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sábado, 7 de outubro de 2017

Homens Maduros (Age of Consent) 1969

Homens Maduros é o infeliz título dado em Portugal a The Age of Consent, o penúltimo filme realizado por Michael Powell. Peeping Tom, hoje considerado um clássico, arruinou a carreira britânica de Michael Powell. A década de 60 foi penosa para o cineasta, ostracizado pela crítica mainstream do seu país e com escassas possibilidades de filmar. Não admira, portanto, que este The Age of Consent tenha sido rodado na Austrália, produzido a meias por Powell e James Mason que desempenha o papel principal. Para todos os efeitos, o cineasta tornou-se, pelo menos temporariamente, num exilado. 
O filme parte de um roteiro de Peter Yeldham baseado num romance de 1935 de Norman Lindsay. Em abono da verdade o filme que fecha o ciclo não é propriamente um encerramento com chave de ouro. Não foi o desastre que a crítica não australiana proclamou, mas foi um filme pouco condizente com os pergaminhos anteriores de um dos cineastas mais importantes de sempre. Curiosamente, parece-me que o argumento até poderia ter potencialidades para dar, não um grande filme, mas uma obra interessante. Um pintor de sucesso resolve regressar à Austrália natal, cansado dos meandros do negócio das artes. Mesmo em Brisbane, sente a necessidade de se isolar e recolhe a uma ilha que pensa ser deserta. Não se percebe se o seu objectivo é redefinir a sua carreira, ou apenas descansar. O que poderia ser explorado de forma mais eficaz é a forma de relacionamento entre o pintor e uma bela adolescente que vive na ilha (Helen Mirren no seu primeiro papel no cinema). A presença da adolescente faz repensar o rumo criativo do pintor. Teríamos então um filme que poderia ser excelente se centrasse na relação entre pintor e adolescente que lhe serve de modelo. Claro que como a relação estabelecida não vai ser puramente artística, poderíamos antever uma espécie de Lolita (de Kubrick a partir do célebre livro homónimo de Nabokov), salvo as devidas distâncias que se prendem sobretudo de não estarmos em presença de uma adolescente de 12 anos, antes de uma de 17 e com um corpo de adulto. Por vontade própria, ou por condições alheias, Powell altera o foco para elementos laterais, tornando o filme numa espécie de comédia ligeira., criando personagens secundárias (a avó, o amigo, a velha solteirona, o barqueiro) que lhe aligeiram o tom, tornando-o excessivamente leviano e superficial. Daqui resulta um objecto em que nenhuma das personagens tem suficiente espessura e densidade para fazer delas algo de interessante. Para quem nos deixou algumas das mais inolvidáveis personagens da história do cinema, custa bastante ver Powell nesta situação. E nem o belo corpo de Helen Mirren aqui filmado no limite (ou se calhar um pouco para lá do limite) das convenções dos anos 60, nem as imagens subaquáticas dos corais, salvam The Age of Consent de um certo desconchavo. E afinal, quando o que de forma mais ou menos sugerida se concretiza na cena derradeira do filme, fico a pensar se ele não poderia ser muito melhor se se tivesse centrado na relação artística e pessoal entre o pintor de meia idade e o seu modelo adolescente. 
 Não sei se se pode falar de declínio criativo. Afinal Powell tinha apenas 64 anos quando realizou The Age of Consent. Houve cineastas como Bergman, Resnais ou Oliveira que fizeram obras primas com idade muito mais avançada. Mas provavelmente nenhum deles teve que arrostar com um filme que hoje é uma obra prima e na altura foi demolido. É à luz de Peeping Tom que podemos ver The Age of Consent. E talvez essa relação explique mais coisas do que o próprio filme. 
* texto de Jorge Saraiva

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A Vítima do Medo (Peeping Tom) 1960

Após a interrupção da parceria com Emeric Pressburger e a dissolução da produtora The Archers, Michael Powell realizou um filme menor, Honeymoon (1959), antes de se abalançar a Peeping Tom, o seu filme mais controverso de sempre e aquele que na altura mais dividiu a opinião da crítica e do público.
Peeping Tom é a expressão em calão para a palavra francesa voyeur, ou seja, aquele que gosta de observar os outros de forma indiscreta e disso retira prazer, nomeadamente de natureza sexual. Aqui essa componente está afastada, sendo substituída pela sensação de medo. O filme tem um argumento de Leo Marks e concita todos os nossos pavores. Não são precisas grandes introduções para percebermos o que se passa: um fotógrafo discreto e tímido vive com uma dupla personalidade. Por trás da sua afabilidade e da sua vontade expressa de se isolar das pessoas. existe um monstro que procura levar as mulheres a uma situação de terror absoluto, para, em seguida, as assassinar. Este tipo de argumento que se aproxima dos thrillers psicológicos e dos filmes de horror, remete de imediato para o universo psicanalítico. Neste caso, não directamente para o complexo de Édipo de Psycho de Alfred Hitchcock (quase da mesma altura e com quem foi frequentemente comparado), mas para um trauma violento causado pelo abuso psicológico por parte do pai. A câmara de filmar de que Mark Lewis (Carl Boehm) se serve é um objecto ambivalente: serve para reavivar a recordação do trauma de infância, mas também como fonte de acalmia mórbida, através do assassinato das mulheres que são suas vítimas. Esta polaridade de opostos desagua num universo sado-masoquista (mais uma vez sem a componente sexual) da personagem do protagonista, que tanto argumentista, como realizador optaram por deixar opaca e enigmática. Apesar da utilização muito apropriada da cor, com o predomínio dos tons quentes, do brilhantismo quer da fotografia, quer da música e do desempenho sóbrio e eficiente dos actores, o que me fascina mais é a excelência do argumento e da realização. O primeiro é denso e complexo, com inúmeras ramificações, muitas vezes mais sugeridas do que desenvolvidas; a segunda porque em momento algum, Michael Powell se deixa levar pelos clichés do género. Não há sangue, não se filmam mortes, excepto no final por uma conclusão lógica do argumento, não há a criação de uma expectativa artificial nos espectadores. Não estamos, de facto, na presença de um filme de terror. O serial killer é apresentado como um homem perturbado, mas nunca como uma espécie de demónio que tem prazer em fazer sofrer as suas vítimas. É esta indefinição, de um assassino que sofre por matar as suas vítimas, mas que depois retira prazer de vê-las sofrer, cuja explicação para os seus actos é apenas antevista, mas nunca totalmente explicada, que torna Peeping Tom num dos mais perturbantes filmes da história do cinema. Como aconteceu em toda a sua carreira isoladamente ou com Michael Pressburger, não abundam as personagens lineares. Mas talvez não exista nenhuma com o grau de ambiguidade de Mark Lewis. Neste jogo de duplicidades, somos incitados enquanto espectadores a estabelecermos uma ligação afectiva com o protagonista de ar sofredor, bons modos e palavras tranquilas, quase pedindo desculpa pelo facto de existir.
O filme praticamente arruinou a carreira na Grã-Bretanha do seu mais prestigiado cineasta. Mais do que fria, a recepção de grande parte da crítica foi de um encarniçamento total contra o filme. Muito mais tarde, Michael Powell diria com a habitual fleuma britânica: este foi um filme que na época ninguém queria ver, mas que agora todos já viram ou querem ver. Até eu que não sou um absoluto incondicional dos filmes do género, sou capaz de reconhecer facilmente a sua genialidade. 
* texto de Jorge Saraiva

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sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Perigo na Sombra (I'll Met by Moonlight) 1957

Perigo na Sombra foi ó ultimo filme realizado por Powell e Pressburger, enquanto membros da produtora The Archers, que se dissolveria ainda nesse ano. A dupla voltaria ainda a assinar dois filmes em conjunto, mas por ora decidiram terminar a sua carreira conjunta, para que cada um pudesse explorar os seus próprios caminhos. Claro que essa decisão amigável veio a ser mais benéfica para Powell do que para Pressburger.
Perigo na Sombra é o título em português de I`ll Met By Moonlight. O filme é uma mistura quase bizarra de filme de guerra e acção, com um thriller, num ambiente típico de neo-realismo italiano. Para este último aspecto contribuiu decisivamente o facto de os The Archers terem optado nesta adaptação de um romance de W. Stanley Moss, pelo preto branco. Embora tivesse sido rodado em grande parte nos Alpes marítimos franceses, a acção refere-se à ilha grega de Creta e reporta-se à fase final da Segunda Guerra Mundial. Nessa ilha ocupada pelos alemães, com o habitual rasto de destruição que esteve associado ao nazismo, um grupo de oficiais britânicos aliado à resistência cretense ao invasor, resolve fazer uma operação audaciosa: raptar o responsável máximo militar alemão e levá-lo para o Cairo. As razões nunca são apresentadas ao longo do argumento. A operação é, em si mesma, particularmente arriscada, a dois níveis: por um lado conseguir efectuar o acto de rapto e, por outro, conseguir evacuá-lo da ilha. É aqui que o filme se torna num thriller interessante. recheado de sentido de humor. Como de costume nos seus filmes, coabitam várias línguas: o inglês. o alemão e o grego, consoante os protagonistas. Ao espírito impulsivo e generoso dos cretenses, junta-se a fleuma e o humor dos oficiais britânicos, num quadro de entreajuda praticamente exemplar. Também a guerra surge como um pano de fundo, onde as acções militares são mais referidas do que propriamente filmadas. O conjunto de peripécias muito focado nas viagens pela ilha montanhosa tentando fugir dos alemães e conduzir o dito general até ao porto onde o barco britânico o espera, acabam por ocupar uma parte substancial da acção. Nesse sentido, o filme é estranhamente leve para um tema tão sério, com alguns momentos quase hilariantes. Este tom de abordagem da guerra, contrasta com A Batalha do Rio de Prata, o seu filme anterior, que era pesado e austero. O general alemão (protagonizado por Marius Goring, que já tinha participado em 3 filmes anteriores da dupla) foge completamente à visão estereotipada que foi apresentada na generalidade dos filmes sobre a Segunda Guerra Mundial. Embora procure reaver a sua liberdade e deixar todas as pistas possíveis para que os seus soldados o encontrem tentando mesmo subornar uma criança, há uma espécie de moral cavalheiresca entre o referido general e os seus raptores britânicos. Na guerra cada um desempenha o seu papel: uns combatem por um lado, outros por outro. O facto de serem inimigos não pode significar que tenham que se odiar. Este olhar humanista sobre os alemães está muito presente em praticamente todas as abordagens feitas à Segunda Guerra Mundial por parte de Powell e Pressburger. Não há espaço nos seus filmes para um maniqueísmo simplista. De resto, apesar de não ser um filme de grande orçamento, todos os pormenores foram meticulosamente cuidados. Para além de uma presença breve de Christopher Lee, o destaque principal vai para Dirk Bogarde, ainda numa fase afirmação de uma carreira que veio a ser extraordinária, a ponto de ser considerado um dos mais versáteis e brilhantes actores de toda a história do cinema. 
Enquadrada no conjunto da obra de Powell e de Pressburger, I`ll Met You By Moonlight não é um dos seus melhores filmes, longe disso. Mas contém suficientes motivos de interesse para justificar um visionamento atento. 
* texto de Jorge Saraiva

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a Batalha do Rio da Prata (The Battle of the River Plate) 1956

Após Os Contos de Hoffman a produção de Powell e de Pressburger caiu drasticamente. Até 1951 terem realizado um filme por ano, fizeram um interregno de quatro anos. Regressaram com a comédia musical Oh Rosalinda que não está incluída neste ciclo. Posteriormente assinariam em conjunto mais dois títulos, antes de dissolverem a produtora The Archers em 1957
A Batalha do Rio de Prata (1956) é o segundo desses três filmes. É o regresso ao cenário da Segunda Guerra Mundial e a um dos seus episódios mais significativos, a primeira grande batalha naval desse conflito, ocorrida em 1939. Ao contrários de outros filmes seus em que a guerra era um pano de fundo, mas nunca aparecia filmada, tornando-se numa espécie de ausente-presente, em a Batalha do Rio de Prata as acções militares não só são filmadas explicitamente, como se tornam no aspecto fulcral de todo o filme, tornando-a numa presente-presente. Trata-se de uma reprodução absolutamente meticulosa e fidedigna daquele episódio militar. Como tal, foi filmado no próprio local e houve o cuidado de utilizar os navios da época de forma a tornar mais realista a acção. Mais uma vez nenhum pormenor foi deixado ao acaso, embora haja, como é óbvio, elementos ficcionais. As filmagens decorreram no Rio da Prata e na cidade de Montevideu, capital do Uruguai. No contexto da acção estão os modernos cruzadores alemães que atacam sistematicamente e em todos os lugares do planeta os navios mercantes ingleses, tendo em vista cortar os abastecimentos à Grã-Bretanha. Revelando uma clara superioridade tecnológica, os alemães acabam por ser confrontados no Rio de Prata, com uma frota britânica muito superior que acaba por derrotar a jóia naval alemã, o cruzador Graf Spee. A Batalha do Rio de Prata centra-se exclusivamente nos aspectos militares da acção, quer na sua vertente prática no terreno, quer na definição de estratégias e contra-estratégias para aniquilar o adversário. É um filme sem mulheres, porque estas não fazem a guerra nem pertencem à Marinha (pelo menos nesse tempo). Não apresenta contextos de vida pessoal ou qualquer romance. Não tem verdadeiramente um actor principal, uma vez que tem o cuidado de se repartir entre os barcos ingleses e o couraçado alemão. Tem muitos tiros de canhão e presume-se que existam muitas baixas de um lado e do outro, estas são referidas, mas raramente filmadas. Sendo um filme a cores, é, do ponto de vista do argumento, totalmente monocromático. A única variação à acção militar está directamente com ela relacionada, ou seja, as manobras diplomáticas das diversas embaixadas junto do governo uruguaio, nessa altura neutral.
Não é propriamente galvanizante, para quem não percebe nada de guerra, nem é um particular entusiasta deste tipo de temas. Mas quando se faz uma análise mais fina, percebe-se imediatamente a marca de água dos The Archers, mesmo num filme que não é, na minha opinião, uma obra prima. E não é apenas no plano puramente estético. O filme trata os alemães em absoluta paridade com os ingleses. No centro está a figura do capitão alemão Hans Langsdorff que faz sobrepor a dimensão ética do relacionamento humano, face ao mero sentido do inimigo militar. A forma como termina os seus dias («um capitão está sempre sozinho») num assomo de dignidade e cavalheirismo, remete-nos de forma imediata para a obra prima de Jean Renoir, A Grande Ilusão. O mesmo sentido de dignidade ao olhar a guerra, que afinal é uma circunstância do acaso e, como tal, transitória, enquanto há uma perenidade de valores que ultrapassa circunstâncias e fronteiras. 
A Batalha do Rio de Prata não está ao nível das obras primas que Powell e Pressburger nos deixaram. Mas é um filme deles, com todo o significado que isso possa ter. 
* texto de Jorge Saraiva

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quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Os Contos de Hoffmann (The Tales of Hoffmann) 1951

Os Contos de Hoffman ocupam um lugar muito particular na obra de Michael Powell e de Emeric Pressburger. Poderá ter alguns pontos de contacto com Red Shoes pelo peso que a música e a dança nele desempenham. Mas a estrutura e a intenção deste Contos de Hoffmann são completamente distintos.
Não sei se na história do cinema anterior a 1951 houve muitos exemplos de adaptação de óperas ao cinema, mas estou convencido que não. O projecto era arriscado. Jacques Offenbach o francês nascido na Alemanha em 1819 e que era um violoncelista virtuoso e um compositor emérito, dedicou grande parte da sua actividade à criação de operetas. Os Contos de Hoffman foram a sua única ópera, que aliás ficou incompleta e que só foi estreada um ano após a sua morte em 1880. A ópera tinha um libreto de Jules Barbier e baseava-se em três histórias curtas de E.T.A. Hoffmann. de pendor romântico e fantástico. A adaptação ao cinema feita por Powell e Pressburger com o apoio de Dennis Arundell, mantém-se bastante fiel ao libreto original, embora com algumas alterações de pormenor. Não sou entendido em ópera, logo não tenho condições para fazer para uma crítica de tipo musical, nem penso que seja essa a intenção deste texto. Os The Archers não tinham a intenção de filmar uma ópera no sentido clássico do termo. O seu objectivo era fundir a ópera onde existem inúmeros elementos de ballet com o cinema, isto é conjugar as três artes, tirando partido das vantagens tecnológicas desta última. Portanto o que vemos é um filme com um libreto de ópera, mas onde a marca dos realizadores é absolutamente inconfundível. E aquilo que vemos é absolutamente esmagador. Presenciamos, muitas vezes atónitos, a algumas das imagens mais belas que a dupla nos ofereceu, o que não é fácil, tendo em conta a maravilhosa quantidade de filmes que os The Archers nos legaram. O argumento segue o libreto original constando de um prólogo, três contos e um epílogo. Comum às três histórias é a personagem do próprio Hoffmann representada por Robert Rounseville, um actor e cantor lírico americano que juntamente com Ann Ayars são os únicos que representam e cantam. Todos os restantes actores, incluindo a bailarina Moira Shearer (a protagonista de Red Shoes) não cantam, apenas dançam e representam. As três histórias giram em torno dos três amores de Hoffmann e os três logros em que caiu: a paixão por Olympia, cantora e bailarina que afinal não passa de um autómato que se vai desarticulando; a paixão por Giulietta (Ludmilla Tchérina) que se desfaz porque a sua imagem deixa de aparecer reflectida num espelho o que provoca a perda da sua identidade; finalmente na terceira, a paixão por Antonia (Ann Ayars) que é uma cantora que sofre de uma doença incurável e que se continuar a cantar fatalmente morrerá. Todas as paixões serão um malogro e que conduzem a um epílogo ambíguo onde alguma esperança floresce no meio do desalento. O lado fantástico é proporcionado pela presença diabólica de um mágico (três personagens sempre representadas por Robert Helpmann) que tudo faz para afastar Hoffmann dos seus amores, utilizando ardis que vão para lá do mundo físico. O que é absolutamente espantoso é que tudo é filmado num palco, sem o recurso a takes exteriores. Trata-se de reproduzir em estúdio todos os envolvimentos do mundo exterior, nomeadamente das paisagens naturais. Desta intenção deliberada, resulta um filme tão artificial quanto maravilhoso, que seria seguido por muitos cineastas posteriormente, de Alain Resnais (Mélo e Coeurs) até Coppola (One from the Heart), passando por Syberberg. Tudo é extremamente cuidado: o trabalho de actores, particularmente difícil num filme deste tipo, a interacção com a música (cantada em inglês, ao contrário do original que utilizava a língua francesa), os cenários, a montagem e todos os adereços. Nada é deixado ao acaso. Este trabalho de um meticuloso primor contém algumas cenas absolutamente inesquecíveis: a desarticulação de Olympia, a canção que inicia a história de Giulietta (Moon of Love) e as vozes que Antonia ouve por parte da sua mãe, são apenas três exemplos. 
É o último grande filme de Powell e de Pressburger enquanto dupla. Não foi, nem nunca poderia ter sido, um grande sucesso de bilheteira, embora não tenha sido um desastre, o que significa que mesmo no início da década de 50, havia público para projectos tão arrojados como este. Embora a dupla continuasse a filmar, há um fim de ciclo que se anuncia em Os Contos de Hoffman. O tempo em que podíamos alimentar todas as nossas ilusões numa sala escura a olhar para uma tela. Um sonho a cores. 
* texto de Jorge Saraiva

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terça-feira, 3 de outubro de 2017

A Raposa (Gone to Earth) 1950

Com Gone to Earth (quem em Portugal recebeu o nome de A Raposa), Powell e Pressburger entram declaradamente no terreno do melodrama como ainda nunca o tinham feito. É um filme brilhante, mas que acabou por ter um efeito polémico: David Selznick não gostou do final e procurou modificá-lo, no que esbarrou com a firme oposição dos The Archers. O caso acabou em tribunal com uma decisão salomónica: Selznick não podia alterar o filme na Grã-Bretanha, mas pôde fazê-lo para a versão americana, saída em 1952, com o título Wild Heart e com cerca de um terço do seu conteúdo alterado.
Gone to Earth adapta uma novela de Mary Webb de 1917. É um filme campestre passado em plena época vitoriana (final do século XIX), que foi marcada por um grande puritanismo. Tal como todos os grandes melodramas (veja-se o caso de Douglas Sirk), nunca é inocente. No centro está uma rapariga que vive numa espécie de mundo panteísta e que adora uma raposa e que parece viver em estreita comunhão com a natureza, particularmente com os animais. É uma personagem tão deliciosa quanto contraditória. Um dia promete ao seu pai, fabricante de caixões de profissão e notável harpista, que casará com o primeiro homem que a pedir. Será disputada ardorosamente por dois homens: o reverendo da região (igreja protestante) o primeiro a pedi-la e um proprietário e caçador da região. Envolvida na indecisão da escolha, a rapariga casa com o reverendo, mas acaba por ser seduzida pelo seu outro pretendente e troca-o. Esta é uma das grandes virtudes de Gone to Earth. Não é comum num filme de 1950 o adultério ser abordado de forma tão explícita e, ainda por cima, de forma tão amoral. Não há nenhuma condenação explícita pelo acto da rapariga por parte do argumento. A condenação vem da sociedade de uma pequena aldeia regida por severos costumes morais e da própria família do reverendo. O mais interessante é, na minha opinião, a densidade das personagens que tinha sido o ponto débil do filme anterior, A Black Small Room Nenhum dos envolvidos neste triângulo corresponde ao protótipo do bom cidadão, tão típico na maioria dos filmes da época: o proprietário é agressivo e possessivo e não se conforma com a escolha da rapariga; o reverendo parece encarnar todas as virtudes cristãs, mas não deixa de revelar alguma hipocrisia e agressividade quando se sente trocado: a rapariga, personagem central do filme, parece volúvel e caprichosa: o seu maior amor é a sua raposa ao mesmo tempo que oscila entre os seus dois amantes e trocando um pelo outro, para depois voltar ao primeiro. É curioso, a quantidade de filmes de Powell e Pressburger em que as mulheres são a personagem central: Canterbury Tales, I Know Where I Am Going, Black Narcissus e Red Shoes, para além deste. A humanização das personagens por uma percepção da inexistência do maniqueísmo remete-nos para a sua própria ambiguidade, afinal tão comum a todos nós. Esteticamente o filme é belíssimo, com as suas cores vivas e o excepcional trabalho de fotografia de Christopher Challis, num dos seus primeiros trabalhos de uma carreira que se viria a revelar repleta de grandes obras. Foi este ambiente deslumbrante que levou muitos críticos a considerar Gone to Earth como um dos mais belos filmes campestres de todos os tempos. Come-se com os olhos. 
O filme termina de forma circular. As últimas imagens reproduzem, numa fase inicial, as primeiras. O desenlace anunciado que se assemelha ao de Red Shoes, era inevitável, embora não seja feliz. Para a posteridade foi a versão dos cineastas que prevaleceu. Embora não conheça a que foi modificada por ordem de David Selznick acredito, pelo que li, que o original é muito melhor. E é mais um dos grandes filmes dos The Archers. 
* texto de Jorge Saraiva

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segunda-feira, 2 de outubro de 2017

O Seu Pior Inimigo (The Small Black Room) 1949

The Small Black Room (cujo título em português é O Seu Pior Inimigo) é um filme singular na carreira de Michael Powell e Emeric Pressburger. Representa o regresso ao passado, tanto em termos formais como temáticos. Depois da notável trilogia de filmes de alto orçamento (A Matter of Life and Death, Black Narcissus e Red Shoes) de pendor filosófico e coloridos, agora regressamos a um cenário quase espartano, não só pelo preto e branco, mas principalmente pela escassez de meios envolvidos. É isso que torna The Small Black Room num objecto desconcertante, como se os The Archers quisessem mandar ao mundo uma mensagem de que para eles não havia fórmulas de sucesso, nem estavam presos ao ditames comerciais. 
Trata-se de uma adaptação de um livro de Nigel Balchin, romancista e dramaturgo inglês escrito em 1943, numa altura em que o destino da II Guerra Mundial ainda era incerto. Mas, tal como acontecia em Canterbury Tales, a guerra é um pano de fundo presente, embora distante. Não há cenários militares, nem referências explícitas aos alemães. No centro da acção encontra-se um cientista a trabalhar na investigação militar secreta britânica. O filme vai-se repartindo entre a sua actividade científica e a sua vida pessoal e essa articulação parece ser o momento menos conseguido de todo o filme. É a única surpresa negativa: habituados à consistência e ao brilhantismo dos argumentos de Emeric Pressburger, estranhamos esta dicotomia na personagem de Sammy Rice. Enquanto cientista é uma espécie de génio dócil, que aceita de forma pacífica os ditames dos seus directores, enredados em vaidade, mediocridade, intriguismo e burocracia. Em casa é um homem dependente do álcool, sobretudo whisky, que destrata a namorada e que sente complexos de inferioridade por ter um perna artificial que lhe provoca imensas dores. O problema é que a articulação entre as duas facetas da personalidade é, a meu ver, demasiado superficial, ou seja falta-lhe espessura. O que salva o filme são os aspectos puramente formais e algumas cenas antológicas. A fotografia e a direcção de actores são, como de costume, notáveis, assim como todos os restantes aspectos cinematográficos. O desempenho de David Farrar é brilhante. Há quem considere este como o auge da sua carreira de actor e, seguramente não é por sua responsabilidade que a personagem que encarna é mais conseguida. Aliás, a ele se devem os tais dois momentos antológicos do filme e que, só por si, justificam o seu visionamento. O primeiro, quando sozinho em casa, começa a ter alucinações face à privação do álcool e ao que ele julga ser, o abandono da sua namorada, finalmente persuadida a largá-lo por força das suas insistentes e masoquistas sugestões: a segunda, já perto do final, quando o cientista vai despoletar a bomba alemã de uma tecnologia totalmente desconhecida. Os realizadores optaram por planos em cima do rosto do actor, ganhando partido da sua imensa capacidade expressiva. Há aqui muitos aspectos de um thriller hitchcokiano, com a criação de um suspense crescente, quase até ao limite do insuportável. Aliás, aqui não é seguro dizer quem é que influenciou quem, uma vez que se trata de cineastas contemporâneos. 
Serão estes predicados suficientes para fazer de The Small Black Room, um bom filme? Sem dúvida! Mas quando pensamos em títulos anteriores e nalguns posteriores, imediatamente percebemos que este não é um dos seus melhores. 
* texto de Jorge Saraiva

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domingo, 1 de outubro de 2017

Os Sapatos Vermelhos (The Red Shoes) 1948

Sapatos Vermelhos é, provavelmente, o apogeu de toda a criação cinematográfica dos The Archers, com tudo o que de subjectivo implica essa designação. É também a continuação de um conjunto de filmes com um cariz vincadamente filosófico como foram Um Caso de Vida ou de Morte ou Quando os Sinos Dobram.
Quando escrevo sobre este filme, sinto que tenho que fazer uma declaração de interesses. Sapatos Vermelhos é um dos filmes que levaria para uma ilha deserta. E nem sequer é por ser um filme sobre dança de que gosto muito, mas nada entendo. Não é pela genialidade dos diálogos de Emeric Pressburger livremente inspirados no conto homónimo de Hans Christian Andersen. Também não é pela beleza estonteante das cores, desta vez, ao contrário do seu antecessor, apostando nos tons quentes. O uso da cor é de tal forma impressionante que Martin Scorsese considerou este Red Shoes como o mais belo filme a cores da história do cinema, juntamente com o Rio de Jean Renoir e a que eu acrescentaria o Escrito no Vento do Douglas Sirk. Nem é sequer pelo virtuoso trabalho da câmara, dos cenários, da direcção de actores (especialmente sublime nos vintes minutos em que acompanhamos a execução do bailado). O que é verdadeiramente essencial, o eidos que era utilizado pelos filósofos gregos, é que surge aqui em todo o seu esplendor uma questão fundamental: a Arte ou a Vida?. Comparado com alguns dos seus filmes anteriores, a estrutura de Red Shoes é quase linear. Dois jovens desconhecidos, ele músico e maestro, ela bailarina, entram no mesmo dia na companhia de dança mais prestigiada do mundo. Ele, um talento para a composição de partituras, impõe rapidamente a sua capacidade de escrever grandes músicas para a companhia; ela vai subindo a pulso, primeiro rejeitada, depois admitida num papel secundário, até se impor de forma esplendorosa em Sapatos Vermelhos, o bailado que dá nome ao filme. Acima deles está a figura do director da companhia (um desempenho fabuloso de Anton Walbrook) que coloca a questão essencial, um dogma de que não se afasta nem um milímetro: a grandeza dos artistas implica a renúncia. Um pouco como a actividade sacerdotal ou monástica, o artista só se elevará ao domínio do sublime se se afastar de tudo o que não for o seu acto de criação ou de representação. Este abraçar do ideal ascético deve ser compensado pelo puro prazer da entrega sem reservas à Arte, quase numa visão abstracta e incorpórea da criação e fruição do Belo como Platão sistematizou no seu diálogo Banquete. Esta visão é incompatível com o conceito de uma família, ou com o amor. Mas, somos todos humanos, demasiado humanos, nas palavras sábias de Nietzsche. E quando o amor une músico e dançarina, para ela, volta a implacável questão: A Arte ou a Vida? Tinta e cinco anos depois, no último segmento do Zweite Heimat de Edgar Reitz, outro génio da história do cinema (e de que mantenho a esperança de vir a ser apresentado neste blog), voltava ao tema, exactamente com o mesmo nome: A Arte ou a Vida. A resposta em ambos, é totalmente inconclusiva. Como conciliar dois amores literalmente incompatíveis? Como preencher o vazio que a escolha de um deles provoca ao abandonar o outro? O director da companhia põe-lhe a decisão de uma forma brutal: ou vais ser a melhor dançarina que alguma vez pisou os palcos, ou serás uma anónima dona de casa a cuidar dos teus filhos e a cozinhar para o teu marido. E ela não sabe o que escolher. Dilacerada pelo sentido de perda (incapaz de sublimar o amor terreno no amor abstracto da dança e vice-versa), ela só vê no horizonte uma terceira alternativa: radical e definitiva. 
É de filmes como este que se faz a história do cinema. Incompreendido na altura, por não ter um happy end, nem seguir o padrão mainstream dos filmes da época, Red Shoes só teria um novo fôlego muitos anos depois, fruto do empenho de Scorsese na sua restauração e digitalização. Nem sempre a justiça chega, mesmo que seja tarde. Neste caso, chegou. Penhoradamente agradecemos. 
* texto de Jorge Saraiva

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sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Quando os Sinos Dobram (Black Narcissus) 1947

Quando os Sinos Dobram, tradução portuguesa para Black Narcissus, é o filme visualmente mais belo de Michael Powell e de Emeric Pressburger. Para isso contribuiu o facto de ter sido rodado nos Himalaias, num cenário de grande beleza natural, o que exigiu meios técnicos prodigiosos para a época, mas também pela singularidade do palácio que serve de convento para as freiras. Por isso ganhou os prémios de melhor cinematografia (Jack Cardiff) e melhor direcção artística (Alfred Junge).
A utilização da cor, tal como em Um Caso de Vida ou de Morte, é absolutamente deslumbrante, só tendo paralelo no tratamento que lhe deu Douglas Sirk na década seguinte; o enquadramento dos objectos e de alguns planos, a sua riqueza pictórica, remetem-nos muitas vezes para aquilo que vimos em Parajdanov e Tarkovski, mas eles só surgiriam vários anos depois. Logo por aqui percebemos o carácter pioneiro de Black Narcissus. Mas por mais excepcionais que sejam os elementos formais, não são estes que mais me impressionaram. O filme relata a odisseia de cinco freiras que são destacadas para um palácio adaptado a convento, numa remota região dos Himalaias, de clima agreste e gente pobre, mas afável. Pertencem a uma ordem religiosa trabalhadora e não meditativa, o que implica relações estreitas com a comunidade, para quem se propõem trabalhar nas áreas da educação e da saúde. O que é absolutamente espantoso é que, embora envolvido num ambiente religioso, é um filme sobre a dessacralização a vida das próprias pessoas que nela participam, em particular das freiras. Black Narcissus exala sensualidade por todos os poros. Martin Scorsese chegou a referir-se a este filme como um dos primeiros grandes filmes eróticos da história do cinema e o próprio Michael Powell a ele se referiu como a mais erótica obra que realizou. Este é o principal paradoxo de Black Narcissus; o profano a irromper no plano do sagrado, como uma inversão de uma hierofania. A assumpção do corpo em detrimento da espiritualidade, dos sentidos sobre a racionalidade da fé e da devoção. Perdoem-me a deriva filosófica, mas Nietzsche teria gostado deste filme. É a recusa total do ideal ascético, que serviu de base à moral cristã e que o genial filósofo alemão tão bem soube denunciar. É a irmã mais velha, a jardineira que decide plantar flores em vez de vegetais e que afirma que desde que chegou a este lugar se tem recordado de muitas coisas que julgava estarem sepultadas. Face à beleza agreste do lugar que interfere e modifica a própria forma de estar das freiras, só se pode viver ou como um santo ou de forma puramente hedonista. Nenhum meio termo é possível. Quando tudo começa a soçobrar, quando se completa a dessacralização das personagens e a desocultação da essência de cada personalidade, impera a paixão recalcada, a inveja, o despeito e o ciúme. No mundo físico terreno, ninguém está imune à tentação, ninguém pode ostentar uma superioridade moral como anuncia a fé cristã. Todos somos essencialmente terrenos e mundanos, no sentido de que fazemos parte deste mundo. O filme já o anuncia desde o início: A Madre Superiora, mulher jovem e bonita, é constantemente assaltada pelas recordações da sua Irlanda e do seu amor que nunca se concretizou. Ela sublima as memórias, mas elas regressam de forma poderosa. Dir-se-á que perante a magnificência da paisagem, cada uma delas se sente confrontada com a sua verdadeira integridade e com a sua própria história pessoal. Afinal o que leva as freiras a optarem por esta forma de vida: uma vocação transcendental, ou um refúgio pela decepção que o rumo das suas vidas tomou?
O final repleto de sensualidade mesmo na tragédia, caminha para um apocalipse tão anunciado, quanto inconclusivo. Não se pode parar o vento, nem remover as montanhas, ou obscurecer a luxúria das flores. À Madre Superiora resta partir antes que se volte a apaixonar e acabe por renegar os seus próprios votos. Guarda o essencial, ou o que julga ser: a sua vocação. Mas ela já não será a mesma. Nunca deixará de pensar no amor antigo que um dia perdeu, nem num mais recente que não chegou a encontrar. E neste simbolismo do desmontar de feira, alguns viram a despedida da Grã- Bretanha da mais importante jóia do seu império: a Índia. 
Por fora e por dentro, Black Narcissus é um filme belíssimo. Também pelo que mostra e pelo que sugere. E ainda pelo que nos faz pensar e sentir. O cinema não produziu muitas obras assim. Por isso, perdê-lo é um sacrilégio. 
* texto de Jorge Saraiva

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quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Um Caso de Vida ou de Morte (A Matter of Life and Death) 1946

Todos os filmes Michael Powell e Emeric Pressburger são especiais. No entanto, Um Caso de Vida ou de Morte (A Matter of Life and Death) ocupa um lugar muito particular no universo cinematográfico da dupla. As razões prendem-se com o cariz insólito do tema, mas também com o facto de ser o filme mais consensualmente amado pela crítica. 
 Um Caso de Vida ou de Morte é um filme absolutamente insólito, uma espécie de conto de fadas para adultos. Tudo começa quando o avião de Peter David Carter (Larry Niven) é derrubado, já na fase final da Segunda Guerra Mundial. Aquelas que supostamente serão as suas derradeiras palavras são para uma americana desconhecida, June (Kim Hunter), uma operadora de rádio. Estranhamente, o aviador não morre e enquanto é aguardado no lugar onde vivem os mortos, acorda na Terra, embora não saiba verdadeiramente que está vivo. O filme apresenta-nos um conjunto de peculiaridades absolutamente surpreendentes. A primeira, é que o mundo dos mortos, possivelmente o Céu, é sempre a preto e branco, enquanto a cor só existe na vida terrestre. A segunda mostra-nos que o mundo dos mortos é um mundo de justiça e equidade, como se de uma racionalização absoluta se tratasse, mas o mundo da Terra é o do amor e da imperfeição dos sentimentos. A terceira consiste no facto da relação entre os dois mundos se fazer nos dois sentidos: os serviços centrais e (quase) sempre perfeitos da morte, enviam um emissário que faz parar o tempo para resgatar a vida de Carter (absolutamente fantástica a cena do jogo de ténis de mesa suspenso com a bola no ar); na fase final, é o próprio Carter que se vai defender ao outro mundo levando a sua amada June e o seu médico. Parece óbvia a relação com a Alegoria da Caverna, o célebre texto de Platão. No entanto se o cenário tem algumas semelhanças, as diferenças são óbvias. Platão desvalorizava o mundo sensível, considerando-o ilusório e aparente e toda a nossa vida aqui deve ser um esforço para ascender ao mundo da verdade e da permanência, Mais vale ser escravo no mundo da luz, do que rei no mundo da sombra. Mas no filme de Powell e de Pressburger, não existe essa visão maniqueísta tão típica do pensamento do filósofo grego. Aqui parece quase prevalecer uma visão ateísta ou, pelo menos, agnóstica sobre as vantagens do Céu. Por muito justo e tranquilo que seja o outro mundo, este é sempre preferível. É neste que pulsa a vida, a imperfeição e o amor. E se se enganaram (uma vez sem exemplo) ao deixarem viver quem deveria ter morrido, será profundamente injusto reclamarem do seu erro. Sobretudo quando está em causa o amor que existe entre Peter e June. É do lado de cá que está a felicidade, onde residem os afectos e a vida. Do lado de lá está a perfeição gelada. Por isso, quando o amor vence a razão e se estabelece uma nova data para a morte de Peter, alguém diz que é demasiado generosa. Todos temos que morrer um dia, mas quantos mais anos pudermos adiar a data da nossa morte, tanto melhor. Voltando a Platão: no diálogo Fédon, Sócrates aparece extremamente feliz no dia da sua morte, porque se vai libertar do seu corpo e irá para um mundo (o Hades) que ele acha que é muito melhor. Em Um Caso de Vida ou de Morte, Peter e June ficam extasiados porque depois de terem subido as escadarias do Céu, podem voltar à Terra para poderem viver o seu amor. 
 Na sua aparente ligeireza e bom humor, Um Caso de Vida ou de Morte é um filme profundamente filosófico. Mais do que uma reflexão sobre o significado da vida, há um apelo para que ela seja vivida o melhor possível e durante tanto tempo quanto pudermos. Por isso transcende tempos, lugares e vontades, para se tornar numa obra absolutamente essencial.
* Texto de Jorge Saraiva.

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terça-feira, 26 de setembro de 2017

Sei Para Onde Vou ('I Know Where I'm Going!') 1945

Realizado no mesmo ano em que a 2ª Guerra Mundial terminou, Sei Para Onde Vou (I Know Where I`m Going) é um filme que descola totalmente desse tema, que tinha marcado grande parte da produção anterior de Powell e Pressburger. É também o primeiro filme que é centrado numa personagem feminina (Joan Webster, representado pela actriz Wendy Hiller). 
Sei Para Onde Vou poderá, grosso modo, enquadrar-se no que habitualmente se chama uma comédia romântica, o género mais popular da época. Mas uma comédia romântica inglesa e ainda por cima feita por Michael Powell e Emeric Pressburger não pode ser um filme qualquer. Vamos seguindo as vicissitudes de Joan Webster de quem percebemos de imediato, através de um rápido, mas bem humorado flashback sobre a sua infância, de se tratar de uma pessoa determinada e ambiciosa. Os argumentos de Pressburger nunca foram particularmente maniqueístas e, neste filme, começamos de imediato a sentir alguma aversão pela personagem principal devido à sua arrogância. Esta atinge o seu apogeu, quando retida contra sua vontade, sem poder fazer a parte final da viagem para a ilha de Kiloran onde se encontra o seu futuro e rico marido, consegue convencer um jovem e inexperiente pescador a fazer a viagem, ainda que em condições climatéricas extremamente adversas. Por isso, esta comédia romântica não é tão inocente como parece. A mulher fria, calculista e ambiciosa, disposta a espezinhar tudo e todos os que não satisfaçam os seus caprichos, remete-nos para uma dimensão social e moral, que viria, alguns anos mais tarde, a ser popularizado pelos filmes de Douglas Sirk. O dinheiro não é tudo na vida, diz a namorada do jovem barqueiro que aliciado pela miragem do dinheiro, aceita ousar a travessia, desafiando os conselhos dos mais velhos. No regresso às Hébridas, onde já tinha sido feito o seminal The Edge of the World, Powell, desta vez com Pressburger, faz uma filme sobre a dignidade humana. «As pessoas daqui não são pobres. Têm é pouco dinheiro», diz Torquil MacNeil (Roger Livesey). Sei Para Onde Vou vive desta contradição: entre aquela que submete tudo às suas disposições pessoais (incluindo a vida dos outros), pela fama e pela fortuna e os pobres que vivem em condições agrestes, mas que conhecem o valor do afecto e da entreajuda. Nesse sentido, talvez este seja o mais político de todos os filmes de Powell e Pressburger. Mas é-o de forma simultaneamente subtil e profunda: são duas visões do mundo que se chocam e que não podem coabitar. A utilização do gaélico como língua falada e a maravilhosa festa dos 60 anos de um casamento, são pormenores reveladores do cuidado colocado na elaboração do filme. O recurso às lendas seculares articula-se muito bem com todo o enredo do filme e serve para redimir a personagem feminina, respondendo ao apelo do amor recém-descoberto em vez do casamento por conveniência. Por isso a ironia do próprio título do filme: ela afinal não sabe para onde vai. Esteticamente é um filme muito bonito jogando de forma superlativa com as condições climatéricas. O nevoeiro desemboca numa tremenda tempestade e a forma arrojada e tensa como é filmada a frustrada travessia de barco é absolutamente notável. O filme recebeu muitos elogios, quer na altura, quer posteriormente. 
O escritor Raymond Chandler terá sintetizado de forma feliz quando afirmou que nunca tinha visto um filme onde sentisse tanto a chuva e o vento. Martin Scorsese afirmou que achava que já não encontraria mais nenhuma obra prima até ter visto esta. A cinemateca portuguesa definiu-o como um dos mais belos filmes da história do cinema. E não sou eu que vou dizer o contrário... 
* texto de Jorge Saraiva

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segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Três Modernos Peregrinos (A Canterbury Tale) 1944

"Canterbury Tales tem a guerra como pano de fundo. Mas não é um filme de guerra. Há soldados britânicos em manobras militares, há crianças que brincam às guerras, há um sargento americano em solo britânico, há uma mulher que supostamente perdeu o namorado quando o seu avião foi abatido, há os destroços dos bombardeamentos da cidade de Canterbury. Mas não é um filme de guerra.
Se há uma obra enigmática na carreira de Powell e de Pressburger, é esta. Não porque seja particularmente hermético, mas porque não surge claramente com um tema definido. Temos três jovens (dois soldados e uma rapariga), mas não há nenhuma história de amor ou de ciúmes: temos um magistrado da pequena vila de Chillingbourne (que de facto não existe) que se torna na figura central do argumento, mas, apesar de ser muito elogiado pelos seus concidadãos, não é um filme político; temos um caso quase policial de alguém que deita cola na cabeça das raparigas, mas rapidamente se percebe quem é o responsável e o filme não chega a ser um thriller e, muito menos, um noir. Por isso se percebe que Canterbury Tales, apesar de ter feito uma boa carreira na Grã-Bretanha, esteve longe de alcançar o sucesso de outros filmes seus, quer anteriores, quer posteriores. Para o lançamento nos EUA, o filme teve que ser encurtado e remontado de forma a tornar-se mais acessível ao gosto comum do espectador americano. As quatro personagens principais parecem inteiramente perdidos no seu passado. A rapariga que regressa para trabalhar a uma zona onde foi feliz, mas, sobretudo, para se recordar do seu noivo entretanto morto em combate; o sargento inglês a pensar na sua memória enquanto organista e o seu desejo de tocar numa catedral, o que nunca tinha conseguido, limitando-se desconsoladamente a tocar em cinemas; o sargento americano, especialista em madeiras (ou não fosse ele do Oregon) que desespera em as cartas da sua namorada que deixou a um oceano e um continente de distância; e há, finalmente, o magistrado cuja memória o remete para a antiga estrada de Canterbury percorrida pelos peregrinos e que parece ter caído no esquecimento. Esta memória filogenética é o objectivo da vida do magistrado (mais uma vez um desempenho sublime de Eric Portman), onde se misturam fé e nostalgia, poesia e metafísica, silêncio e natureza e a vontade de viver no campo, mais próximo do canto dos pássaros e do desabrochar das flores, por oposição à vida anódina das grandes cidades. Esta vontade contagia os jovens e ameniza a hostilidade que à partida sentiam contra ele. Por isso, talvez o segredo mais íntimo do filme, resida na sua espiritualidade, não tanto no sentido religioso da palavra, mas de forma mais profunda, como se se tratasse do reencontro de cada um consigo próprio e com o sentido da vida. 
O final acaba por nos remeter para um inesperado júbilo, num filme que nunca sendo sombrio, não prevê que tudo se possa concluir de forma feliz. Mas não há aqui nenhum desajustamento. No fim resta sempre a esperança. Numa cidade devastada pelas bombas, numa guerra mortífera como nenhuma outra que a humanidade tenha conhecido, a esperança em dias melhores é aquilo que nos pode salvar da insanidade. A cena final, na mais simbólica catedral britânica, com os soldados a cantar e o jovem organista a acompanhá-los (concretizando finalmente o seu sonho) é a corporização dessa mesma esperança, É também uma cena empolgante, suficientemente bela para figura na antologia dos melhores finais da história do cinema. 
 Se estão a pensar que Canterbury Tales é uma obra prima, não se enganaram. É mesmo uma obra prima."
Texto de Jorge Saraiva.

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sexta-feira, 22 de setembro de 2017

A Vida do Coronel Blimp (The Life and Death of Colonel Blimp) 1943

A Vida do Coronel Blimp (The Life and Death of Colonel Blimp) marca o início da época de ouro de colaboração entre a dupla Michael Powell e Emeric Pressburger a partir da produtora The Archers criada e controlada por ambos. Neste período que se estende até 1951 seriam produzidos os filmes mais conhecidos da dupla e que hoje se constituem como referências incontornáveis quer do cinema britânico, quer da própria história do cinema mundial.
A Vida do Coronel Blimp é mais um filme de guerra, ou melhor, um filme de guerras. Mas, ao contrário de alguns dos seus antecessores, não é nenhuma encomenda do Ministério de Informação Britânico. O efeito foi exactamente o oposto. O retrato do general Candy não foi particularmente bem acolhido pelas forças armadas britânicas, que viram nele uma espécie de herói bonacheirão, relativamente estouvado e que não corresponde exactamente às virtudes marciais convencionais. Mais controversa ainda foi a forma como é descrita a amizade entre o general Candy e o coronel alemão Theo Kretschmar-Schuldorff, uma relação que ultrapassa fronteiras e até amores pela mesma mulher. Apesar do coronel ter afirmado «que o nazismo é a invenção mais diabólica que o cérebro humano produziu» esta relação de amizade foi vista de forma suspeita. O coronel que se bate em duelo com o general em Berlim em 1902, ambos ainda jovens, por um motivo aparentemente fútil, e que é prisioneiro de guerra britânico durante a primeira guerra mundial, acaba por fugir de Hitler e do nazismo e pedir refúgio em Inglaterra. Talvez este seja o calcanhar de Aquiles do filme: quando Theo é libertado das prisões inglesas e ouve promessas de paz, cooperação e de amizade entre os dois povos, volta ao seu país a remoer num discurso de renascimento alemão e desforra das humilhações sofridas. Regressa menos de 20 anos depois desiludido com o rumo que Hitler deu à Alemanha. Nunca se percebem inteiramente os motivos da transformação das suas ideias. Como já tinha sucedido nos seus anteriores filmes, a guerra propriamente dita é um presente ausente. É um pano de fundo constante, mas onde não se filma qualquer acção militar. Em contrapartida, há uma notável discussão que opõe Candy a Theo sobre os métodos a utilizar na guerra: Candy defende uma concepção ética da guerra, sem tortura aos prisioneiros, sem bombardeamentos de cidades nem danos sobre civis; Theo, pelo contrário, considera que a segunda guerra não pode ser comparada à primeira e que o nazismo só pode ser eficazmente combatido com as mesmas armas e sem quaisquer tipos de contemplações. A discussão ainda hoje mantém plena actualidade. O bombardeamento de muitas cidades alemãs, algumas delas de forma absolutamente inútil e por pura vingança, revela qual a teoria que se impôs nos anos finais da guerra. 
Do ponto de vista formal, o filme é primoroso. A utilização da cor, que tinha sido iniciada com o Ladrão de Bagdad, aperfeiçoa-se, tornando-se uma das imagens de marca das suas obras subsequentes. O argumento, não sendo dos mais brilhantes, é, ainda assim, excelente, com um início de desconcertante sarcasmo («foi combinado que a guerra só começava à meia noite» afirma Candy em desespero), para depois funcionar em flashback, só retomando o início na parte final do filme. O trabalho de direcção de actores é excelente, com a particularidade das três principais personagens femininas serem todas representadas pela mesma actriz (Deborah Kerr) o que faz todo o sentido, face ao próprio desenvolvimento do argumento.
 Apesar das reservas com que foi acolhido, A Vida do Coronel Blimp foi um sucesso de bilheteira na Grã-Bretanha, em 1943. Nos EUA só foi estreado dois anos depois, devido a pressões do próprio governo britânico. Hoje há uma visão mais consensual sobre o filme: apesar de não ser dos meus favoritos da dupla, normalmente é presença regular na lista dos cem melhores filmes de todos os tempos. Isto naquele que Powell considerava como o mais inglês dos seus filmes, apesar do argumentista ser húngaro, o director de fotografia, francês, o compositor, judeu alemão e o responsável pelo guarda roupa, checo... 
* texto de Jorge Saraiva

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quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Falta um dos Nossos Aviões (One of Our Aircraft Is Missing) 1942

One of Our Aircraft Is Missing é a quarta colaboração entre Michael Powell e Emeric Pressburger, a primeira para a nova produtora Archers, onde a dupla poderia ter um maior controlo criativo sobre a sua própria obra. 
O filme é visto como uma arma de propaganda feita para elevar a moral das tropas britânicas envolvidas na Segunda Guerra Mundial e, simultaneamente, um apelo à população para que se mantivesse unida em torno do objectivo de derrotar a Alemanha nazi. Apesar da ligação estreita ao próprio Ministério da Informação, de forma alguma One of Our Aircraft Is Missing pode ser menorizado. Muitos cineastas dos dois lados do Atlântico, envolveram-se directamente na propaganda de guerra, alguns até muito mais reputados do que Powell e Pressburger, como foi o caso de Frank Capra. Sendo um filme de guerra, não é um filme de guerra qualquer. É, provavelmente, o melhor filme da dupla, até à altura e uma obra prima do género. Curiosamente quase não tem tiros nem mortes, excepto nas partes inicial e final. Isto significa que a aposta é nos aspectos usualmente menos relevados da guerra, a tensão psicológica, o medo e a resistência civil à ocupação. O argumento inverte a situação do filme anterior, 49th Paralell. Aqui não são soldados alemães que ficam retidos em território inimigo, sem grandes hipóteses de escaparem. Num raid aéreo sobre a Alemanha, um dos aviões britânicos é atingido e acaba por se despenhar na Holanda, então ocupada pelos nazis. Os seis tripulantes ejectam-se em pára-quedas e procuram sobreviver em território hostil. Embora o filme seja centrado nas estratégias dos seis militares britânicos, os verdadeiros protagonistas do filme, são os anónimos cidadãos holandeses que conscientemente arriscam a vida para os enviar de volta para o seu país. Salvar os militares é uma forma de resistir ao inimigo invasor, embora saibam que, caso sejam denunciados, serão mortos por traição. Aliás o filme é dedicado a estes anónimos cidadãos holandeses que perderam a vida para que o seu regresso fosse possível. Vista nesta perspectiva, todos os tiroteios, ou espectaculares cenas de guerra são absolutamente supérfluos. Sabemos que as coisas não se passaram realmente assim. Em todos os lugares houve sempre gente a colaborar com o inimigo, alguns por convicção ideológica, a maioria por pura conveniência. Mas, e nisso é que sente mais o carácter propagandístico do filme, aqui parece haver um sentido de unidade entre todos os holandeses. De resto, One of Our Aircraft Is Missing, é um monumento à sobriedade. Não há histórias de amor cruzadas, nem paixões mais ou menos platónicas entre ingleses e holandeses. Ao contrário de muito filmes dessa e de todas as épocas, não há nenhuma espécie de inglês universal que todos falam, sejam eles índios, russos ou chineses. Os holandeses falam holandês, excepto aqueles que dominam a língua inglesa e o mesmo se passa com os alemães. 
Apesar da sobriedade, algumas das cenas, designadamente as finais, são filmadas de forma virtuosa e dispondo de todos os recursos tecnológicos da época (com alguns adiamentos no produto final, para nele serem incorporadas as mais recentes inovações da tecnologia militar) o que valeu nomeação do filme para os Óscares da melhor fotografia e dos melhores efeitos especiais, assim como do melhor argumento, embora não tivesse ganho nenhum. O filme não tem nenhuma banda sonora, uma vez que os realizadores consideraram que a mesma contribuiria para desviar a atenção dos seus aspectos centrais. E, verdadeiramente, não precisa. 
* Texto de Jorge Saraiva

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quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Os Invasores (49th Parallel) 1941

Os Invasores é a primeira incursão de Michael Powell e Emeric Pressburger na segunda guerra mundial que então devastava o mundo. Tal como o posterior One of Our Aircraft Is Missing (1942), enquadra-se no esforço de propaganda do governo inglês no combate ao nazismo, e por isso, se pode, com propriedade, referir que são encomendas oficiais. Como sucede nos primeiros filmes do duo, Powell é o realizador e Pressburger o argumentista.
"Os Invasores" tinha um objectivo político claro: pressionar a opinião pública dos EUA e do seu governo a abandonarem a política de neutralidade então vigente, aliando-se aos britânicos. Daí o título de 49th Parallel (nos EUA recebeu o nome de The Invaders) que marca a fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá. O argumento é bastante sofisticado para um filme de guerra. Após uma batalha entre um submarino alemão e aviões de guerra aliados, um grupo de soldados alemães que tinha sido destinado a uma missão, fica isolado em território inimigo e sem possibilidades de retorno ao submarino que havia sido destruído. O filme torna-se quase uma espécie de road movie invulgar, uma vez que os soldados alemães têm como objectivo atravessar de forma incógnita todo o Canadá para chegarem a Vancouver onde poderão embarcar rumo ao Japão com informações preciosas sobre segredos militares do Canadá. Curiosamente, acabam por ser os alemães os principais protagonistas do filme, em particular, o tenente Ernst Hirth (representado pelo actor Eric Portman). As contradições entre o grupo de soldados alemães são evidentes: alguns são militares como outros quaisquer, fazendo uma guerra porque para ela são enviados contra a sua própria vontade e sem se sentirem parte de qualquer espírito salvador do mundo a partir do conceito de supremacia racial ariana; o tenente Hirth, pelo contrário, representa o ideal nazi com todo o arsenal ideológico que lhe é característico. Esta distinção subtil que se corporiza na execução do soldado alemão que é mais vulnerável à complacência com o «inimigo», é, na minha opinião, o aspecto mais relevante de todo o filme. O nazismo não representa a totalidade de um povo, mas sim apenas um grupo ideologicamente mais radicalizado e fanático que veicula uma mensagem de ódio e de destruição. Esta diferença é muito eficaz do ponto de vista propagandístico (sobretudo se se tiver em conta os objectivos acima referidos) em particular quando comparada com muitos filmes sobre esta guerra em que os alemães são apresentados sempre como desprovidos de sentimentos e cegos seguidores dos seus dirigentes. As cenas de guerra, propriamente ditas, são escassas e confinam-se aos momentos iniciais do filme. Todo o resto é a fuga e a perseguição que vai fazendo cair, um a um, os soldados alemães, à medida que estes procuram desesperadamente caminhar para Oeste. Algumas cenas como a da festa do dia nacional dos índios são verdadeiramente antológicas e o final, a um tempo irónico e justiceiro, revela a extraordinária capacidade de Pressburger na escrita de argumentos. 
Os Invasores deve ser visto como uma primeira parte de um díptico que tem em One of Our Aircraft Is Missing, a segunda. É um filme que retrata a guerra nas suas vertentes mais políticas e humanas em detrimento dos aspectos militares. Nessa medida, os dois filmes fazem parte daquele acervo de obras do género que são imprescindíveis. 
* Texto de Jorge Saraiva

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terça-feira, 19 de setembro de 2017

O Ladrão de Bagdad (The Thief of Bagdad) 1940

"No conjunto de filmes iniciais de Michael Powell. o Ladrão de Bagdad ocupa um lugar singular. Não é um filme de guerra, é uma co-realização com o alemão Ludwig Berger e o americano Tim Whelan, curiosamente dois cineastas com um largo currículo no cinema mudo. Por outro lado, é um filme colorido, o que não é muito comum nessa época. 
Aliás a cor desempenha um papel fundamental nesta «fantasia arábica» como é designado no genérico inicial. Viviam-se os primórdios do cinema a cores e imperava algum experimentalismo cromático que umas vezes resultava e noutras não. Felizmente, o Ladrão de Bagdad é muito bem sucedido. Todo o filme é, do ponto de vista formal, muito conseguido e artística e tecnicamente muito arrojado e inovador, ganhando Óscares nas chamadas categorias técnicas como os efeitos visuais a direcção artística e a cinematografia, para além de ser o primeiro filme a utilizar a o bluescreening. Havia uma versão de 1924 da qual esta supostamente um remake, mas parece que as diferenças entre ambas são substanciais, embora eu não tivesse visto o original. Embora não seja extraído das Mil e Uma Noites, o Ladrão de Bagdad inspira-se no mágico maravilhoso que nos foi deixado por essa obra literária. Por esses motivos e pela simplicidade do argumento, pelos efeitos visuais muito avançados para a época e pelo tom encantatório que é tão típico da cultura árabe, é um filme que abrange uma segmento etário muito amplo, designadamente, crianças e adolescentes, sem, no entanto, desagradar aos adultos Poder-se-á dizer de uma forma um pouco simplista, que o Ladrão de Bagdad tem inegáveis pontos de contacto com o Feiticeiro de Oz de Victor Flemming, datado do ano anterior, sobretudo porque vive no mesmo imaginário de um mundo fantasioso e alternativo onde as leis da física e da biologia não são as mesmas que conhecemos neste nosso mundo. São os encantamentos e feitiços que transformam homens em cães e cegam outros, que encantam princesas, tapetes voadores, génios da lâmpada que concedem desejos, sultões, dançarinas de véu e cavalos alados, mas que permitem uma redenção final voltando tudo à primeira forma, onde os maus são castigados e os bons recompensados. Este traço profundamente maniqueísta, típico das histórias infantis, encontrou na cultura árabe (mais uma vez as Mil e Uma Noites) o seu expoente máximo. Curiosamente, apesar de do filme ter sido rodado na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos por vários realizadores diferentes. o filme não se ressente particularmente desse facto, apesar das cenas filmadas em território americano terem sido sujeitos a códigos de vestuário femininos mais restritivos. Conrad Veidt, o popular actor alemão que vinha do cinema mudo, está, mais uma vez, magnífico no papel do usurpador do trono. A revelação é o jovem actor indiano Sabu Dastagir que posteriormente teria uma carreira bem sucedida em Hollywood, tendo também participado em Black Narcissus igualmente de Michael Powell e de Emeric Pressburger. 
Não é uma obra totalmente assinado por Michael Powell. Foge bastante ao universo habitual dos seus filmes, embora a forma multifacetada como filma, inviabiliza que se possa falar, num estilo Powell e Pressburger. Mas é um filme delicioso e refrescante. Provavelmente como hoje já não se fazem."
 * Texto de Jorge Saraiva

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segunda-feira, 18 de setembro de 2017

O Espião Negro (The Spy in Black) 1939

The Spy in Back é um filme histórico pelo facto de ser a primeira colaboração entre Michael Powell e Emeric Pressburger, através do conhecimento mútuo que lhes foi proporcionado pelo produtor Alexander Korda. Nesta altura, Powell que já tinha obtido algum reconhecimento por The Edge of the World é o realizador, enquanto Pressburger é o responsável pelo argumento. 
The Spy in Black inaugura os filmes cuja temática é a guerra a que voltariam sucessivamente nos anos seguintes. Desta vez é a primeira guerra, já que o ano da acção se passa em 1917. Trata-se de um filme de espionagem, um thriller complexo, onde a partir do argumento, se desenvolve um jogo de aparências, ao mesmo tempo que se enfatiza a utilização dos submarinos como instrumentos de guerra. Essas aparências resultam, em grande parte, das falsas identidades que as diversas personagens assumem, quer aparecendo disfarçadas, quer fazendo-se passar por outras pessoas. Mais do que um filme de guerra puro e duro (aliás a acção militar naval acontece apenas no final do filme), The Spy in Black transporta-nos, através de um argumento engenhoso para uma constante busca da identificação real das personagens, provocando sucessivas reviravoltas, um pouco ao estilo que Hitchcock tão bem popularizaria. Mais interessante ainda, é que a personagem principal é representada pelo excelente Conrad Veidt, um dos mais populares actores do cinema mudo alemão (e também do início do sonoro), mas que, pelo facto de a sua mulher ser judia, acabou por se exilar em Inglaterra e, posteriormente, nos Estados Unidos. Um dos aspectos mais peculiares é que não vai haver aqui a carga maniqueísta dos filmes posteriores, normalmente relacionados com a segunda guerra mundial. Neste conflito há claramente uma disputa ideológica, entre o nazismo e o fascismo e o anti-nazismo e anti-fascismo. Na primeira guerra o conflito é sobretudo de interesses económicos e territoriais sem a carga ideológica que o conflito posterior apresentou. Ora, Powell e Pressburger reflectem essa situação de forma admirável. Não se trata de um filme amoral ou neutro, mas o inimigo nunca é tratado da mesma forma que em filmes posteriores como The Invaders ou One Aircraft Is Missing. Embora sejam ludibriados no final e em grande parte de forma fortuita, com um final irónico onde os alemães se atacam a si próprios, estes nunca chegam a ser considerados como verdadeiros malfeitores. Lutam pelos interesses do seu país da mesma forma que os ingleses defendem o campo oposto. Aliás, não é por acaso, que as estratégias utilizadas por alemães e ingleses são muito semelhantes e normalmente implicam o uso de espiões. Retirar a carga política ao filme é, na minha opinião, o maior mérito do filme. De resto, estão aqui presentes todos os méritos dos filmes de Powell e Pressburger: um grande cuidado com todo o enquadramento histórico, uma realização virtuosa, mas sóbria, um excelente trabalho de direcção de actores e um especial cuidado com a própria credibilidade da acção. Tal como em filmes posteriores, os alemães falam alemão entre si e só mudam para inglês, quando precisam de comunicar com britânicos. 
As reacções a Spy in the Black foram, na generalidade, muito favoráveis, logo na altura em que o filme começou a correr nas salas. Quase 80 anos depois, ainda se vê com muito agrado. Não é, na minha opinião, uma obra prima absoluta, ao nível do que fizeram noutros filmes. Mas essa constatação, mais do que desvalorizar o filme, apenas reforça a qualidade imensa do conjunto da sua obra. 
* Texto de Jorge Saraiva

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domingo, 17 de setembro de 2017

The Edge of the World (The Edge of the World) 1937

Embora já fizesse filmes desde 1928, sobretudo curtas metragens (algumas das quais perdidas), The Edge of the World é considerado como o primeiro filme de Michael Powell. Pelo menos, é o primeiro em que ele pode assumir totalmente a sua direcção partir de um argumento próprio.
The Edge of the World bastaria para que Michael Powell pudesse ser recordado como um realizador importante. Felizmente, quer a solo, quer na posterior companhia de Emeric Pressburger, o cineasta deixou-nos suficientes motivos para tornar a sua imortalidade cinéfila num facto incontestável. Trata-se da passagem a tela de forma ficcionada de um dos acontecimentos mais dramaticamente relevantes na Grã-Bretanha na década de 30: a evacuação voluntária da ilha de Hirta situada no arquipélago de St. Kilda nas Novas Hébridas exteriores. Numa viagem de iate, três passageiros chegam à ilha que encontram desabitada, embora se notem ainda os sinais de recente povoamento. Curiosamente é o próprio Michael Powell, então com 32 anos que capitaneia o navio. Mas o filme é um flashback sobre o que se passou meia dúzia de anos antes. Embora baseado numa situação real, o filme ficciona o êxodo, através de uma história de amor entre dois jovens contra a vontade do pai dela. O que é absolutamente fascinante em The Edge of the World é a forma como Powell olha para aquele microcosmos, constituído por algumas dezenas de pessoas, numa vida agreste e dura, marcada por rituais perigosos, mas também por um elevado sentido comunitário. Há uma repartição da pobreza que se transforma num quase comunismo primitivo: o gado que se guarda junto, a pesca colectiva, as decisões tomadas em conjunto, por uma pequena comunidade que, de tão isolada e restrita, não chega a ter nenhum órgão de poder. Pelo tom desolado, por uma paisagem agreste (aqui com as escarpas altíssimas constantemente filmadas, como que a revelar que esta não é uma terra para pessoas) o filme tem alguns pontos de contacto com o célebre Stromboli de Roberto Rossellini. Mas o tom de inevitável decadência, de uma vida que gradualmente se vai tornando impossível, com a escassez da pesca e as colheitas cada vez mais fracas, fez-me lembrar a obra prima de Michelangelo Frammantino, Il Dono. O mesmo olhar antropológico sobre um mundo que se desfaz, mais lento no italiano, quase numa antevisão, mais acelerado no inglês, como uma inevitabilidade imediata. Neste confronto entre os novos que querem partir e os velhos que querem ficar e balizado pelo olhar mudo de uma velha paralítica, a câmara move-se com um virtuosismo surpreendente, aquele que só a sobriedade pode conferir. O olhar dela quando pressente a morte do neto é quase arrepiante. Mas não há lugar para comoções assolapadas. O êxodo é encarado com uma serenidade impressionante, com uma resignação digna. A inexorabilidade do destino dita a sua lei. A ilha, habitada desde tempos imemoriais, onde em raros dias de limpidez, se consegue vislumbrar a costa escocesa a sul (o que é presságio de desgraça) ficará entregue às aves. 
A corda que se parte e conduz à morte do mais renitente dos habitantes da ilha num antecipado e almejado suicídio, é a metáfora de um mundo a ruir. E, tal como em A Terra Treme de Visconti, nunca são necessárias muitas palavras para descrever a vida dos pobres. Está tudo nos olhares, está tudo nas imagens. 
* Texto de Jorge Saraiva
 Legendas em inglês

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sábado, 16 de setembro de 2017

Powell & Pressburger: A Retrospectiva

"O My Two Thousand Movies apresenta a todos os seus seguidores uma retrospectiva dos filmes de Michael Powell em nome individual e em parceria com Emeric Pressburger, uma das duplas de realizadores mais brilhante da história do cinema, conhecida pelo nome de The Archers. O ciclo englobará as suas obras mais significativas, designadamente as que foram realizadas entre o final da década de 30 e o início da década de 50.

 Se há uma palavra que penso que pode exprimir o cinema de Powell e Pressburger, ela é, intransigência. A dupla nunca se mostrou muito disponível para fazer qualquer tipo de cedência aos ditames do mercado. Nos EUA, grande parte da produção da altura, tal como hoje, estava calibrada pelo sucesso comercial. ao que contrário do que acontecia na Europa. E se é certo que a Grã-Bretanha não faz parte dos EUA, grande parte da sua produção cinematográfica sempre foi feita a pensar no mercado americano.

Powell e Pressburger impuseram as suas próprias regras. Fundaram a produtora The Archers para manterem sempre o controlo criativo da sua obra. E conseguiram-no. Na generalidade, os seus filmes demonstram um extraordinário cuidado em todos os planos. Tematicamente os seus filmes são muito variados. Há uma preocupação deliberada em escolher as obras literárias das quais Emeric Pressburger foi capaz de fazer excelentes argumentos, normalmente fluidos, consistentes e extremamente inteligentes. Os seus filmes escapam às visões maniqueístas e revelam a complexidade das personagens. Durante o período da II Guerra Mundial incidiram sobre o conflito, mas quase sempre de forma singular: nunca houve particular interesse em filmar as cenas de acção militar, mas sim os envolvimentos psicológicos e sociais dela derivadas. Aos The Archers interessam as pessoas nas suas complexidades, nas suas indecisões e nos seus contextos. Por outro lado, sobretudo a partir do final da II Guerra Mundial, os filmes abarcam uma pluralidade de temas que vão do melodrama ao registo antropológico, da fantasia à reflexão estética e religiosa, até ao thriller psicológico. A sua trilogia mais conhecida, A Matter of Life and Death, Black Narcissus e The Red Shoes, constitui, em si própria, um conjunto de filmes que suscitam uma profunda reflexão filosófica sobre o valor da vida e da morte, a fé e a vocação religiosa e a relação entre a criação artística e a vida comum, respectivamente. 

Do ponto de vista formal, Powell e Pressburger estiveram sempre na vanguarda da criação artística. Ao virtuosismo do trabalho de câmara, com muitos planos inusitados para a época, alia-se uma extraordinária utilização da cor, muito antes de Douglas Sirk a ter «reinventado». A direcção de actores é soberba permitindo em tempos diferentes revelar ou confirmar novos talentos. Sem querer ser exaustivo recordaria nomes como Conrad Veidt, Anton Walbrook, David Farrar, Eric Portman, Deborah Kerr, Moira Shearer, Pamela Brown, Wendy Hiller, Sheila Sim ou Kim Hunter. O extremo cuidado com todos os pormenores estendeu-se ao trabalho de fotografia, particularmente Jack Cardiff ou Christopher Challis, a música, a edição, os locais de filmagem, os adereços e guarda roupa. 

Vistos a esta distância (80 anos nos separam de The Edge of The World, o filme de Powell que inicia o ciclo) temos a sensação de intemporalidade. Quem ama o cinema sabe que o que distingue os filmes verdadeiramente essenciais daqueles que não passam da espuma dos dias, é um olhar retrospectivo sobre os mesmos. Os filmes de Powell e de Pressburger, tirando pequenos pormenores circunstanciais, poderiam ter sido feitos ontem. Tal como nas outras artes, o que verdadeiramente fica transcende o tempo."



É com esta  introdução do Jorge Saraiva que iniciamos o ciclo Powell & Pressburger: A Retrospectiva, que irá para o ar aqui no My Two Twousand Movies durante as três próximas semanas, e que incluirá um total de 18 filmes. Alguns de Powell a solo, embora a maioria seja da dupla.
Espero que gostem. Bom fim de semana.