opção muito típica dos realizadores de dar primazia às palavras. Um homem regressa à sua aldeia natal no Piemonte, depois de ter vivido largos anos na América. Os diálogos entre ele e as diversas personagens com quem interage, é absolutamente exemplar acerca da forma de encontrar formas de narrar totalmente não convencionais, que numa primeira fase podem parecer desgarradas, mas que acabam por encaixar perfeitamente umas nas outras. O homem fugiu de Itália para não ser preso pelos fascistas e regressa já depois do final da segunda guerra mundial à sua aldeia, mas encontra-a substancialmente mudada. O período fascista, a ocupação nazi no final da guerra e a guerrilha antifascista deixaram cicatrizes profundas junto das pessoas que sobreviveram a tantas provações. O olhar de Pavese é profundamente desencantado, longe do que seria expectável num escritor comunista normalmente disposto a tecer loas aos «amanhãs que cantam». A maioria das pessoas (e a conversa no café é o melhor exemplo) continua mergulhada na ignorância e no preconceito. Afinal se há muitas coisas que mudaram, há uma essência que permanece: a exploração dos que não têm terra, a utilização das armas da superstição e da ignorância dos trabalhadores e dos pobres como arma das classes dominantes manterem e reforçarem o seu poder alicerçado na divisão da sociedade em classes. 
Das Nuvens à Resistência é um dos filmes preferidos de Straub de toda a sua extensa filmografia. Provavelmente é a sua obra prima e um dos melhores filmes da história do cinema. Esses méritos deste filme absolutamente extraordinário, devem ser integralmente repartidos com Cesare Pavese, um escritor absolutamente fabuloso, a um tempo árido e afectuoso, analítico e envolvente, convicto das suas ideias, mas profundamente heterodoxo e formalmente arrojado. A forma como os diálogos são filmados é absolutamente sublime, desde a fotografia à direcção de actores (como sempre não profissionais) passando pelo trabalho de câmara e pela forma como as diferentes estruturas narrativas se desenvolvem e interagem. Como é habitual neles, é um filme profundamente político, não no sentido mais comum do termo, mas na medida em que busca a essência do nosso viver colectivo e de uma sociedade marcada por irreconciliáveis interesses opostos. Nesse sentido, a junção de dois textos com temáticas aparentemente tão distintas, acaba por fazer todo o sentido. É um filme visceral, despojado de adornos, absolutamente essencial. Mesmo que não tivessem feito mais nenhum, só este Das Nuvens à Resistência bastaria para lhes reservar um lugar destacado em toda a história do cinema.
* Texto de Jorge Saraiva

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