“Os Assassinos” (The Killers), de 1964, é a terceira adaptação do conto de Ernest Hemingway. As outras duas foram as de Robert Siodmak, de 1946 – um clássico noir -, e a segunda um curta metragem de Andrei Tarkovsky (em co-direção com Alexander Gordon e Marika Beiku), de 1957, mas nenhum deles se iguala a essa versão dirigida por Don Siegel. Como se sabe, o filme foi produzido originalmente para a televisao, mas por causa de sua brutalidade foi exibido nos cinemas.
Se o conto de Hemingway, e consequentemente as suas adaptações cinematográficas, mostra dois assassinos que vão a um restaurante rural para eliminar um homem marcado. Don Siegel subverte muda completamente o ponto da história, mostrando Charlie Strom (Lee Marvin) e Lee (Clu Gulager) como os dois assassinos contratados para eliminar Johnny North (John Cassavetes) que, ao ficar frente a frente com o seu destino, o aceita. A sua passividade diante da morte, aceitando-a sem implorar, choca a dupla. Os dois, após investigar o motivo de tanta submissão, descobrem que Johnny North estava envolvido com Sheila Farr (Angie Dickinson), namorada de Jack Browling (Ronald Reagan).
Don Siegel fez um trabalho e tanto com seu elenco. Conhecido por sua direção de atores econômica e eficiente, ele arranca performances memoráveis de Dickinson e Reagan. Ela, uma femme fatale na mais pura acepção do termo; ele, na performance de sua vida, a sua ultima atuação antes de se dedicar à política. “Os Assassinos” é um filme que se sustenta pelo olhar, seja na cena de abertura em que o rosto do personagem de Lee Marvin aparece refletido nas lentes dos óculos escuros de Clu Gulager, assim como os olhos de John Cassavetes que não saem da cabeça de seus executores.
Don Siegel é um realizador que fez muito a minha cabeça como cinéfilo em formação: títulos como “Meu Nome é Coogan” (Coogan’s Bluff), de 1968; “Os Abutres Têm Fome” (Two Mules For Sister Sara), de 1970; “Perseguidor Implacável” (Dirty Harry), de 1971; e “O Homem Que Burlou A Máfia” (Charley Varrick), de 1975, da mesma forma que este “The Killers” formaram o meu gosto estético por filmes que Rogério Durst, crítico de cinema do jornal O Globo, nos anos noventa, alcunhou de Cine-Machão. Filmes secos, diretos, crus. Todos os títulos acima citados foram vistos na televisão, em madrugadas passadas em claro esperando a próxima atração do Coruja Colorida.
"Ao Sul" é a história de um homem (Henrique/Antonino Solmer) que regressa da Holanda a Portugal, depois de muitos anos de ausência, o coração dividido entre insatisfatórios amores abandonados, a vontade de retorno ao Alentejo natal como bálsamo para uma vida que percebemos ter sido gasta em coisas sem importância. Agarrar o tempo e a raiz - eis o seu projecto. A realidade que vem encontrar é-lhe, todavia, hostil. Em Lisboa, a memória de ocorrências na Guerra colonial reacende conflitos esquecidos; o Alentejo, incapaz de se reconverter a uma agricultura concorrencial, recebendo-o como um traidor que vem trabalhar para uma grande empresa holandesa. Um sopro de desespero atravessa "Ao Sul" como uma adaga suspensa sobre o pescoço de todos nós. Em Portugal abafa-se.
Fernando Matos Silva filma esta respiração sufocante, fazendo-se cruzar no filme uma miríade de personagens. Primeira constatação: a maior parte dessas personagens existe, quer dizer, tem, mesmo se a sua passagem é curta, densidade humana, peso, justificação dramática. Mérito, já agora, também dos actores. Não falo de Antonino Solmer, que desde já tem aqui o melhor desempenho da sua carreira cinematográfica, mas dos outros, dos que pouco espaço e pouco tempo têm para nos convencer, como José Manuel Mendes, Luísa Cruz, Miguel Guilherme ou Manuel Cavaco: brevíssimas interpretações, perfeito entendimento. E se também há personagens frágeis (caso do avô louco, interpretado por Canto e Castro, ou de Liberato/João Cabral), isso se deverá mais a problemas do argumento que a inabilidade dos intérpretes. É que Fernando Matos Silva (que teve Maria Isabel Barreno como co-argumentista) não resistiu à tentação dos símbolos, a uma sobrecarga de elementos que desviassem a leitira do filme para lugares mais vastos, introduzindo, aqui e ali, desequilíbrios incomodativos, porque tornando óbvio o que melhor seria ir perdurando subterraneamente. Aliás, "Ao Sul" teria ganho muito com algum incremento de contenção.
Estamos em presença de um filme que gere precariamente os equilíbrios. Constatação que não deve iludir-nos o essencial. A força de uma narrativa que trás dentro de si uma convicção e uma força humana que nenhuns desequilíbrios anulam. A dor no rosto de Luísa Cruz, a luz do espaço alentejano, o homem que corre a medir o espaço de uma casa, seu novo território, uma cena de amor físico que cheira à mais funda solidão, são coisas destas que nos fazem guardar um filme e saber o que quer dizer pensar cinema. Coisas que estão em "Ao Sul", feito por um cineasta que sabe o que fala.
A guerra colonial na Guiné. Alguns casos significativos entre as variadas experiências que afectaram milhares de soldados portugueses que ali combateram. As Mensagens de Natal para as famílias na Metrópole. Histórias que rondam o patético, a ironia, o absurdo, ou pontuadas pelo pitoresco sentimental, a amargura, o irreparável sofrimento.
Filme para televisão, Adeus até ao Meu Regresso é um dos testemunhos da viragem no interior da RTP que o 25 de Abril provocou. Parafraseando, no título, a frase feita com que inúmeros soldados portugueses davam as suas "mensagens de Natal" (na televisão) durante o período da guerra colonial, Adeus até ao Meu Regresso faz-se e estreia-se precisamente quando, pela primeira vez, a guerra dava lugar à paz e os soldados regressavam enfim: em Dezembro de 1974.Através do testemunho de soldados que haviam vivido a guerra na Guiné (a primeira colónia portuguesa a obter a independência após o 25 de Abril), António Pedro Vasconcelos dá-nos a dimensão de um conflito armado mas sobretudo o que dele restava na consciência do povo. Da revolta à resignaçâo, dos traumas às dúvidas, das afirmações às interrogações. Documento agarrado ao vivo, em cima da dor e do regresso, este filme é bem o retrato da retaguarda e da memória da guerra colonial, o único que, curiosamente, o cinema português ousou fazer.
Portugal 1997. Um acidente nuclear deixara o país sem energia e dividido em Zonas, algumas das quais estão interditas por causa da contaminação. A crise económica é grave e o desemprego quase total. Afonso, Vítor e Diniz, na véspera da transferência de Afonso para uma Zona onde iria trabalhar, aproveitam um automóvel abandonado na sequência de um assalto a umas bombas de gasolina para fazerem uma festa de despedida. A viagem é acidentada. Perdem o automóvel e quando querem regressar os problemas surgem...
"Com argumento de Luís Alvarães e Pedro Ruivo a partir de uma ideia deste e de Edgar Pêra, de 1993, "A Força do Atrito", ficção do início dos anos noventa, projeta a história de um acidente nuclear no Portugal de 1997, que deixa o país sem energia e com zonas interditas por contaminação. Para além da catástrofe, a situação do país é descrita como a de uma grave crise económica e desemprego profundo." Cinemateca.
Uma das grandes pérolas desconhecidas do cinema português, a estrear aqui publicamente. Uma excelente equipa de produção, que além da realização de Pedro M. Ruivo (única longa metragem), e argumento de Luis Alvarães e do próprio ruivo, conta com fotografia de Daniel Del Negro e montagem de José Nascimento e Luis Sobral. Uma autêntica dream team.
Em São Francisco o casal Harry (Edmond O'Brien) e Eve Graham (Joan Fontaine) decide adoptar uma criança. Durante as entrevistas o comportamento suspeito de Harry chama a atenção de Mr. Jordan (Edmund Gwenn), responsável pela análise do processo de adopção. Certo de que o homem esconde um segredo, o agente começa uma investigação e descobre que Harry tem outra família em Los Angeles.
"The Bigamist" não é realmente um noir no verdadeiro sentido da palavra, mas tem algumas implicações. Além de realizar, Lupino interpreta com Edmond O´Brien e Joan Fontaine.. O´Brien é o Bigamo, Lupino e Fontaine são as mulheres infelizes que são as suas vítimas. A força do filme está mesmo nas interpretações principais e no argumento, que para o período era muito corajoso, lidando com sensibilidade com o sexo extraconjugal e a maternidade solteira.
O filme foi uma produção independente de Lupino e do ex-marido Collier Young (que na altura já estava casado com Joan Fontaine), que adaptava uma história de Larry Marcus e Lou Schor. Pode-se dizer que o argumento é bastante suave para o bígamo, é punido mas há maturidade e sensibilidade num cenário em que pessoas decentes se metem numa confusão, não tanto por egoísmo mas devido a todas as fragilidades humanas normais.
O cenário é a costa do Texas, onde os pescadores locais ressentem-se da “intrusão” de refugiados vietnamitas. O imparcial fornecedor de camarão Wally (Donald Moffat) contrata vários trabalhadores vietnamitas, o que enfurece ainda mais os habitantes locais. O mais vociferante dos oponentes de Moffat é um pescador, Shang (Ed Harris), que enfrenta a falência devido à perda de negócios. Uma reunião municipal destinada a resolver a questão transforma-se em violência quando o emigrante vietnamita Dinh (Ho Nguyen) acusa alguns dos habitantes locais de violarem a lei para os seus próprios fins.
Depois do colapso do Governo apoiado pelos Estados Unidos em Saigão, em 1975, mais de meio milhão de refugiados vietnamitas dirigiram-se para este país, e aproximadamente 100.000 estabeleceram-se no Texas, muitos deles ao longo da costa do Golfo do México. Pescavam camarão e, por estarem dispostos a trabalhar mais, e a trabalhar mais horas do que os pescadores brancos texanos - ou "anglos", prosperaram.
Devido à barreira linguística, os vietnamitas, a maioria deles católicos, mantiveram-se isolados nas suas próprias comunidades improvisadas. Inicialmente, os tempos eram bons, mas à medida que os preços do peixe e do camarão caíram, a concorrência entre os vietnamitas e os anglo-saxónicos intensificou-se até que, em 1979, eclodiu uma guerra não declarada. Era uma situação ideal para a Ku Klux Klan. Os anos seguintes foram marcados por bombardeamentos incendiários de barcos e casas vietnamitas e pela destruição das suas armadilhas para peixes.
Um dos filmes menos conhecidos de Louis Malle, este agitprop surpreendentemente simples é baseado no racismo que eclodiu em Galveston Bay, TX, quando os imigrantes vietnamitas começaram a tirar uma fatia do negócio local de pesca de camarão no início dos anos 80. Ao abordar o racismo, a xenofobia e o nacionalismo económico – questões desagradáveis que Hollywood geralmente prefere ignorar – o filme mostra uma ambição admirável. O familiar dilema do trabalho imigrante – os vietnamitas desesperados simplesmente superaram o pescador nativo e prosperaram em conformidade. Grandes esforços de actores talentosos como o amargurado veterano do Vietname de Ed Harris e Amy Madigan, como uma mulher simpática aos imigrantes, e também com Ho Nguyen, como porta-voz dos imigrantes, que é quem se sai um pouco melhor.
Na década de 30 do século XX o caos e a miséria reinam na cidade de Dusseldorf, enquanto os Nazis começam a sua campanha de terror. A cidade enfrenta outra ameaça, um serial killer que envia cartas para a polícia sempre que assassina uma nova jovem mulher. Ninguém suspeita de Peter Kuerten, um homem bastante despretensioso cuja única paixão é Anna, uma cantora de um café.
No início do filme o espectador é avisado que este se baseia numa história verdadeira, o que em parte é verdade, mas Robert Hossein, o realizador só se baseia vagamente na história do verdadeiro assassino. Os crimes sádicos de Kuerten já tinham sido previamente explorados em filme na obra-prima de Fritz Lang realizada em 1931, "M", com o então desconhecido Peter Lorre no papel do assassino, mas Lang na altura negou com o filme tivesse alguma coisa a ver com o famoso assassino.
"Le Vampire de Dusseldorf" é extremamente bem sucedido na evocação da sua época, a miséria e a pobreza difundida, a ascensão do Nazismo e o declínio da sociedade estão muito bem representados. O terror que se vivia na Alemanha dos anos 30 era contraposto pela figura solitária do assassino, com uma estranha e perigosa personalidade. Hossein, evidentemente, vê em Kuerten uma manifestação dos males do nacional socialismo.
Peço imensas desculpas por esta ausência, mas razões pessoais, outros passatempos, outras vidas, fizeram-me estar ausente estas últimas semanas /meses.
Vou voltar a estar activo aqui no blog, agora num formato um pouco diferente, que será publicar os filmes fora de ciclos, uma programação escolhida na mesma por mim, e que seguirá as linhas que sempre temos seguido, com cinema underground, clássicos, etc.. Desta forma talvez seja menos maçadora para vocês, e também para mim.
Vou tentar publicar um filme por semana, e num formato com mais qualidade. Se não publicar, sabem pelo menos que estarei por aqui.
Stéphane Mallarmé é hoje reconhecido como um dos mais importantes poetas franceses da segunda metade do século XIX. A sua obra é normalmente designada como obscura e hermética, mas também como profundamente inovadora e experimental onde os jogos de linguagem e a musicalidade das palavras desempenhavam um papel preponderante. Embora não fosse reconhecido na altura como alguns dos seus contemporâneos, a sua influência em movimentos artísticos do século XX como o futurismo e mesmo o dadaísmo foi amplamente reconhecida posteriormente. O seu poema Un Coup de Dés Jamais N'Abolira le Hasard (Um Lance de Dados Jamais Abolirá o Acaso) publicado em 1897 é um extenso «ensaio filosófico» justamente considerado como um precursor da poesia moderna, naquilo que se convencionou chamar de poesia tipográfica, ou seja, com verso livre e intensa musicalidade das palavras.
Foi a esse poema que Danièle Huillet e Jean-Marie Straub recorreram para realizarem a curta metragem de pouco mais de dez minutos, Toda a Revolução É um Lance de Dados. O título inspira-se numa frase do historiador e filósofo francês Jules Michelet (1798-1874) e é dedicado a Franz Van de Staak, Jean Narboni e Jacques Rivette «entre tantos outros». A concepção do filme é muito simples e bastante comum na sua forma de realizar. Um grupo de nove pessoas sentada na relva de um jardim de Paris recitam o referido poema de Mallarmé. As vozes nunca se sobrepõem, mas a apresentação do poema parece ser relativamente aleatória. Não há uma repartição equitativa nas intervenções dos recitantes. Nalguns casos apresentam excertos relativamente extensos do poema, noutros, apenas uma ou duas palavras. Apesar deste cariz aparentemente casual, percebe-se que, tal como em todos os seus filmes, houve um intenso trabalho de preparação dos actores. Mas talvez o mais interessante e enigmático de todo o filme é que antes e após a recitação do poema, são apresentadas imagens introdutórias e conclusivas. Se estas consistem num plano fixo e distante da câmara relativamente às ruas e edifícios de Paris, já as primeiras apresentam imagens do monumento aos mortos na insurreição que ficou conhecida como A Comuna de Paris de 1871. E se o poema recitado e objecto do filme não é obviamente um poema político, porquê esta associação com o episódio simultaneamente glorioso e trágico da Comuna de Paris?
«A Paris operária, com a sua Comuna, será para sempre celebrada como a gloriosa precursora de uma sociedade nova. A recordação dos seus mártires conserva-se piedosamente no grande coração da classe operária. Quanto aos seus exterminadores, a História já os pregou a um pelourinho eterno, e todas as orações dos seus padres não conseguirão resgatá-los», escreveu Karl Marx sobre os acontecimentos da Comuna d Paris.
Na minha interpretação, a junção de dois factos (A Comuna e o poema de Mallarmé) sem nenhuma aparente ligação, só pode ser estabelecida pelo elo comum de ambos (cada um a seu modo) serem formas de ruptura e apelos à transformação. No primeiro caso, social, no segundo, estético. O que significa que se toda a revolução é um golpe de dados, ela também deve ser entendida como uma transformação radical a que nada pode ser imune, sejam as velhas estruturas da sociedade de classes, sejam as velhas fórmulas anquilosadas do conformismo na criação artística.
Franco Fortini foi um poeta, ensaísta e tradutor italiano de inspiração marxista nascido em 1917 e que faleceu em 1994. A sua vida teve um percurso sinuoso: filho de mãe cristã e pai judeu, sofreu as agruras do fascismo na sua juventude, foi soldado, afastou-se da guerra e exilou-se e voltou a Itália para se juntar aos guerrilheiros que combateram a ocupação alemã. Depois da libertação foi professor secundário e universitário, sempre com uma postura marcadamente de esquerda, embora se tivesse afastado de posições mais ortodoxas após a invasão soviética da Hungria, que, aliás, vivamente repudiou.
Fortini/Cani é o primeiro filme de Huillet e Straub falado em italiano abrindo caminho para que os cineastas se radicassem neste país. Trata-se literalmente de filmar um livro, neste caso, Os Cães do Sinai escrito por Fortini pouco depois da Guerra dos Seis Dias que opôs Israel ao mundo árabe e que lhe permitiu ocupar territórios do Egipto, da Síria e da Jordânia. Ao contrário do que normalmente sucede em cinema, não se trata de adaptar uma obra literária como eles próprios já tinham feito no início das suas carreiras com dois livros de Heinrich Boll. Tanto mais que Os Cães do Sinai não é um romance, mas sim um ensaio, o que torna mais desafiante a possibilidade de o filmar. Sendo então o livro o elemento central do filme, importa analisar a forma como os cineastas o transportam para o ecrã. Primeiro há em off uma voz que vai lendo o livro ao mesmo tempo que vemos paisagens naturais italianas, filmadas em longos travellings desprovidas de som, excepto um outro ruído natural; depois vemos o próprio escritor a ler excertos da obra sem nunca fitar directamente a câmara; por vezes reina o silêncio absoluto e a câmara incide directamente sobre as páginas do livro. Existe assim uma espécie de banco de imagens (que nalguns casos recorre mesmo a artigos de jornal) com que a dupla de realizadores vai «encenando» a leitura do livro e que foi, tal como é seu apanágio, minuciosamente ensaiada. Às paisagens naturais sucede-se uma cerimónia religiosa e na parte final, algumas imagens da cidade de Florença dos anos 70. No início do livro Fortini escreveu que não há cães no deserto do Sinai (ocupado ao Egipto durante a Guerra dos Seis Dias e devolvido no final da década de 70 depois do acordo de Camp David). O objetivo é claramente político: denunciar a política agressiva do estado de Israel perante os seus vizinhos árabes, apoiado pelas grande potências internacionais e com a conivência dos media e de grande parte dos intelectuais europeus num racismo anti-árabe dificilmente disfarçável. Numa segunda parte o livro torna-se autobiográfico na medida em que relata a forma como o escritor, ainda então uma criança, assistiu ao crescimento do anti-semitismo durante o fascismo italiano e as perseguições de que o seu pai foi alvo na cidade de Florença. Este período foi igualmente muito bem descrito num dos derradeiros filmes de Vittorio de Sica, O Jardim dos Finzi-Continis que relata a perseguição de judeus em Ferrara nos final dos anos 30. Na parte final, o livro regressa ao tempo presente a partir da ideia da formação do estado de Israel e de como ele serviu para lavar a consciência burguesa das grandes potências e da sua indiferença perante o Holocausto provocado pelos nazis e de como o próprio estado de Israel atraiçoou os seus princípios originais de pluralidade e de abrangência, tornando-se cada vez mais num estado dos judeus, numa regressão a uma visão medievalista teocrática. E aborda também a forma como o racismo anti-semita do passado não pode ser combatido com o sionismo anti-árabe e a forma como estes povos têm sido sistematicamente oprimidos pelo imperialismo internacional e pelos governos corruptos dos seus próprios países.
Do ponto de vista estético estamos em presença de um exercício primoroso. Se a propósito de Moisés e Aarão, o seu filme anterior, tínhamos afirmado que a ópera nunca tinha sido filmada desta forma, Fortini-Cani filma um livro de um modo totalmente anti-convencional. Mas, talvez sejam os aspectos políticos que aqui se impõem. Mais de 50 anos depois da Guerra dos Seis Dias e mais de 40 após o filme, a situação em nada se alterou naquela região do planeta, ou, em certos aspectos, até se agravou. O que, para além da actualidade quer do livro, quer do filme, dá razão às palavras certeiras de Straub quando afirmou que o que o verdadeiramente o interessava «era a cólera de um homem já idoso, filho de pai judeu e mãe cristã e que teve a coragem, enquanto intelectual italiano, de escrever um panfleto».
Depois da curta Introdução a «Música de Acompanhamento para uma Cena de Cinema», Huillet e Straub regressam a Schoenberg no seu filme seguinte, Moisés e Aarão. Vinte e dois anos depois ainda voltariam ao compositor austríaco com o filme que adapta a ópera num único acto, Von Heute auf Morgen. Esta insistência no compositor prende-se mais com razões estéticas do que políticas: Schoenberg foi um dos grandes inovadores musicais de todo o século XX e foi sempre uma personalidade solitária, avessa a modas e a palcos mediáticos (mesmo os da sua época) características que são partilhadas pela dupla de realizadores.
Moisés e Aarão transpõe para cinema a ópera homónima. Inicialmente seria uma ópera em três actos, mas apenas foram escritos e compostos os dois primeiros. Schoenberg destruiu algumas ideias comuns em matéria de composição. Uma delas é que a música deve ser escrita anteriormente ao libreto. Neste caso específico, havia ideias específicas em termos de libreto para o terceiro acto, mas que nunca foram musicadas. A ópera baseia-se de forma livre em passagens do Exodus do Antigo Testamento que descreve a fuga dos judeus do Egito em busca da Terra Prometida. Schoenberg gosta particularmente da figura de Moisés e do seu radicalismo sem compromissos, da adoração de um Deus que não se vê e na visceral aversão às cedências do irmão (Aarão) de fazer o povo adorar um bezerro de ouro. O judaísmo terá, aliás, um papel preponderante na vida e nas concepções do compositor que terá afirmado: «finalmente aprendi a lição que me foi imposta no ano passado, e não vou esquecê-la. Não sou nem alemão nem europeu, e talvez nem sequer humano, mas sou judeu». O que Straub e Huillet fizeram foi transformar em teatro filmado o pequeno terceiro acto (que corresponde à acusação de Aarão pelo seu irmão Moisés) e esta é a única parte do filme que não é cantada. Deve estabelecer-se de imediato uma diferença de fundo. Normalmente os cineastas filmam óperas no contexto em que são executadas, ou seja, numa sala de concertos. Moisés e Aarão não é uma ópera filmada, mas um filme sobre uma ópera. Foi filmado na Itália e no Egito, sempre em cenários naturais, em som directo e sem actores a serem dobrados por cantores. A música e os cantores são os mesmos que surgem numa gravação da ópera numa edição da Philips datada de 1974. Os cenários naturais, do céu às pedras e montes, têm um papel crucial no desenvolvimento do filme, havendo mesmo uma parte, na fase final do segundo acto que foi filmada à noite. O que os cineastas fizeram «foi aquilo que ninguém faz: procurar as nervuras na partitura para saber onde será possível intervir, mudar de plano, começar um bloco sonoro e interrompê-lo» (palavras de Straub). O filme tem momentos de beleza transbordante e de uma espiritualidade surpreendente (sobretudo para os cineastas a quem não se conhece qualquer crença de natureza religiosa), bem expressas no monólogo inicial (acto I, cena I) de Moisés em que este fala com Deus. Não são as imagens que devem despertar sentimentos nos espectadores, mas sim, elas próprias, já estão impregnadas de sentimentos.
Há aqui um paralelismo na actividade de desconstrução: embora incompleta Moisés e Aarão é justamente considerada um momento fundamental de desconstrução da ópera clássica através da introdução dos conceitos estruturais do dodecafonismo; Straub e Huillet filmaram-na de forma magistral transformando a ópera num filme rompendo com todos os cânones tradicionais de fazer cinema.
PS: A única nota política consiste na dedicatória do filme ao estudante de cinematografia Holger Meins que se juntou ao Exército Vermelho no princípio de 1970 e que acabou por morrer de greve de fome na prisão. Por esse motivo a dedicatória chegou a ser alvo de censura por parte das autoridade alemãs.
Esta curta metragem de pouco mais de quinze minutos parte de uma partitura escrita por Arnold Schoenberg para um filme imaginário sobre o tema «Perigo Ameaçador Angústia Catástrofe» e faz parte de um conjunto de curtas metragens sobre compositores encomendada pelo canal de televisão da República Federal Alemã, Süd-West-Funk. A sua estrutura consiste numa pequena introdução (a cores) feita por Jean-Marie Straub a Schoenberg, à peça em si e a sua relação de amizade com Kandinsky, a que se segue (a preto e branco) a leitura de uma carta que o compositor enviou ao pintor; na segunda parte, Danièle Huillet faz uma pequena introdução ao discurso de Brecht no Congresso Internacional de Escritores em Defesa da Cultura em 1935, a que se segue a leitura de excertos do mesmo, mantendo-se a mesma ordem de relação entre a cor e o preto e branco; na parte final (e de novo a preto e branco) desfilam imagens de guerra, particularmente de bombardeamentos. A música da partitura une todos os segmentos.
A longa carta de Schoenberg a Kandinsky tem como pretexto o convite que o pintor lhe endereçou para leccionar na Bauhaus e que foi recusado. Schoenberg é um dos mais revolucionários compositores de todo o século XX e a admiração e amizade entre os dois era mútua. Schoenberg, austríaco residente em Viena era judeu e na sua obra está presente abundantemente a sua origem. As razões para a sua recusa em aceitar o convite prendem-se com a onda crescente de antissemitismo que varria a Alemanha nos anos 20 e que teria o seu triste apogeu na década seguinte. Schoenberg denuncia a escalada de Hitler e dos seus apaniguados e da tentativa de fazer dos judeus o bode expiatório da terrível situação vivida no país após a I Guerra Mundial. Esta situação de perseguição e de ódio racial está aliás muito bem documentada em filmes como Berlin Alexanderplatz de Fassbinder ou O Ovo da Serpente de Bergman. Para o compositor a consequência foi o exílio na década seguinte quando os nazis entraram na Áustria. O que é curioso é que extra-musicalmente, Schoenberg não era conhecido por ser um homem particularmente empenhado do ponto de vista político nem ser conotado com ideias de esquerda. Ficou célebre o seu misticismo e o seu carácter supersticioso do qual se contam inúmeros episódios. É certo que as suas composições dodecafónicas e atonais foram consideradas arte degenerada pelo nazismo e o seu percurso acabou por ser similar ao de outro vienense judeu seu contemporâneo, Freud, também ele acusado de ser um defensor de teorias degeneradas. Mas, possivelmente a falta de enquadramento político adequado na crítica ao nazismo levou a que o referido discurso de Brecht tenha sido incluído no filme. A tese central de Brecht, remete para a visão marxista sobre o fascismo, ou seja, de que o fascismo é o recurso de que a burguesia se serve para travar a revolução dos trabalhadores. Assim, enquanto o capitalismo se mantiver, o perigo do fascismo (a ditadura terrorista do capital financeiro) é real. Logo a luta contra o fascismo enquanto regime político é indissociável da luta contra o capitalismo enquanto sistema económico que o viabiliza. Se isto é verdade na década de 30 com regimes fascistas implantados na Alemanha, em Itália, em vários países da Europa central em Portugal e em Espanha depois da Guerra Civil), não deixa de o ser em 1972 quando o filme foi realizado e mais ainda nos dias de hoje, por razões facilmente compreensíveis a quem esteja atento ao mundo que o rodeia.
Straub considerava Schoenberg o mais importante compositor alemão desde Bach e expressou a sua admiração por ele não só neste filme, como no seguinte, Moisés e Aarão baseado numa sua ópera que ficou incompleta. Os realizadores expressam também a sua admiração por Brecht a quem recorreriam com frequência ao longo da sua obra. Por todas as razões expostas, esta Introdução a «Música de Acompanhamento para uma Cena de Cinema» parece ainda mais actual quase cinquenta anos depois do que quando foi realizado, tendo em conta a forma como os novos fascismos vão surgindo um pouco por todo o lado.
No conjunto da vasta obra de Brecht, Os Negócios do Senhor Júlio César ocupa um papel singular. Trata-se de um romance que ficou inacabado, escrito na Dinamarca, precisamente quando o dramaturgo se encontrava exilado, meia década depois de Hitler ter chegado ao poder. O romance só foi publicado postumamente e não é, obviamente, uma das suas obras mais conhecidas. Mas foi a partir deste texto que Straub e Huillet fizeram uma nova incursão na história da Roma clássica.
Quando estava a ver o filme, lembrei-me de um célebre poema de Brecht que, em boa parte, sintetiza de forma admirável a concepção materialista da história e que se aplica muito a este texto.
«Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruída,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
Só tinha palácios
Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos.
O jovem Alexandre conquistou as Índias
Sozinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos
Quem mais a ganhou?
Em cada página uma vitória.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?
Tantas histórias
Quantas perguntas»
O romance analisa com alguma minúcia e um estilo incisivo e irónico, a ascensão de Júlio César e a forma como atingiu, expandiu e consolidou o seu poder imperial. Nas próprias palavras de Brecht, «Júlio César foi o primeiro político que tratava os homens de negócios espanhóis não como espanhóis, mas como homens de negócios». Estamos ainda longe do capitalismo moderno, mas já aqui o dinheiro e o pragmatismo a que ele sempre se associa, tende a substituir as ideologias convencionais. Júlio César entendeu-o de forma admirável na sua ascensão ao poder. Os negócios de classe estão acima de tudo e são eles que determinam a escravatura, as opções políticas e as guerras. Aparece-nos assim o mais célebre imperador romano completamente despojado da aura mítica com que uma certa história o quis vestir. É um homem que provém de uma família abastada romana que pertencia ao partido democrata, supostamente para defender os mais pobres da cidade, mas que se moveu sempre por uma descomunal ambição de conquista, que, aliás, viria a materializar. Por isso, estamos em presença de uma figura hábil, oportunista e sem escrúpulos, mestre na arte da manipulação dos descontentamentos populares, que posteriormente aproveita para satisfazer os seus interesses pessoais. O romance apresenta-nos quatro
depoimentos sucessivos de um banqueiro, um camponês-soldado, um jurista e um escritor que vão narrando as suas visões de Júlio César e as suas vivências com o imperador. Os depoimentos são prestados a um jovem investigador do século XX contrastando o facto de cada um deles (os que depõem e o que investiga) vestirem as roupas das respectivas épocas. Entre os depoimentos, existem longos planos do investigador a conduzir o seu carro no tortuoso e congestionado trânsito romano da década de 70. Este aspecto, particularmente enigmático e desconcertante, remete-nos para a ideia que já tinha sido expressa em Othon de que os acontecimentos históricos não se podem nem devem confinar ao passado, antes se reproduzem noutras épocas, frequentemente com uma actualidade surpreendente.
No 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx afirmou que a história se repete sempre pelo menos duas vezes: a primeira como tragédia, a segunda como comédia. Na ambição desmedida pelo poder, na manipulação sem escrúpulos, no oportunismo e militarismo, Júlio César poderá ser facilmente comparado a qualquer ditador moderno, particularmente a Hitler que estava no seu apogeu no final da década de 30. É a este contínuo histórico que Straub e Huillet recorrem em grande parte dos seus filmes para ilustrar a forma como acontecimentos e personalidades históricas se reproduzem no presente. Ainda recentemente o professor Fernando Rosas alertou para o facto das semelhanças existentes entre a ascensão actual da extrema direita um pouco por todo o lado e o trágico avanço do fascismo nas décadas de 20 e 30 do século passado. É a este contínuo histórico, a estas Lições de História, que Brecht primeiro e Straub e Huillet depois, recorrem de forma exemplar e com o brilhantismo habitual reservado à genialidade.
Othon é o primeiro filme a cores de Straub e Huillet (que desta vez também assina a realização) e a sua segunda longa metragem. Em muitos aspectos é também a sua primeira obra em que aparecem de forma vincada algumas das características da sua obra posterior: o tom vincadamente teatral e o mergulho no mundo clássico a que regressariam frequentemente, desta vez, através da adaptação da tragédia de Pierre Corneille (1606-1684), Othon, uma das suas obras mais tardias e menos conhecidas. Straub dedicou o filme a todos os falantes da língua francesa que não tiveram o privilégio de conhecer a obra de Corneille, propondo que desta forma o escritor tivesse uma audiência mais larga. O verdadeiro título do filme é Les Yeux ne veulent pas en tout temps se fermer, ou Peut-être qu'un jour Rome se permettra de choisir à son tour, dois versos da tragédia, embora tivesse sido o nome da própria tragédia que tivesse prevalecido.
A tragédia original de Corneille situa-se no período do Império Romano, mais precisamente no ano 69 D.C. Galba o imperador romano aproxima-se do fim da sua vida e hesita na escolha do seu sucessor, ao mesmo tempo que se vão sucedendo jogadas de bastidores entre aqueles que o influenciam no sentido de se perfilarem de forma mais favorável para a sua sucessão. Um dos mais temerários é Othon, que não sendo um dos favoritos de Galba, é, no entanto, um dos mais hábeis na arte de manipular as peças que lhe permitam aceder ao poder. Embora se esteja ainda naquilo que se convencionou chamar de apogeu do Império Romano, os sinais de deterioração começam a notar-se, ainda que de forma não facilmente perceptível. A forma de Straub e Huillet transporem a tragédia para o cinema é absolutamente radical. Em momento algum podemos dizer que estamos na presença de uma adaptação romanesca que é comum relativamente às obras literárias. O que a dupla de cineastas faz (e voltaria a repeti-lo variadas vezes ao longo da sua carreira) é pôr os actores a recitar o texto na íntegra. A tarefa é árdua, uma vez que a tragédia é composta por versos alexandrinos, extremamente trabalhados, quer na sua forma gramatical, quer na sua forma fonética. O resultado é estarmos na presença de um filme feito de palavras. Os momentos de silêncio são raros, os monólogos frequentemente sobrepõem-se aos diálogos, embora nunca exista a sensação de que estes não existam. As personagens «conversam» umas com as outras, mas nunca se interrompem. Os movimentos dos actores são escassos, muitas vezes aparecem de forma inopinada na tela sem se fazerem anunciar, os planos são longos e quase sempre focados nos rostos dos actores. Estes, como se tornará num hábito nos filmes da dupla, são amadores e muitos deles nem têm o francês como primeira língua, o que gera uma notável confusão de sotaques. Othon foi filmado no Monte Palatino e na vila Doria-Pamphilj a partir de uma autorização conseguida junto do município romano por Alberto Moravia e Laura Betti a quem o filme é dedicado, para além do próprio Corneille. E embora os actores estejam vestidos com trajes da época, o enquadramento de fundo é o da Roma actual, com os seus edifícios modernos e o seu fluxo constante de tráfego automóvel. Parece que o propósito é bem claro: Othon une três épocas distintas, ou seja, o período do Império Romano em que a acção decorre, o século XVII em que foi escrito e o final da década de 60 do século XX em que foi filmado. Tratando-se de uma tragédia de cariz essencialmente político, o seu conteúdo transcende tempos e lugares. A luta desenfreada pelo poder, a manipulação através de jogos de bastidores, a ambição desmedida, a exploração de sentimentos alheios para benefício pessoal, não são apanágio de uma determinada época, antes atravessam todas como se fossem uma marca indelével da sociedade de classes.
Este universalismo da mensagem sobre uma clique da classe dominante e dos seus jogos de poder é profundamente pedagógica. Straub achava que o filme poderia ser exibido nas fábricas e que seria facilmente compreendido pela classe operária e ajudá-la na sua tarefa de transformação da sociedade. Descontando os excessos revolucionários próprios da época e de que os cineastas (felizmente!) nunca se afastaram, percebe-se que a escolha da tragédia de Corneille não foi arbitrária, uma vez que ela tem uma vitalidade enorme que pode ser perfeitamente transposta para a actualidade.
Legendas em inglês.
A primeira longa metragem de Huillet e Straub foi um projecto alimentado e consolidado ao longo de dez anos até poder ser finalmente concretizado. A dupla tinha um conjunto de ideias precisas e não abdicava da sua materialização no filme o que implicava custos elevados. Para isso foram necessárias árduas demandas para que tudo pudesse ficar como tinha sido idealizado.
O projecto era fazer uma biografia semi-ficcional sobre Bach a partir dos relatos da sua segunda mulher, Anna Magdalena Bach. Este retrato autobiográfico não abrange a totalidade da vida do compositor, mas apenas o período posterior ao seu casamento. Aliás o filme não se centra em aspectos peculiares da sua vida a qual, ao que parece, não foi especialmente entusiasmante, Os relatos, feitos em voz neutra, revelam-nos as constantes deambulações do compositor para ganhar a vida, oferecendo os seus préstimos ou sendo solicitado pelos diversos nobres que governavam as diferentes regiões da Alemanha quer em encomendas musicais, quer em locais e condições de leccionação ou de outros empregos. As palavras não são muitas e os diálogos são quase inexistentes. Sobra então uma apresentação tão extensa quanto possível da genialidade de Bach, sendo as palavras proveitosamente substituídas pela música, pelo que não será descabido dizermos que estamos em presença de um filme musical. São excertos (na maioria muito pequenos) de vinte e cinco obras suas, preferencialmente tocadas por instrumentos da época e com trajes e em espaços da primeira metade do século XVIII. O rigor chega ao ponto de apresentar partituras da época escritas pelo próprio Bach. No tom de sobriedade e rigor que caracterizará toda a sua filmografia posterior, não é de estranhar que a generalidade dos actores sejam músicos com destaque para o notável cravista e maestro Gustav Leonhardt.
Visto à distância de meio século, este ainda é hoje considerado o filme mais emblemático de Huillet e Straub, provavelmente o seu mais conhecido e popular. Alguns dos mais indefectíveis seguidores consideram-no um filme menor, acusando-o de convencionalismo. Na minha opinião, não têm razão. O filme é muito simples, com uma estrutura narrativa (se é que ela existe) linear e sem aquelas ambiguidades argumentativas típicas dos seus filmes posteriores e que dão azo a reflexões e opiniões frequentemente desencontradas. No entanto, se pensarmos de como as abordagens biográficas são feitas no cinema mainstream e a compararmos coma Crónica de Anna Magdalena Bach, percebemos a imensidão que as separa. Quando analisamos, por exemplo a biografia de Mozart feita por Milos Forman (para nos atermos estritamente a grandes compositores musicais) percebemos a diferença entre a exterioridade e a interioridade. Enquanto espectadores, vemos Amadeus como um filme sobre um compositor da segunda metade do século XVIII, mas, em bom rigor, nunca saímos, enquanto espectadores, do final do século XX. Em contrapartida, em Anna Magdalena Bach, a perspectiva que nos é dada pelos realizadores e que se transmite a quem vê o filme, é um mergulho completo na época que retrata. Não apenas entramos no universo da música de Bach. Agora também fazemos parte dele.
São menos de vinte e três minutos que marcam uma rara incursão de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet numa história de amor. Na mesma curta metragem surgem condensados a adaptação da peça de Ferdinand Brückner, Krankheit der Jugend de 1928, misturada com três poemas do poeta espanhol do século XVI Juan de la Cruz e com passagens musicais do Ascension Oratório de Bach.
Apesar da sua curta duração é um dos filmes mais complexos da dupla e o primeiro em que se sente a mistura, frequentemente surpreendente, mas nunca aleatória, de referências artísticas muitos diversificadas. Basicamente é composto por três partes distintas: numa primeira parte, sem palavras, acompanhamos um longo travelling nocturno sobre as ruas de Munique e os seus bairros de prostituição; a segunda é filmada num longo take de 11 minutos dentro de uma única divisão de uma casa e onde se sucedem os diálogos e as personagens a uma velocidade vertiginosa, quase numa mínima representação teatral em que as diversas cenas são separadas por breves momentos em que o ecrã fica negro; e uma terceira parte mais rápida e fluida que corresponde ao casamento da actriz e ao desenrolar da cena final que conduz ao assassinato do proxeneta. Nas palavras do próprio Straub, O Noivo, a Actriz e o Proxeneta é um olhar sobre a decadência da civilização ocidental. A complexa estrutura narrativa não ofusca um argumento particularmente simples: uma mulher mantida na prostituição de rua que só enriquece um proxeneta sem escrúpulos, apaixona-se por um homem e através do casamento entre ambos, vê a hipótese de abandonar o tipo de vida que já não quer manter. O proxeneta tenta retaliar e impedir que os seus lucros desapareçam e acaba por ser baleado na parte final do filme. Mas, mais importante do que uma sinopse do argumento, interessa particularmente a forma como o mesmo é apresentado e que já acima foi referido e as ilações que dele podem ser extraídas. Não é exagerado dizer-se que todos os filmes de Straub e Huillet, independentemente do seu conteúdo, devem ser submetidos a uma leitura política radical, aliás de acordo com as convicções ideológicas dos cineastas. A situação de aviltamento a que a mulher é sujeita forçada a prostituir-se e a ser explorada por um proxeneta, é uma metáfora óbvia à degradação do sistema económico capitalista e às situações de humilhação e desigualdade a que os mais pobres são sujeitos; mas o facto da mulher ser capaz de encontrar uma forma de se libertar, é uma metáfora sem ambiguidades à destruição do próprio sistema e à possibilidade da construção de um mundo novo, tal como a mulher foi capaz de o fazer na sua vida particular. Este acto de libertação prolonga de forma coerente o filme anterior, Não Reconciliados e o seu subtítulo: Ou Só A Violência Ajuda Onde A Violência Reina. A revolução é a única forma de pôr fim à decadência da civilização ocidental. O que é notável, é que a obra posterior de Straub e Huillet demonstrou que não estamos perante um revolucionarismo circunstancial do final da década de 60 e das chamas provocadas pelo Maio de 68. A obra posterior espalhada por várias décadas, demonstra que a opção ideológica e estética nunca foi renegada.
Realizado no mesmo ano que Crónica de Ana Magdalena Bach, O Noivo, a Actriz e o Proxeneta não é um filme menor apesar da sua curta duração. Hanna Schygulla e Rainer Werner Fassbinder, ainda longe do protagonismo que alcançariam posteriormente no cinema alemão, são dois dos actores constantes do elenco, naquele que segundo o texto da Cinemateca é o mais comovente de todos os filmes de Straub e Huillet.
O segundo filme de Straub e Huilet volta a ter uma duração pouco convencional (cerca de 50 minutos) e baseia-se, tal como Machorka-Muff, num romance de Heinrich Boll. Embora a realização seja apenas creditada a Jean-Marie Straub, mais uma vez se pode falar de um trabalho feito em dupla, embora só a partir da década seguinte, oficialmente a direcção dos filmes fosse assinada por ambos. Recebeu o subtítulo Ou Só A Violência Ajuda Onde A Violência Reina (citando uma frase de Brecht) e foi estreado extra-concurso no Festival de Berlim de 1965 onde provocou uma forte celeuma.
Nas palavras de Straub trata-se de uma espécie de filme-oratório que narra «a história de uma frustração, a frustração da violência, a frustração de um povo que falhou a sua revolução de 1848 e que não conseguiu livrar-se do fascismo.» Nas suas palavras houve a pretensão de tentar eliminar, tanto quanto possível, qualquer conotação histórica imediata. Ao longo dos cinquenta minutos de duração, encontramos uma narrativa fragmentada, polvilhada por um sem número de personagens onde o tempo é frequentemente ludibriado, como se a sequência narrativa não fosse realmente o mais importante. Ou seja, não há em Não Reconciliados uma vontade deliberada de contar uma história, mas apenas de encontrar um fio condutor que passe pelas acções e desenvolvimento do pensamento político das diversas personagens. Não é por acaso que na pesquisa que fiz para a elaboração deste texto, vi sinopses muito variadas, algumas das quais se parecem estar a referir a filmes completamente distintos. Por isso, mais do que procurar elaborar uma síntese sobre o seu conteúdo, interessa primordialmente tentar responder a esta questão: afinal o que fica do que passa? O que poderemos encontrar como denominador comum? A resposta não é inteiramente óbvia, mas poderá ser encontrada nas explicações iniciais do próprio Straub e que surge constantemente reflectida na obra literária de Boll. Se, grosso modo, há aqui três gerações de uma mesma família que se estende entre as décadas de 10 e o início dos anos 60 do século passado que tem como denominador comum a arquitectura, o dado paradoxal é que no serviço militar a sua função é exactamente oposta, isto é a destruição de edifícios em actos de guerra. Assim os mesmos que projectam a construção de edifícios são os responsáveis pela sua própria destruição. Uma das personagens fornece uma explicação relativamente detalhada sobre o «campo de tiro» utilizado durante a guerra. Para explodir uma ponte seria necessário fazer igualmente explodir uma igreja se tal fosse necessário, desde que esta se encontrasse no referido campo de tiro.
Esta ancoragem na dialéctica dos contrários na expressão hegeliana (a tese-antítese-síntese aqui representada pela metáfora construção-destruição-nova construção) parece encerrar em si mesma toda a tragédia da Alemanha de meados do século XIX até quase ao final do século XX. O mesmo país que produziu o mais importante pensamento filosófico da modernidade, que fez revoluções em 1848 e em 1918 (ambas falhadas) foi o mesmo que provocou duas guerras mundiais e que germinou o horror nazi que perdurou muito para além do período em que Hitler esteve no poder. Tudo se pode sintetizar numa abadia que se constrói, destrói e reconstrói, como se a vertigem pela utopia desabasse no pesadelo do abismo. Nesse sentido, Não Reconciliados é um filme alemão como poucos, porque coloca um país e um povo perante o seu passado até ele se transformar em presente. E por isso é duro até o osso ficar totalmente descarnado.
O primeiro filme de Jean-Marie Straub e Danièlle Huillet, Machorka-Muff, é uma curta metragem de cerca de dezassete minutos e que foi realizada em 1963. Embora estejamos a falar de dois cineastas franceses, o filme pode considerar-se como uma das primeiras obras da nova vaga do cinema alemão, cujo manifesto de intenções tinha sido apresentado em Oberhausen no ano anterior. Straub tinha-se exilado na República Federal da Alemanha para evitar ser mobilizado para a guerra da Argélia e foi em território germânico que fez a sua estreia na realização.
O filme basear-se-ia num conto curto do escritor Heinrich Boll a quem a dupla voltaria com Não Reconciliados de 1965 e de quem também outro ilustre par do cinema alemão, Volker Schlöndorff e Margarethe Von Trotta adaptariam, doze anos depois, o livro a Honra Perdida de Katharine Blumm. Se Boll foi sempre um escritor incómodo para o poder que se constitui na Alemanha, pela denúncia aos constantes atropelos à democracia e pelo encobrimento do passado nazi de muitas figuras proeminentes da política e dos negócios deste país, Machorka-Muff é, a este respeito, absolutamente exemplar. Um coronel alemão desloca-se a Bona para receber as insígnias de general. Um homem de extrema-direita, militarista e insensível que está disposto a salvar a reputação de um seu antecessor e herói que foi derrotado em Schwichi-Schwalache durante a II Guerra Mundial e que acabou os seus dias em França, segundo Machorka-Muff, vítima de uma tremenda injustiça. A insistência do coronel baseia-se num argumento que nos parecerá quase macabro: não morreram oito mil homens nessa batalha, mas mais de catorze mil, o que, supostamente provaria o heroísmo do referido general. Ao mesmo tempo acompanhamos a sua vida privada e, mais importante, as suas reflexões políticas que mostram que o seu apego à democracia é mínimo («a oposição não conta porque nós é que temos a maioria») aquilo a que Straub chamou uma «história de violação» a propósito desta curta metragem.
Se do ponto de vista formal, ainda estamos longe dos longos planos, da comunhão com a natureza e do artificialismo recitativo das personagens dos seus filmes posteriores, o que se torna verdadeiramente relevante, é o conteúdo acerado e certeiro de Machorka-Muff. Dezassete minutos chegam para cumprir as duas premissas essenciais do Manifesto de Oberhausen: não esquecer o nazismo e denunciar os atropelos aos direitos civis de uma democracia limitada. Palco privilegiado de uma luta ideológica sem quartel que se desencadeou com a Guerra Fria, o poder das duas Alemanhas (aqui não há inocentes, nem de um lado, nem do outro) descobriu que os nazis podiam ser reciclados para a democracia, mesmo sem serem democratas) aproveitando a sua experiência de poder e de impiedade. Essa é a principal ilação desta curta-metragem, um princípio de ajuste de contas com o passado que afinal se prolonga no presente. Reitz, Kluge, Fassbinder e Schlöndorff, entre outros, fizeram-no de forma admirável: um país que pelo cinema ajusta contas com o seu passado e a forma como ele condiciona o presente. Mas Straub e Huillet fizeram-no antes de todos.
10 COISAS QUE EU APRENDI SOBRE CINEMA DEPOIS DE TER VISTO OS FILMES DE DANIÈLE HUILLET E JEAN-MARIE STRAUB
Já não sei bem se fui eu que lancei este desafio ao Chico, ou se foi uma proposta sua: fazer um ciclo integral sobre a cinematografia de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub e escrever os respectivos textos. Eu já tinha previamente escrito os textos que acompanharam as retrospectivas de Alain Resnais, de Douglas Sirk e Michael Powell e Emeric Pressburger. Mas havia uma diferença significativa. Dos cineastas em causa eu conhecia a grande maioria dos seus filmes. De Straub e Huillet tinha visto quatro ou cinco longas metragens e nenhuma curta. O facto de ter gostado imenso de todos os filmes que tinha visto deles funcionou para mim como um impulso irresistível para conhecer os restantes de uma forma sistematizada.
Os 27 textos que vão acompanhar esta primeira parte do ciclo (a que se situa entre a primeira curta metragem de 1963 e a morte de Danièle Huillet em 2006) foram escritos por alguém que não percebe nada de cinema em termos técnicos. Nunca frequentei nenhuma escola, nunca participei na elaboração de um filme, nem sei como é que se faz. Aquilo que vão ler é apenas a perspectiva de um espectador, que viu milhares de filmes na vida e que através deles foi formando o seu próprio gosto.
O processo de elaboração destes textos foi simples e comum. Ao visionamento dos filmes seguia-se a fase do atordoamento maravilhado. Maravilhado porque os achei a praticamente todos absolutamente excepcionais; atordoado porque eles são tão diferentes de tudo o que vi, que transportar ideias e sentimentos para as palavras adequadas nem sempre era uma tarefa fácil. A paralisia da escrita era quebrada por alguma pesquisa e reflexão e, frequentemente, o voltar atrás para rever alguns momentos. O que vão ler, repito, não são grandes dissertações teóricas sobre o cinema de Straub e Huillet (façanha de que eu aliás não seria capaz), mas apenas as impressões de uma pessoa que gosta de cinema e dos filmes deles em particular. Gostaria de vos deixar de forma muito sintetizada 10 ideias fortes sobre a generalidade da sua obra e que serão desenvolvidos ao longo dos respectivos textos:
1) O Cinema é uma Arma
Desde 1963 que Straub e Huillet fizeram do seu cinema uma clara opção política e ideológica. Essa opção está para lá da transitoriedade dos acontecimentos imediatos e das querelas ideológicas mais mesquinhas. O seu cinema está claramente do lado da denúncia das injustiças de uma sociedade dividida em classes e na vontade da sua transformação revolucionária. Nenhum dos seus filmes, mesmo aqueles que aparentemente parecem estar mais distantes desta intenção, se afasta deste propósito.
2) Toda a Revolução É um Lance de Dados
A Revolução não é uma declaração de intenções nem um dogma assente em pretensas verdades irrefutáveis. A revolução é essencialmente uma forma de estar e de ser, mas não uma cartilha desenhada a régua e esquadro. Nas a radicalidade da transformação não é apenas política, mas também estética. Não faz sentido existirem grandes proclamações ideológicas, quando as mesmas são servidas por formas artísticas conservadoras e conformistas.
3) Lições de História
Com Straub e Huillet viajamos livremente pelo passado. Pela Grécia e pelo Império Romano; pela Revolução Francesa e pela Comuna de Paris. No mesmo filme misturam-se épocas distintas para lhes encontrar um laço comum. A História não se repete de forma factual, mas quando Brecht escreve sobre Júlio César estava a pensar em Hitler. Não é uma circularidade histórica no sentido literal do termo, mas a percepção que a sociedade de classes, independentemente das circunstâncias e respectivos protagonistas, é geradora de opressão, de injustiça e de exploração.
4) Quem Faz e Quem Vê
O cinema de Straub e Huillet não tem nenhum tipo de filtros. Não há nenhuma artificialidade, nem nenhuma tentativa de embelezar o produto. Não há efeitos especiais (excepto se eles forem absolutamente necessários), nem nenhuma pós produção áudio, ou a coloração química artificial. Há assim uma total ausência de mediação entre aquilo que é feito originalmente e aquilo que os espectadores têm oportunidade de ver. Poder-se-ia dizer que há neles uma visão marxista da forma de fazer cinema em que não existe nenhum privilégio de quem faz relativamente a quem vê, nenhum truque escondido nenhum mecanismo de pós-produção que leve o espectador a interrogar-se como é que as coisas foram feitas. Tudo é claro e transparente.
5) Formatos e Tamanhos Diversificados
Ao longo de 40 anos e de 27 filmes entre 1963 e 2006, Straub e Huillet não privilegiaram nenhum tipo de cinema em relação a outro. Trabalharam com obras de ficção e com documentários. Fizeram filmes sobre óperas de Schöenberg e peças de Brecht, um ensaio de Franco Fortini e a correspondência entre Cézanne e Gasquet. Os seus filmes rompem com a tradicional distinção entre a ficção e o documentário colocando-se num terreno estimulantemente inclassificável. Fizeram longas, médias e curtas metragens. Estas, por vezes não ultrapassando os dez minutos de duração, são tão relevantes como o resto dos seus filmes.
6) Respeitar as Obras de Arte
O conceito de adaptação raramente existe na obra cinematográfica de Straub e de Huillet. Os quadros de Cézanne ou aqueles a que ele se refere existentes no Louvre são mostrados na sua totalidade devidamente pendurados e emoldurados; as óperas de Schöenberg são filmadas na íntegra e no caso de Moisés e Aarão o que se ouve no filme é o mesmo que foi publicado em disco. As tragédias de Sófocles ou de Corneille são apresentadas na íntegra sem mutilações nem adaptações, ou seja, sem «arredondamentos» para a linguagem cinematográfica de forma a tornar obra pretensamente mais apelativa
7) Perfeição e simplicidade
Nada é deixado ao acaso nos filmes de Straub e Huillet desde os locais das filmagens, quase sempre paisagens naturais, até ao trabalho de direcção de actores. Estes normalmente são não profissionais. O trabalho a que eram sujeitos revelava-se frequentemente exaustivo com centenas de repetições e gravações que se prolongavam por vários meses até se encontrar o ritmo e o tom adequados. Existem numerosos ângulos e perspectivas de filmagens e o trabalho de montagem é meticuloso e frequentemente com variantes que vieram a ser aproveitados para curtas metragens. O resultado de todo este labor é um produto extremamente simples o que, no entanto, nunca deve ser confundido com quaisquer tipos de facillitismos.
8) Música, Palavras e Silêncio
Em Othon, os versos alexandrinos de Corneille, são, em si mesmos, uma linguagem musical. Straub e Huillet utilizaram a sua língua francesa materna, mas também o alemão e, mais tarde, o italiano, ao longo dos seus filmes. O prazer do texto é também o prazer da língua, o respeito pela sua musicalidade intrínseca das palavras como se elas fossem (e são!) uma linguagem paralela que se harmoniza perfeitamente com o silêncio. Sobretudo nos filmes iniciais, há longos espaços de silêncio em que a câmara se detém em longos planos fixos ou deambula por paisagens naturais mostradas sem explicações. O diálogo entre as palavras e o silêncio é um dos aspectos mais fascinantes do cinema de Straub e de Huillet.
9) Um Cinema Conceptual Que Não Procura Efeitos Fáceis
Não há em nenhum dos filmes de Straub e de Huillet nenhum argumento original, provavelmente com a excepção da curta metragem de dez minutos, Europa 2005, 27 de Outubro. Os cineastas partem sempre de um texto escrito, literário ou musical e eles são de origens e épocas muito diversificadas. Mas não se trata de uma adaptação para a linguagem cinematográfica no sentido comum do termo. Trata-se de um diálogo e um confronto com o próprio texto. Em nenhum momento se procura transformar as ideias principais de uma obra para a transformarem no argumento de um filme. Por exemplo em Antígona de Sófocles estamos em presença de um acto de filmar a tragédia na sua essência, onde não existe nenhum momento de distracção das palavras. Não há efeitos fáceis em nenhum momento da sua obra.
10) Um Lugar Que Só Neles Existe
Este é um cinema que só neles existe. Straub considera-se um herdeiro da tradição do cinema clássico, num percurso que vai de Von Stroheim a Dreyer, passando por Ford, Renoir e Fritz Lang. Mas a obra que nos vão deixando (Straub continua a fazer curtas metragens) é radicalmente diferente de tudo o que existe, uma espécie de continente isolado na história do cinema. E que verdadeiramente não é comparável ao de ninguém, embora exerça um enorme fascínio na obra de outros cineastas que se inspiram na sua austeridade rigorosa, na sua autenticidade radical e no seu brilhantismo, para criarem os seus próprios percursos.
É com esta fantástica introdução, da autoria do Jorge Saraiva, que vamos dar o início a um dos ciclos mais aguardados dos últimos tempos. Venham daí, e sigam tudo pelos textos que irão ser acompanhados nos próximos dias, acompanhados pelos filmes. Até já.