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terça-feira, 11 de junho de 2019

Shoah (Shoah) 1985


Há dois filmes essenciais (ou absolutos) sobre o holocausto na história do cinema, um é o filme de Alain Resnais “Nuit et Brouillard” e outro é “Shoah”, a obra mais que absoluta sobre o holocausto, uma monstruosidade melancólica e desoladora que rompe “fronteiras” a todos os níveis, que emerge das cinzas hediondas que restaram do maior genocídio do século XX e nos apresenta/expõe a realidade dos campos de concentração nazis sem recorrer a qualquer filmagem histórica de época - e é aí, e não só, que reside o elemento capital para a grandiosidade deste filme de mais de 9 horas. Falar de “Shoah” não é fácil, nem será com toda a certeza suficiente o que quer que seja que se escreva sobre o filme, até porque já muito se disse e já quase tudo foi dito. 
Lanzmann demorou mais de uma década para recolher todo o material do qual resulta “Shoah”, o seu “trabalho” de uma vida que, de entre pesquisas, entrevistas e viagens, é um testemunho (ou vários) dos sobreviventes. No fundo do seu imo, “Shoah” é, como o próprio Lanzmann disse, um filme da memória no presente, uma exposição/apresentação (a que acarreta a negação da representação) do que foi o holocausto pela voz daqueles sobreviventes (testemunhas, vítimas e carrascos) e pela voz (e esta talvez a mais significativa e absoluta) do silêncio dos locais por onde passa (desde os campos de concentração de Chelmno, Treblinka e Auschwitz-Birkenau, até ao gueto de Varsóvia). 
Portanto, é no terreno das memórias pessoais de todos aqueles testemunhos que Lanzmann consegue “arranjar”, que “Shoah” se move e se transcende, é no silêncio daquelas imagens dos locais onde o horror viveu outrora que as sensações do indizível e do horror do extermínio são, de alguma forma, transmitidas (ainda que, como Lanzmann diz, o horror absoluto seja intransmissível). “Shoah” é O monumento sobre o holocausto, é A obra cinematográfica… é, mais palavras do próprio Lanzmann, a incarnação da verdade! Absoluto.
Texto de Álvaro Martins.

Parte 1
Parte 2
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segunda-feira, 10 de junho de 2019

Plataforma (Zhantai) 2000

Zhantai (Plataforma) é talvez, a meu ver e daquilo que até hoje vi de Jia Zhang-ke, o seu melhor filme. A palavra que me parece melhor para descrever Zhantai é melancolia, coisa que irrompe e abraça todos aqueles jovens que testemunham e protagonizam uma mudança cultural e socioeconómica da China dos finais dos anos 70 e inícios de 80. É indiscutível o teor político do filme, a principal preocupação do cineasta chinês é retractar essa mudança – e o que vemos é um pouco como Ozu fazia, detalhando a oposição do “velho” face ao “novo”. As mudanças chegam, a ocidentalização e o consumismo começam a “invadir” aquela China Maoista que, no começo do filme, ainda nos é perceptível. A pouco e pouco o individuo substitui o colectivo. 
A história de Zhantai traz-nos um grupo de jovens, todos eles a atravessar essa transformação social e individual, pertencentes a um grupo de teatro que com o tempo – e o tempo e a sua passagem são também muito importantes neste filme – se vai desmembrando e transformando (e deve-se à privatização e à iminente chegada do capitalismo) numa liberalização individual na procura dos novos ideais. Jia Zhang-ke, e voltando à melancolia, filma aqueles jovens imersos nessa mudança social e cultural (a chegada da música pop e rock, as calças à boca de sino, os filmes americanos, os penteados ocidentais, os contraceptivos, as raparigas começam a fumar, a vida privada começa a ser realmente privada…), mas envoltos na melancolia e numa certa nostalgia que caminha lado a lado com a passagem do tempo e com as transformações políticas e sociais que trazem àquela juventude uma indefinição pessoal (como a certa altura se pergunta a um deles o que daqui a 20 anos seria). 
Zhantai é um poderoso e monumental “documento” sobre a revolução (ou a nova revolução) da China actual, os primeiros “passos” daquilo que viria a ser hoje, a China capitalista, consumista e individual que substituiu a China colectiva de Mao.
Legendas em Inglês.
Texto de Álvaro Martins. Daqui

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domingo, 9 de junho de 2019

Corredor (Koridorius) 1995

Sharunas Bartas é o cineasta mais peculiar que conheço. O seu cinema é estranho, difícil, rude, estático. Se Lynch não se preocupa em explicar o porquê das coisas, Bartas procura complicar ainda mais uma suposta elucidação. “The Corridor” não tem explicação, o filme é uma sucessão de imagens de um quotidiano bizarro naquilo que parece ser o que outrora foi uma fábrica e que devido a uma crise financeira e social está ocupada por várias pessoas que à partida não fazem nada. A ideia que o filme me transmite é que Bartas faz uma crítica sociocultural de uma Lituânia pós-soviética em que mergulhou numa fragilidade e depressão económica e social. “The Corridor” parece-me ser uma metáfora dessa desolação, dessa ideologia, dessa falta de identidade que o fim da URSS deixou. A semelhança com Tarr é irrefutável, embora o cinema de Bartas seja mais estático e onde abundam mais tempos mortos. Bartas filma uma “festa” numa cozinha onde os personagens se embebedam e dançam lembrando a cena de Tarr no seu “Sátántangó”. E tanto no filme de Tarr como no de Bartas penso que se define como o delírio duma sociedade perdida, desolada, depressiva e fragilizada. Diálogos, não há. Imagem é a preto e branco. Argumento está escondido nas expressões dos personagens. Nomes, não são precisos. Ou seja, simples e sem muitos artefactos, “The Corridor” é um filme em que são necessárias várias visualizações para o compreender. E mesmo assim…!
Texto de Álvaro Martins, daqui

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sexta-feira, 7 de junho de 2019

Few of Us ( Few of Us) 1996

Entramos no mundo intrigante de Sharunas Bartas, no cinema estático dum cineasta que não se preocupa com diálogos, que os evita, que procura fazer transparecer emoções pela imagem, pelo som, pela linguagem corporal. Num cinema cru, rude, estático e introspectivo, Bartas filma uma árida zona fronteiriça da Sibéria onde Yekaterina Golubeva, actriz fetiche de Bartas, é largada por um helicóptero e colhida por um tanque. A partir daqui tudo se mistura, nada se distingue. Bartas faz um filme completamente enigmático, abstracto. “Few of Us” vive desse enigma, dessa forma peculiar de Bartas fazer cinema, da lucidez com que Yekaterina vagueia por uma região que aparenta viver num primitivismo extremo, isolada numa cultura que não é a sua, colmatada com um acto de violência que a faz fugir daquela região ou aldeia e continuar a vaguear. De facto, não há explicações no cinema de Bartas, na forma como conduz a obra. O lituano procura sobretudo exprimir as emoções do actor/personagem. Ele não se mostra interessado em fazer uma história linear, em contar uma história com princípio, meio e fim. Não, Bartas quer espremer sensações, pensamentos e emoções escondidos nos olhares, nas acções, no ambiente, nos ruídos, na natureza. Ele não se preocupa nem nos pretende explicar o porquê dela vaguear por ali, não há razão para tal, simplesmente vagueia. Somos confrontados com o seu percurso e é isso que nos interessa, a sua jornada naquela aldeia, naquela cultura primitiva e agressiva que a faz vaguear ainda mais. Não precisamos saber mais. E é isso que Sharunas Bartas nos mostra, esse percurso que retracta uma ambiguidade moral e uma desolação humana numa terra de ninguém sempre de forma estática, rude e peculiar que só ele alcança.
Texto do Álvaro Martins. Daqui 

quinta-feira, 6 de junho de 2019

Liverpool (Liverpool) 2008

Aparentemente, “Liverpool” é um filme sobre o regresso a casa. O regresso de Farrel (Juan Fernandez), um marinheiro que dada a oportunidade retorna à terra que abandonou há muitos anos. Mas o filme é isto, é o quotidiano, o seu regresso à terra para ver a mãe e a filha que abandonou e por fim a volta ao navio. Ou seja, aparentemente o filme é nada.
Mas erra quem assim pense, ou quem não consiga vislumbrar o que está por detrás desse nada, desse vazio. “Liverpool” é muito mais que isso, é um filme sobre a dor, sobre o arrependimento, sobre os remorsos que visitam o homem. Mas essencialmente, “Liverpool” é a viagem de Farrel, os seus passos, as suas acções, os lugares por onde passa. Aqui não há uma narrativa lógica, não há uma história trágica ou feliz, não há romance, não há nada desses convencionalismos que vemos no cinema. Não, “Liverpool” é Farrel e Farrel é “Liverpool”. Ou seja, Alonso quer filmar uma visita, um último adeus, um respirar mais uma vez na terrinha, um conhecimento do que ficou, do que deixou para trás, ele quer filmar um homem e acompanhá-lo no seu trajecto. 
E Lisandro Alonso desenvolve o filme lentamente e opta por um distanciamento da câmara que carrega toda uma vertente naturalista. E as expressões corporais, as pequenas acções do quotidiano ganham aqui relevo importantíssimo para dar ao filme esse aspecto realista. E o mais importante de tudo isto é ver que Alonso nem sequer envereda pela veia moralista, pela tentação de condenar Farrel pelo abandono, pelas suas escolhas. Não, Alonso quer filmar o homem e mais nada. 
Isto sim é cinema. 
Texto de Álvaro Martins. Daqui

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quarta-feira, 5 de junho de 2019

Damnation (Kárhozat) 1988

Vazio, o nada, corpos deambulando por uma Hungria decadente, apocalíptica e uma obsessão por uma mulher casada. Música, danças e mais danças, um preto e branco que mostra uma história sem esperança alguma, um homem que procura essa esperança e uma mulher que foge dela. O caos, a chuva, a arte de filmar de Béla Tarr, o fascínio de uma obra negra e incontrolável. “Kárhozat” data de 1988 e é cinema que explode nos nossos olhos, são planos correntes de corpos vazios numa normalidade incompreendida e de uma procura interior que nunca chega. O silêncio. O cinema na sua realidade.
“Kárhozat” marca o início do “preto e branco” estilizado no cinema do cineasta húngaro, assim como assegura o fim dum certo realismo social presente nos seus primeiros filmes (“Családi tüzfészek” de 77, “Szabadgyalog” de 81 e “Panelkapcsolat” de 82) e que já havia sido depurado no anterior “Öszi Almanach” de 85. E, tal como esse portento delírio de cores abrasadoras e saturantes e de planos e ângulos magistrais que é “Öszi Almanach”, “Kárhozat” é filme sem esperança alguma, o que reina ali é o caos, a decadência e a desolação do mundo inteiro naquelas almas errantes e vazias. Na verdade, “Kárhozat” esconde no seu interior um delírio social, como a tudo o resto que víria depois (os filmes seguintes) vemos associada essa alucinação social, coisa obscura e desoladora oriunda dum conflito interior onde a natureza humana prevalece (e Tarr é talvez dos mais pessimistas cineastas que conheço!), natureza negra como a noite mais escura e mais terrífica de todas… não há redenção possível, no final aquele “duelo” com o cão é a simbologia das simbologias sobre isso - o primitivismo ou o “animalesco” prevalece e molda o ser humano, ou seja, o amor não tem força nem consegue sobreviver neste mundo. No final fica a desolação e a rendição ao caos que a dor interior acarreta. 
Texto do Álvaro Martins

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terça-feira, 4 de junho de 2019

Primavera Precoce (Shôshun) 1956

Ozu, o cineasta do quotidiano, da beleza da simplicidade, dos pequenos gestos e das suas compreensões, dos erros e da aprendizagem da vida. Ozu, o cineasta da sinceridade, porque o seu cinema é o mais sincero de todos, o mais leal à vida, à semântica da vida (o que quer que seja que isso signifique), coisa mundana, coisa que irrompe da realidade e das pequenas (grandes) questões da vida.
Ozu, o cineasta da serenidade, nada no cinema se compara a esta serenidade, ainda que toda ela se veja envolta pela azáfama da vida, pelos problemas da realidade, do dia-a-dia, ainda que em todos eles (os seus filmes) brote ou a tragédia ou a traição ou a velhice ou o desemprego ou qualquer outra coisa que advém do realismo e das suas contrariedades. Ozu, o cineasta do optimismo, da transcendência da vida e do seu valor, do humano, da dádiva que é uma vida. Ozu, o mestre japonês. 
Sôshun, filme do recomeço, dos erros e do perdão. Monumental. O filme em que Ozu faz dois movimentos de câmara, naquele corredor da empresa, sempre com destino à porta do escritório de Shoji, o filme em que mais do que nunca Ozu faz uma crítica social, em que o modo de vida do pós-guerra é posto em causa, o filme em que mais do que nunca Ozu se preocupa com as relações conjugais, aqui as dos funcionários, em como tudo isso traz o tédio, a insatisfação e a alienação dessas relações. Sôshun é o filme em que Ozu tira os jovens de casa, dá-lhes emprego e uma vida familiar autónoma, longe dos pais, o começo da sua família, é o filme em que a melancolia da separação dá lugar à melancolia social e laboral que afecta a conjugal/familiar, os erros daqueles jovens inexperientes que restaram da guerra, o recomeço e a remissão. A vida, nada mais que a vida. 
Texto de Álvaro Martins. Daqui

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domingo, 2 de junho de 2019

Paris, Texas (Paris, Texas) 1984

Acabamos de (re)ver “Paris, Texas”, filme “maior” de Wenders (na minha humilde opinião, o
aclamado “Der Himmel über Berlin” está longe da magistralidade deste), e a redenção alcançada de Travis dá um sentido ao imenso “cosmos” desértico que perpetua aquelas almas “perdidas” ou alienadas ao longo da monstruosidade que é este colorido road movie imerso na melancolia e na desolação daquelas almas solitárias e, aparentemente, “vazias” (e não sei porquê - talvez pelo título - mas lembro-me sempre da Desolation row do Dylan). É, portanto, uma viagem interior impregnada na desolação duma alma errante e solitária que anseia a redenção numa procura de paz interior.
Wenders, o tal da nova vaga alemã que ficou imortalizado ao lado de nomes como Fassbinder, Herzog, Schroeter, Schlöndorff ou Syberberg, sempre mostrou o seu fascínio pela cultura americana e pelo mito americano… “Paris, Texas” não é imune a isso, está lá tudo, inclusive o falhanço do sonho americano, o american way of life! É, talvez por aí, que “Paris, Texas” encontra o seu propósito, desde a imutabilidade do género (à qual falsamente alude e primícia visualmente como um western para logo a seguir se permutar e imutar no road movie que é), à alusão da perfeição perdida (ou nunca alcançada) na simbologia que o deserto Mojave, com que inicia o filme e no qual aquele Travis errático e solitário se “perdeu”, assume… simbologia “estendida” e “descortinada” mais à frente quando percebemos que a Paris do título é no Texas e não na França, contraste assumido que percorre todo este road movie tão seco quanto o Mojave, até ao lamento que no fundo do mais fundo deste filme o é, perpetuado no tempo (os tais 4 anos de errância pelo deserto) e que culmina naquele peep show onde se confessam as duas almas errantes e angustiantes deste filme.
Por isso “Paris, Texas” é um filme-lamento, onde não só a melancolia ou a desolação reinam como a tristeza é absoluta (como absolutas são as interpretações de Stanton e de Kinski)… a recusa de Travis em falar no início do filme (silêncio quebrado apenas já quase no final da viagem de regresso a casa do irmão), assim como a obstinação inicial em caminhar, apenas caminhar, sem rumo aparente ou em direcção ao vazio, numa alienação incógnita, coisas que irão ser “confessadas” (e que genialidade a de Wenders na “criação” daquele peep show como alusão a um confessionário) mais tarde, lá perto do final… o rumo à redenção num caminho que é de redescoberta interior - a relação “resgatada” com o filho a isso possibilitou -, a solidão que Travis “chama” para si… tudo isso é um lamento e uma resignação pelo passado (que só no final e naquele tal “confessionário” emerge) e pela culpa que Travis carrega em si. 
É, portanto, no lamento que reside a vitalidade de “Paris, Texas”, no lamento da solidão e do amor que apenas de longe poderá existir, e Travis sabe-o bem e por isso a redenção final. O amor continua lá, o filho viu-o no olhar do pai enquanto via aquela super 8 e aqueles momentos nostálgicos que o fazem “lembrar” e “redescobrir-se”… foi tudo por amor, inclusivamente a fuga e o abandono… e além do lamento é o amor a força motriz deste filme, é por amor que a redenção se procura e se dá!... 
Nunca mais Wenders atingiria esta magistralidade e esta grandiosidade. Absoluto!
Texto de Álvaro Martins.

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Dealer (Dealer) 2004

"É o segundo filme de Fliegauf que vejo e confesso que estava bastante curioso em vê-lo. Isto, porque depois de ter visto “Tejút” (completamente diferente deste e que é posterior a este – mais propriamente de 2007), fiquei com vontade de ver mais trabalhos deste cineasta húngaro que neste “Dealer” se revela brilhante. Como o título indica, o filme é sobre um dealer, mais propriamente sobre os seus últimos dias.
E o que é que o filme tem de especial? Tudo. Desde o argumento à destreza da câmara, desde os actores à imagem, desde a luz ao som. De facto, nunca vi um filme sobre droga tão brilhante. “Dealer” é, e digo-o com toda a certeza, uma obra-prima.
Mais importante que todo o trabalho que Benedek Fliegauf desenvolveu aqui, é a influência de Tarr em todo o filme. Do pouco que vou conhecendo deste novo cinema húngaro, Kornél Mundruczó incluído, a influência da mise-en-scène de Béla Tarr está sempre presente. Portanto, o grande trunfo de “Dealer” é esse, os travellings que Fliegauf assume em quase todo o filme como se de um filme de Tarr se tratasse. A calma com que a câmara desliza, o som de fundo que assola quase todos os momentos do filme. Para dizer a verdade, e voltando a Tarr, se o filme fosse a preto e branco e desconhecendo o seu autor, diria com toda a certeza que se tratava de um filme de Béla Tarr. Mas não, tratasse de uma obra de Fliegauf e com todo o mérito para o senhor. Porque o filme não é só brilhante devido à sua mise-en-scène. “Dealer” é completamente diferente do que estamos habituados. É um filme sobre droga mas não sobre os drogados. Mas mais que isso, é um filme completamente impressionante. Fliegauf filma o dia deste dealer num ambiente claustrofóbico, negro e realista. Ele filma aquela cidade como se de uma cidade deserta (ou quase) se tratasse. Ele consegue dar a ideia de um mundo alienado, um mundo à parte, embora real. Um mundo onde a droga comanda. Na verdade, o ambiente criado pelo húngaro desde o início do filme é uma atmosfera depressiva, onde a dor abunda. Desde o amigo que está numa cama de um hospital com o corpo todo queimado e que implora por um último chuto, passando pela ex-companheira que tem uma filha supostamente sua e o chama para lhe dar heroína até um cliente que diz querer largar a droga mas que se contradiz pedindo-lhe mais, todo o ambiente de “Dealer” respira depressão, dor e miséria. Mas ele recusa moralismos, o próprio dealer alheia-se às responsabilidades, à realidade, até à última cena onde tudo fica mais claro, onde a moralidade vem ao de cima. 
E Fliegauf faz um filme minimalista onde se preocupa com cada detalhe do filme, com o som, a fotografia, a câmara, os diálogos. Fabuloso. "
Texto de Álvaro Martins, daqui
Legendas em inglês. 

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sexta-feira, 31 de maio de 2019

Trilogia: O Vale dos Lamentos (Trilogia: To livadi pou dakryzei) 2004

Tenho a consciência de que acabo de ver uma verdadeira obra-prima. Mas tenho também a percepção de que não é para toda a gente, não é uma obra fácil – como em tudo o resto do grego. Porque o cinema de Angelopoulos é moroso, é lento, melodramático, hiper-melancólico e contemplativo com todos os seus deslumbrantes planos-sequência. Mas sobretudo, é belo. Aqui Angelopoulos quer, sobretudo, fazer um filme sobre a história Grega da primeira metade do séc. XX. A História, a queda do grego para explorar a História da Grécia (seja qual for a época) não é novidade, quase todos os seus filmes incidem na História Grega (é o caso de O Megalexandros, A Viagem dos Comediantes, Viagem a Cítera, O Passo Suspenso da Cegonha, O Olhar de Ulisses, A Eternidade e Um Dia), mas, além disso, incide também na política. Sim, são quase todos eles, além de filmes históricos, filmes políticos. Críticos na História e na Política. Mas essencialmente, o que define o cinema de Angelopoulos é a sua mise-en-scène, os seus longos e pausados planos-sequência, a sua tentativa em, visualmente, explicar aquilo que pretende transmitir ao espectador. E mais, o seu cinema (geralmente) reflecte nos refugiados gregos. Por isso, podemos dizer que o cinema de Angelopoulos se trata de um cinema neo-realista, dum neo-realismo embelezado, poético, lírico, enfim, teatral. Mas, importante referir, um neo-realismo do que foi e não do que é. O cinema de Angelopoulos é diferente de tudo o que já se viu no cinema. É particular, muito próprio. E por isso Angelopoulos é um dos melhores cineastas de sempre. Nota-se, acima de qualquer coisa que se possa (eventualmente) notar, que o grego é um apaixonado por cinema. E além do cinema, a poesia e a História Grega têm um lugar muito especial em si.
Aqui, em Trilogia: O Vale dos Lamentos, no apoio à tentativa dessa exploração da História Grega da primeira metade do séc. XX, Angelopoulos conta a história trágica duma mulher, Eleni. Mais que trágica é uma história romântica, melodramática e sofrível. É essencialmente o retracto dum amor, da luta por esse amor proibido que nasce ainda na adolescência. As repressões morais, éticas e sociais da época e daquela comunidade de exilados que chegara a Tessalónica no virar do séc. XX, retornando à pátria oriundos duma Rússia em revolução, originam a fuga destas duas almas enamoradas e desejosas de viver livremente esse amor. E esse amor vai enfrentar as contrariedades dessa primeira metade do séc. XX. Eleni e Mihalis enfrentam a pobreza, o fascismo, as guerras (mundial e civil), as repressões, a distância, a perseguição social daquela comunidade. A tragédia de Eleni é, de certa forma, uma metáfora ao sofrimento/tragédia da própria Grécia, ao povo grego. A água (mais uma vez) figura como metáfora do pranto daquela mulher/Grécia, a inundação daquela comunidade traz, além de simbolismos religiosos (não é à toa que se inunda logo após o massacre dos carneiros que vemos pendurados numa árvore, seguido do plano do chão onde Angelopoulos nos mostra o sangue dos animais – símbolo da culpa do casal pela morte do pai), como também essa alusão directa com o choro duma Grécia sofrível, duma Grécia que atravessou nessa primeira metade do século dificuldades a todos os níveis. Angelopoulos relaciona sobretudo Eleni com a pátria, com a alma ferida da Grécia.
E, como em todo o seu cinema, Angelopoulos filma magistralmente. Estão lá os planos-sequência dilatados e lentos que são já típicos do grego, planos belos que tentam imergir numa relação espaço/tempo a que aquelas personagens permanecem sempre próximas, tempo esse que Angelopoulos parece querer estender ao máximo nesses mesmos planos. E o enquadramento da câmara, a destreza daqueles travellings, a comunhão dos planos com a magnífica música de Karaindrou, a poesia esbarrada naqueles diálogos existencialistas, a liturgia daqueles movimentos de comunidade após inundação, etc. O Vale dos Lamentos é um filme absolutamente admirável, grandioso, épico. Fenomenal.
Texto do Álvaro Martins. Daqui.

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quinta-feira, 30 de maio de 2019

Quem Programa Sou Eu: Melancolia / Desolação, por Álvaro Martins

De volta a mais uma rubrica do "Quem Programa Sou Eu", desta vez com um convidado bem conhecido da blogosfera portuguesa. O Álvaro Martins é conhecido por ser autor do blog Preto e Branco, um dos blogs mais cinéfilos de Portugal, e que ainda é actualizado de vez em quando, ao fim de quase 12 anos. O seu primeiro post data de 12 de Junho de 2007.
O Álvaro aceitou de bom grado o convite para participar nesta rubrica, e deu até um nome ao seu ciclo de 10 filmes: "Melancolia / Desolação", um tema que não será estranho a quem o conhece de tantos anos a falar e a escrever sobre cinema, como eu e muitos outros. 
Vamos começar com as palavras do próprio Álvaro para dar o pontapé de saída para este ciclo. Os filmes poderá apanhá-los por aqui, durante os próximos dias. Vão ver que vai valer a pena. Obrigado Álvaro. 

"Antes de mais, queria agradecer ao Francisco a oportunidade de participar nesta rubrica e programar um ciclo. Depois, os meus dez filmes escolhidos representam não só um gosto particular como também um tema específico que os une, uma certa melancolia e/ou desolação. O tema escolhido reflecte também o gosto e a valorização por este dada pela minha pessoa. Todos os dez filmes escolhidos marcaram-me na altura da primeira visualização e "definiram" o tal gosto cinéfilo particular que assumo e que me vem acompanhando ao longo dos anos. Estão neles alguns dos meus cineastas de eleição (Ozu e Angelopoulos "à cabeça"). Tentei reunir e escolher aqueles que, para mim, são os ou uns dos melhores filmes que eu conheço referentes ao tema em questão. Espero que gostem."