Lisboa, num dia de Inverno de 1994, entre as seis e as catorze horas. Uma mulher de quarenta anos desespera ("ter a idade que tenho e não saber nada de ter filhos") nas últimas oito horas que precedem o nascimento do seu primeiro filho. Entre risos e lágrimas, o seu companheiro, um homem muito mais novo do que ela, inventa-lhe histórias que coincidem com as horas que passam e lhe aliviam a dor. Trágicas, cómicas, caóticas e alucinadas. No preciso momento em que, ao princípio da tarde, o cadáver de um dos personagens é retirado do rio, um recém-nascido solta os primeiros e emocionantes berros da vida.
De manhã, Lisboa é assim.
"Um freixe de histórias entrecruzadas num filme que faz manhã em Lisboa. A cerzidura é precária, mas não o material de base onde onde se entrevê um sem número de hipóteses para outros tantos filmes, possíveis de construir isoladamente, com outro tempo, outra respiração. Filmes em géneros diversos, do melodrama ao musical, da história de amor ao registo fantástico, expostos como numa montra de charcutaria. E tal como aí, uma a uma, é provável que as "delicatessen" fossem de aprovar. Em conjunto é quase certo que os sabores se anulem e que haja indigestão em perspectiva". Jorge Leitão Ramos.
Miguel, um economista bem estabelecido na vida, fica profundamente afetado pela morte do seu pai. Começa a sofrer de alucinações, perde interesse no seu trabalho e desliga-se da sua mulher. Entretanto, longe da sua cidade, dois jovens provincianos, António e Cecília, estão apaixonados. O primeiro mata um homem que abusava de Cecília, que por sua vez está grávida. António, apesar de não ser o pai da criança, aceita-o como seu. A família e a comunidade rejeitam Cecília que, por ironia, encontra apoio e auxílio junto da viúva do homem que António matou.
João Botelho realizou e escreveu "Aqui na Terra" em 1993, confirmando, mais uma vez, a qualidade e a inteligência do seu cinema. Refletindo sobre um país de altos contrastes e clivagens sociais, económicas e culturais, Botelho tenta estabelecer inesperadas ligações emocionais entre o campo e a cidade, a partir das distintas histórias de dois casais em crise. Dois casais que, apesar de evoluírem em distintos universos, acabam por cruzar as suas trajetórias, angústias e problemas, ?Aqui na Terra? de todos e de ninguém, num país desconcertante e ambíguo. Botelho, como sempre, domina de forma soberba as atmosferas plásticas de um filme envolvente e tocante, servido por um belo elenco que conta com as participações de Luís Miguel Cintra, Jessica Weiss, Pedro Hestnes e Rita Dias.
João Botelho, hoje um realizador de prestígio e muito conceituado,
começou a sua carreira como ilustrador de livros infantis e artes
gráficas, a partir de 1970, tendo ainda passado pela Escola Técnica de
Matosinhos, como professor. A Faculdade de Ciências da Universidade de
Coimbra, a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto e a Escola
de Cinema do Conservatório Nacional são as instituições que fazem parte
do seu percurso académico.
Fundador da revista M, foi crítico de cinema em jornais e revistas.
Inicia-se na realização com duas curtas-metragens para a RTP e com o
documentário de longa-metragem “Os Bonecos de Santo Aleixo” para a
cooperativa Paz dos Reis. Aliás, da sua imensa obra, destacam-se:
“Conversa Acabada”, de 1980; “Um Adeus Português”, de 1985, sobre a
experiência da Guerra Colonial; “Tráfico”, de 1998; “A Mulher que
Acreditava Ser Presidente dos Estados Unidos”, de 2003; “A Terra Antes
do Céu”, de 2007. Mais recentemente, foi responsável pela elaboração de
um documentário em torno de Guimarães 2012, Capital Europeia da
Cultura e pela curta-metragem “A Valsa” para a Companhia Nacional de
Bailado.
Os seus filmes arrebataram já inúmeros prémios em vários festivais
de cinema: Figueira da Foz, Antuérpia, Rio de Janeiro, Veneza, Berlim,
Salsomaggiore, Pesaro, Belfort, Cartagena, entre muitos outros,
conquistando por duas vezes o prémio da OCIC, da Casa da Imprensa e dos
Sete de Ouro. Hoje vamos conhecer os seus três primeiros filmes.
Tempos Difíceis(Tempos Difíceis) 1988
Actualidade. A cidade de Poço do Mundo, através de três famílias: os Cremalheira - cujo pretencioso patrono ambiciona ser deputado; Grandela - um industrial prepotente, porventura de origens humildes; Sebastião - um operário patético e infeliz com a mulher. Uma vivência emergente de conformismo ou frustração, de humilhações ou prepotências, de renúncia ou rídiculos, de infâmias ou mediocridade. Entre títeres e pervertidos, exploradores e humilhados...
Na sua terceira longa-metragem, João Botelho adaptou o romance homónimo
de Charles Dickens, mas o mundo do escritor victoriano é facilmente
identificado com a realidade portuguesa ("Tempos Difíceis, Este Tempo").
Num lugarejo, o "Poço do Mundo", que é um microcosmo social, convivem a
riqueza e a pobreza mais extrema, a cultura e a ignorância, a
perversidade e a inocência. De Dickens a Botelho, o filtro é de D.W.
Griffith, com um rosto feminino, Julia Britton, que parece saída de um
dos melodramas do mestre americano. A fotografia, num preto e branco
rasante, é um trabalho notável de Elso Roque.
África Portuguesa, 1973. Nos últimos tempos da Guerra Colonial um
pequeno grupo de soldados avança no mato. Um soldado morre vítima do
rebentamento de uma mina. Em Lisboa, doze anos depois, Raul e Piedade,
pequenos agricultores do Minho, visitam Alexandre, o filho mais novo, e
Laura, a viúva do filho mais velho que morreu em Àfrica na guerra. A
família volta a estar junta, mas nunca será o que foi. Há uma pequena
dor, serena e amarga, que o tempo não esbateu. Raul e Piedade regressam à
terra. Alexandre e Laura não têm lugar para regressar. Nem para
esquecer.
A ação desta longa-metragem desenvolve-se em dois planos que se entrecruzam habilmente: no primeiro, acompanha-se o percurso trágico de um grupo de militares em território africano, em combate na Guerra Colonial; no outro, assiste-se à vivência perturbada de uma família, longe do teatro de operações.
Um Adeus Português é, assim, uma reflexão, mais existencial do que política, sobre o sacrifício e o sofrimento. O seu interesse reside no facto de abordar o tema da Guerra Colonial portuguesa, acontecimento histórico recente que, por esta altura, começava a ser tratado na criação artística, nomeadamente na literatura.
No início deste século, em profunda crise política e moral da sociedade portuguesa (uma confusa I Républica, com restos de uma monarquia podre), um encontro e um momento de catástrofe: Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro Reinventam a língua, o modo de dizer, pagando os riscos da sua aventura. Um rebenta a solidão no fogo dos heterónimos, que lhe permitem prolongar a existência; o outro despedaça o corpo e a própria vida, na vertigem dispersa de poemas e novelas. A história desse encontro - os textos, a amizade e a morte...
Tirando o melhor partido do ecrã virtual (tal como existia há trinta anos), este é um filme indissociável de todo uma assumida teatralidade
que passa, não apenas pelo artifício das composições, mas também pelo
peso específico das palavras. Afinal de contas, de Manoel de Oliveira a
Jacques Rivette, passando por David Lynch, essa tetralidade é essencial
para compreender algumas das vias fundamentais do cinema moderno.