Aquando do nascimento do Menino Jesus, portanto há mais de dois mil
anos, os três reis magos encetaram cada um por si uma longa viagem.
Belchior, Baltazar e Gaspar, assim se chamava cada um deles, percorreram
montes, vales ou desertos, calores e fúrias intempestivas, sempre
guiados pela estrela divina. São Beda, o Venerável, escreveu num certo
tratado: "Belquior era velho de setenta anos, de cabelos e barbas
brancas, tendo partido de Ur, terra dos Caldeus. Gaspar era moço, de
vinte anos, robusto e partira de uma distante região montanhosa, perto
do Mar Cáspio. E Baltasar era mouro, de barba cerrada e com quarenta
anos, partira do Golfo Pérsico, na Arábia Feliz". Um velho, um moço e um
mouro, cada um na sua e unidos numa causa, lá se encontraram e na sua
imensa fé cumpriram um destino e um objectivo.
Arthur Rimbaud, 1854-1891, poeta Francês. Tanto que se meteu com a luz,
os negros, mortes e infernos e demais elementos que se diz que pelos
vinte anos não mais escreveu um poema. Avistou ou falou à loucura ou
precisou de para sempre se libertar de tudo o que no papel tinha
convocado, não muito mais saberemos. Entre alistamentos em exércitos e
tráfico de armas, cartas à irmã e perdições eternas, rasgou vários
continentes, fez de Aden ou de Harar o éden de todos os dissidentes ou
asfixiados e quando tentou voltar a casa já era tarde e tais espasmos
queimantes só os poderemos para sempre imaginar ou algures presentir.
Entre os três reis magos e a viagem de um ponto A a um ponto B com uma
missão e mapa a cumprir custe o que custar e todos os Rimbauds que
necessitaram de se evadir em primeiro de tudo de si próprios, chama
interior, caminhada para lado nenhum ou para onde calhar, sem rumo,
podemos meter ao barulho as Odisseias, os Homeros ou os Ulisses, o
Western clássico americano como o verdadeiro início do road-movie no
cinema, sendo a fibra dos cowboys ou dos índios o dínamo e os cavalos as
grandes máquinas para o palmilhar louco, ou então, puxando mais atrás,
Alexandre o Grande ou o guerreiro Viriato, isto para irmos a.C ou às
ancestrais guerras e guerreiros como original terreno imprevisível a
vencer.
Portanto, o road sempre existiu e talvez nada mais poderoso que o movie
para captar todos os dilemas e contendas nobres ou amaldiçoadas entre o
homem e o seu sistema nervoso e toda a paisagem, química e física do que
o rodeia e tanto lhe é indiferente. Resultado de altercações
indesculpáveis, biologias viciadas ou sede de conhecimento ou posse, o
homem é uma criatura tão propensamente sedentária como inquieta, e do
vagabundo Chaplin até ao romântico e severo Frank Capra, que ainda
experienciavam possíveis humanidades e comunhões, mesmo que já contendo
no corpo todas as sementes da destruição, até aos zombies do "Two-Lane
Blacktop", solidões mortais do policia do "Electra Glide in Blue" ou o
incompreensível "Vanishing Point", uma degradação e um mistério que
todos podemos sentir e sondar, sem grandes ou nenhumas respostas que não
quase sempre tragédias e eternidades comprimidas.
Num ciclo assim chamado "As Estradas Sem Fim dos Anos Setenta", que um
dos últimos genuínos e persistentes cinéfilos à face da terra vos
entrega neste blog, duas ousadias que infletem a cantilena dos
compêndios da chamada sétima arte: "Dirty Mary Crazy Larry", de um
estranho John Hough, balada de predestinação noir e requiem terminal
pelo analógico pré "Death Proof", gatos pretos, acasos e esoterismos
macabros que se nos sussurram de um outro mundo é pela pelicula e pelo
reconhecível que nos chagam; "Race With the devil", arrancado por um
Jack Starrett, e por um Fonda e um Oates, que entre outras coisas
perceberam esta arte da rua como a arte do impuro que é o que nos traz
por aqui, e que como sempre só no realismo, que aqui lhe podem chamar
amadorismo, todas as efabulações e delírios ganham essa força
amplificada que é a força do ontológico e do honesto, por mais
mirabolantes que sejam. E como um e outro dominam e agarram pelos cornos
o "saber fazer"...
Então, bom ciclo para todos, de preferência com um som bem alto, para
que o rosnar ensurdecedor dos motores possa ceder degrau aos lancinantes
silêncios dos tantos magoados que irão conhecer.
José Oliveira, Janeiro de 2013
Os meus agradecimentos ao José Oliveira, do blog Raging-b, por esta fantástica introdução.
Sem comentários:
Enviar um comentário