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quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

O Pântano (La Cienaga) 2001

No mês de fevereiro, no pantanal do Noroeste argentino, o calor se junta às chuvas tropicais. Hà alguns kilometros da cidade La Ciénaga está a Mandragora, uma propriedade rural onde Mecha, com 50 anos, passa as férias de verão com os seus quatro filhos e um marido inexistente. Esquece a sua tristeza no vinho. Tali é a prima de Mecha. Também tem quatro filhos. Dois acidentes vão reunir essas duas familias.
"Na sequência de abertura de La ciénaga (Le marécage)(2001), o intenso tilintar do gelo nas taças é algo que fica tão impregnado na nossa memória quanto o vermelho excessivamente saturado que colore a bebida servida aos personagens. Também são extremamente pregnantes os ruídos que acompanham os planos-detalhes ou fechados desses instantes iniciais do filme – como se, na mixagem final, o volume desses elementos tivesse recebido um ganho sonoro muito maior que os outros sons que os circundam em cena. Escutamos claramente o arrastar do ferro das cadeiras de praia pelo chão de cimento, o ranger de suas molas ao sabor dos corpos que se esticam em letargia, as trovoadas anunciando a intensa chuva de verão vindoura – todos eles não apenas estão bastante presentes, como também colaboram na desconfortável sensação de imprecisão perceptiva que se apossa do espectador, graças a um encadeamento de planos que não nos permite mensurar adequadamente distâncias e localizações no espaço cênico que lhe é apresentado.
Mais adiante, um grupo de garotos corre pelas ruas agitadas da cidadezinha, tentando alcançar as jovens que, incansáveis, tentam fugir das bexigas cheias d’água que seus perseguidores insistentemente lançam em sua direção. Subitamente, elas entram numa loja de roupas, e uma delas fecha atrás de si uma grande porta de vidro. Num big close, vemos os lábios de uma adolescente murmurarem algo, enquanto a bexiga estoura contra o vidro que a protege. A água escorre pela superfície com uma suavidade que contrasta com a intensidade com que o ruído ecoa pela sala de exibição, mais próximo das entrelinhas que pontuam o jogo erótico travado entre meninos e meninas recém-ingressados à puberdade. Todavia, essa sobrevalorização dos elementos sonoros acaba sendo essencial para a experiência sensorial proposta ao espectador pelo filme de Lucrecia Martel, criando pontos de escuta privilegiados que permitem traduzir, de certa forma, a sensação dos corpos filmados a vagar por um ambiente em que o calor e umidade insuportáveis regem tanto o torpor dos adultos quanto a ebulição dos mais jovens.
Acredito que os três longas-metragens que compõem a filmografia da argentina Lucrecia Martel partilham de um certo “realismo sensório” (Vieira Jr., 2011) que emerge numa certa vertente do cinema contemporâneo. Tal realismo seria marcado pela construção narrativa através de ambiências, pela adoção de um olhar microscópico sobre o espaço-tempo cotidiano e por uma experiência afetiva marcada pela sobrevalorização de uma sensorialidade multilinear e dispersiva. Trata-se de uma espécie de denominador comum entre filmes realizados nas últimas duas décadas por cineastas tão diversos quanto Lucrecia Martel, Hou Hsiao Hsien, Apichatpong Weerasethakul, Claire Denis e Naomi Kawase, entre outros."
Texto de Erly Vieira Jr.

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sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

A Mulher Sem Cabeça (La Mujer Sin Cabeza) 2008


Verónica está ao volante do seu automóvel quando, num momento de distracção, atinge qualquer coisa e foge amedrontada. Nos dias seguintes, sente-se como que a desaparecer, indiferente às coisas e às pessoas que a rodeiam. Depois de confessar ao marido que atropelou alguma coisa na estrada, regressam ao local do acidente e descobrem um cão morto. Mas quando a vida parece retomar a normalidade, um cadáver é descoberto...
O que se segue é um retrato de uma pessoa totalmente fora de sincronia com a sua própria existência. Este não é um assunto particularmente novo na história do cinema, especialmente para quem está familiarizado com realizadores como Michelangelo Antonioni ou Luis Buñuel, dois mestres incomparáveis frequentemente invocados na promoção deste filme. No entanto, a realizadora/argumentista Lucrecia Martel, imensamente ajudada pelo trabalho de câmera de  Bárbara Álvarez, cumpre o seu trabalho com esforço confiante e uma expressiva estética dela própria.
Descobrimos que a vida de Verónica não é apenas o que parece. A carreira, a família, e uma infidelidade ou duas começam lentamente a entrar em foco, assim como uma implícita auto-culpa. Mas o título de A Mulher Sem Cabeça não é uma parábola. É mais o retrato psicológico de uma pessoa para sempre condenada a ser um "voyeur" da sua própria vida, algo que a mudança da côr do cabelo pode corrigir apenas exteriormente.
Martel já vinha a revelar-se desde o início da década, e esta era já a sua terceira obra de uma carreira bastante promissora. Concorria a Cannes pela segunda vez, mas ainda não era desta que a realizadora argentina era premiada. Já há muito que deixou de ser uma promessa do cinema Argentino, e passou a ser uma certeza.

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