sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Quando os Sinos Dobram (Black Narcissus) 1947

Quando os Sinos Dobram, tradução portuguesa para Black Narcissus, é o filme visualmente mais belo de Michael Powell e de Emeric Pressburger. Para isso contribuiu o facto de ter sido rodado nos Himalaias, num cenário de grande beleza natural, o que exigiu meios técnicos prodigiosos para a época, mas também pela singularidade do palácio que serve de convento para as freiras. Por isso ganhou os prémios de melhor cinematografia (Jack Cardiff) e melhor direcção artística (Alfred Junge).
A utilização da cor, tal como em Um Caso de Vida ou de Morte, é absolutamente deslumbrante, só tendo paralelo no tratamento que lhe deu Douglas Sirk na década seguinte; o enquadramento dos objectos e de alguns planos, a sua riqueza pictórica, remetem-nos muitas vezes para aquilo que vimos em Parajdanov e Tarkovski, mas eles só surgiriam vários anos depois. Logo por aqui percebemos o carácter pioneiro de Black Narcissus. Mas por mais excepcionais que sejam os elementos formais, não são estes que mais me impressionaram. O filme relata a odisseia de cinco freiras que são destacadas para um palácio adaptado a convento, numa remota região dos Himalaias, de clima agreste e gente pobre, mas afável. Pertencem a uma ordem religiosa trabalhadora e não meditativa, o que implica relações estreitas com a comunidade, para quem se propõem trabalhar nas áreas da educação e da saúde. O que é absolutamente espantoso é que, embora envolvido num ambiente religioso, é um filme sobre a dessacralização a vida das próprias pessoas que nela participam, em particular das freiras. Black Narcissus exala sensualidade por todos os poros. Martin Scorsese chegou a referir-se a este filme como um dos primeiros grandes filmes eróticos da história do cinema e o próprio Michael Powell a ele se referiu como a mais erótica obra que realizou. Este é o principal paradoxo de Black Narcissus; o profano a irromper no plano do sagrado, como uma inversão de uma hierofania. A assumpção do corpo em detrimento da espiritualidade, dos sentidos sobre a racionalidade da fé e da devoção. Perdoem-me a deriva filosófica, mas Nietzsche teria gostado deste filme. É a recusa total do ideal ascético, que serviu de base à moral cristã e que o genial filósofo alemão tão bem soube denunciar. É a irmã mais velha, a jardineira que decide plantar flores em vez de vegetais e que afirma que desde que chegou a este lugar se tem recordado de muitas coisas que julgava estarem sepultadas. Face à beleza agreste do lugar que interfere e modifica a própria forma de estar das freiras, só se pode viver ou como um santo ou de forma puramente hedonista. Nenhum meio termo é possível. Quando tudo começa a soçobrar, quando se completa a dessacralização das personagens e a desocultação da essência de cada personalidade, impera a paixão recalcada, a inveja, o despeito e o ciúme. No mundo físico terreno, ninguém está imune à tentação, ninguém pode ostentar uma superioridade moral como anuncia a fé cristã. Todos somos essencialmente terrenos e mundanos, no sentido de que fazemos parte deste mundo. O filme já o anuncia desde o início: A Madre Superiora, mulher jovem e bonita, é constantemente assaltada pelas recordações da sua Irlanda e do seu amor que nunca se concretizou. Ela sublima as memórias, mas elas regressam de forma poderosa. Dir-se-á que perante a magnificência da paisagem, cada uma delas se sente confrontada com a sua verdadeira integridade e com a sua própria história pessoal. Afinal o que leva as freiras a optarem por esta forma de vida: uma vocação transcendental, ou um refúgio pela decepção que o rumo das suas vidas tomou?
O final repleto de sensualidade mesmo na tragédia, caminha para um apocalipse tão anunciado, quanto inconclusivo. Não se pode parar o vento, nem remover as montanhas, ou obscurecer a luxúria das flores. À Madre Superiora resta partir antes que se volte a apaixonar e acabe por renegar os seus próprios votos. Guarda o essencial, ou o que julga ser: a sua vocação. Mas ela já não será a mesma. Nunca deixará de pensar no amor antigo que um dia perdeu, nem num mais recente que não chegou a encontrar. E neste simbolismo do desmontar de feira, alguns viram a despedida da Grã- Bretanha da mais importante jóia do seu império: a Índia. 
Por fora e por dentro, Black Narcissus é um filme belíssimo. Também pelo que mostra e pelo que sugere. E ainda pelo que nos faz pensar e sentir. O cinema não produziu muitas obras assim. Por isso, perdê-lo é um sacrilégio. 
* texto de Jorge Saraiva

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quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Um Caso de Vida ou de Morte (A Matter of Life and Death) 1946

Todos os filmes Michael Powell e Emeric Pressburger são especiais. No entanto, Um Caso de Vida ou de Morte (A Matter of Life and Death) ocupa um lugar muito particular no universo cinematográfico da dupla. As razões prendem-se com o cariz insólito do tema, mas também com o facto de ser o filme mais consensualmente amado pela crítica. 
 Um Caso de Vida ou de Morte é um filme absolutamente insólito, uma espécie de conto de fadas para adultos. Tudo começa quando o avião de Peter David Carter (Larry Niven) é derrubado, já na fase final da Segunda Guerra Mundial. Aquelas que supostamente serão as suas derradeiras palavras são para uma americana desconhecida, June (Kim Hunter), uma operadora de rádio. Estranhamente, o aviador não morre e enquanto é aguardado no lugar onde vivem os mortos, acorda na Terra, embora não saiba verdadeiramente que está vivo. O filme apresenta-nos um conjunto de peculiaridades absolutamente surpreendentes. A primeira, é que o mundo dos mortos, possivelmente o Céu, é sempre a preto e branco, enquanto a cor só existe na vida terrestre. A segunda mostra-nos que o mundo dos mortos é um mundo de justiça e equidade, como se de uma racionalização absoluta se tratasse, mas o mundo da Terra é o do amor e da imperfeição dos sentimentos. A terceira consiste no facto da relação entre os dois mundos se fazer nos dois sentidos: os serviços centrais e (quase) sempre perfeitos da morte, enviam um emissário que faz parar o tempo para resgatar a vida de Carter (absolutamente fantástica a cena do jogo de ténis de mesa suspenso com a bola no ar); na fase final, é o próprio Carter que se vai defender ao outro mundo levando a sua amada June e o seu médico. Parece óbvia a relação com a Alegoria da Caverna, o célebre texto de Platão. No entanto se o cenário tem algumas semelhanças, as diferenças são óbvias. Platão desvalorizava o mundo sensível, considerando-o ilusório e aparente e toda a nossa vida aqui deve ser um esforço para ascender ao mundo da verdade e da permanência, Mais vale ser escravo no mundo da luz, do que rei no mundo da sombra. Mas no filme de Powell e de Pressburger, não existe essa visão maniqueísta tão típica do pensamento do filósofo grego. Aqui parece quase prevalecer uma visão ateísta ou, pelo menos, agnóstica sobre as vantagens do Céu. Por muito justo e tranquilo que seja o outro mundo, este é sempre preferível. É neste que pulsa a vida, a imperfeição e o amor. E se se enganaram (uma vez sem exemplo) ao deixarem viver quem deveria ter morrido, será profundamente injusto reclamarem do seu erro. Sobretudo quando está em causa o amor que existe entre Peter e June. É do lado de cá que está a felicidade, onde residem os afectos e a vida. Do lado de lá está a perfeição gelada. Por isso, quando o amor vence a razão e se estabelece uma nova data para a morte de Peter, alguém diz que é demasiado generosa. Todos temos que morrer um dia, mas quantos mais anos pudermos adiar a data da nossa morte, tanto melhor. Voltando a Platão: no diálogo Fédon, Sócrates aparece extremamente feliz no dia da sua morte, porque se vai libertar do seu corpo e irá para um mundo (o Hades) que ele acha que é muito melhor. Em Um Caso de Vida ou de Morte, Peter e June ficam extasiados porque depois de terem subido as escadarias do Céu, podem voltar à Terra para poderem viver o seu amor. 
 Na sua aparente ligeireza e bom humor, Um Caso de Vida ou de Morte é um filme profundamente filosófico. Mais do que uma reflexão sobre o significado da vida, há um apelo para que ela seja vivida o melhor possível e durante tanto tempo quanto pudermos. Por isso transcende tempos, lugares e vontades, para se tornar numa obra absolutamente essencial.
* Texto de Jorge Saraiva.

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terça-feira, 26 de setembro de 2017

Sei Para Onde Vou ('I Know Where I'm Going!') 1945

Realizado no mesmo ano em que a 2ª Guerra Mundial terminou, Sei Para Onde Vou (I Know Where I`m Going) é um filme que descola totalmente desse tema, que tinha marcado grande parte da produção anterior de Powell e Pressburger. É também o primeiro filme que é centrado numa personagem feminina (Joan Webster, representado pela actriz Wendy Hiller). 
Sei Para Onde Vou poderá, grosso modo, enquadrar-se no que habitualmente se chama uma comédia romântica, o género mais popular da época. Mas uma comédia romântica inglesa e ainda por cima feita por Michael Powell e Emeric Pressburger não pode ser um filme qualquer. Vamos seguindo as vicissitudes de Joan Webster de quem percebemos de imediato, através de um rápido, mas bem humorado flashback sobre a sua infância, de se tratar de uma pessoa determinada e ambiciosa. Os argumentos de Pressburger nunca foram particularmente maniqueístas e, neste filme, começamos de imediato a sentir alguma aversão pela personagem principal devido à sua arrogância. Esta atinge o seu apogeu, quando retida contra sua vontade, sem poder fazer a parte final da viagem para a ilha de Kiloran onde se encontra o seu futuro e rico marido, consegue convencer um jovem e inexperiente pescador a fazer a viagem, ainda que em condições climatéricas extremamente adversas. Por isso, esta comédia romântica não é tão inocente como parece. A mulher fria, calculista e ambiciosa, disposta a espezinhar tudo e todos os que não satisfaçam os seus caprichos, remete-nos para uma dimensão social e moral, que viria, alguns anos mais tarde, a ser popularizado pelos filmes de Douglas Sirk. O dinheiro não é tudo na vida, diz a namorada do jovem barqueiro que aliciado pela miragem do dinheiro, aceita ousar a travessia, desafiando os conselhos dos mais velhos. No regresso às Hébridas, onde já tinha sido feito o seminal The Edge of the World, Powell, desta vez com Pressburger, faz uma filme sobre a dignidade humana. «As pessoas daqui não são pobres. Têm é pouco dinheiro», diz Torquil MacNeil (Roger Livesey). Sei Para Onde Vou vive desta contradição: entre aquela que submete tudo às suas disposições pessoais (incluindo a vida dos outros), pela fama e pela fortuna e os pobres que vivem em condições agrestes, mas que conhecem o valor do afecto e da entreajuda. Nesse sentido, talvez este seja o mais político de todos os filmes de Powell e Pressburger. Mas é-o de forma simultaneamente subtil e profunda: são duas visões do mundo que se chocam e que não podem coabitar. A utilização do gaélico como língua falada e a maravilhosa festa dos 60 anos de um casamento, são pormenores reveladores do cuidado colocado na elaboração do filme. O recurso às lendas seculares articula-se muito bem com todo o enredo do filme e serve para redimir a personagem feminina, respondendo ao apelo do amor recém-descoberto em vez do casamento por conveniência. Por isso a ironia do próprio título do filme: ela afinal não sabe para onde vai. Esteticamente é um filme muito bonito jogando de forma superlativa com as condições climatéricas. O nevoeiro desemboca numa tremenda tempestade e a forma arrojada e tensa como é filmada a frustrada travessia de barco é absolutamente notável. O filme recebeu muitos elogios, quer na altura, quer posteriormente. 
O escritor Raymond Chandler terá sintetizado de forma feliz quando afirmou que nunca tinha visto um filme onde sentisse tanto a chuva e o vento. Martin Scorsese afirmou que achava que já não encontraria mais nenhuma obra prima até ter visto esta. A cinemateca portuguesa definiu-o como um dos mais belos filmes da história do cinema. E não sou eu que vou dizer o contrário... 
* texto de Jorge Saraiva

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segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Três Modernos Peregrinos (A Canterbury Tale) 1944

"Canterbury Tales tem a guerra como pano de fundo. Mas não é um filme de guerra. Há soldados britânicos em manobras militares, há crianças que brincam às guerras, há um sargento americano em solo britânico, há uma mulher que supostamente perdeu o namorado quando o seu avião foi abatido, há os destroços dos bombardeamentos da cidade de Canterbury. Mas não é um filme de guerra.
Se há uma obra enigmática na carreira de Powell e de Pressburger, é esta. Não porque seja particularmente hermético, mas porque não surge claramente com um tema definido. Temos três jovens (dois soldados e uma rapariga), mas não há nenhuma história de amor ou de ciúmes: temos um magistrado da pequena vila de Chillingbourne (que de facto não existe) que se torna na figura central do argumento, mas, apesar de ser muito elogiado pelos seus concidadãos, não é um filme político; temos um caso quase policial de alguém que deita cola na cabeça das raparigas, mas rapidamente se percebe quem é o responsável e o filme não chega a ser um thriller e, muito menos, um noir. Por isso se percebe que Canterbury Tales, apesar de ter feito uma boa carreira na Grã-Bretanha, esteve longe de alcançar o sucesso de outros filmes seus, quer anteriores, quer posteriores. Para o lançamento nos EUA, o filme teve que ser encurtado e remontado de forma a tornar-se mais acessível ao gosto comum do espectador americano. As quatro personagens principais parecem inteiramente perdidos no seu passado. A rapariga que regressa para trabalhar a uma zona onde foi feliz, mas, sobretudo, para se recordar do seu noivo entretanto morto em combate; o sargento inglês a pensar na sua memória enquanto organista e o seu desejo de tocar numa catedral, o que nunca tinha conseguido, limitando-se desconsoladamente a tocar em cinemas; o sargento americano, especialista em madeiras (ou não fosse ele do Oregon) que desespera em as cartas da sua namorada que deixou a um oceano e um continente de distância; e há, finalmente, o magistrado cuja memória o remete para a antiga estrada de Canterbury percorrida pelos peregrinos e que parece ter caído no esquecimento. Esta memória filogenética é o objectivo da vida do magistrado (mais uma vez um desempenho sublime de Eric Portman), onde se misturam fé e nostalgia, poesia e metafísica, silêncio e natureza e a vontade de viver no campo, mais próximo do canto dos pássaros e do desabrochar das flores, por oposição à vida anódina das grandes cidades. Esta vontade contagia os jovens e ameniza a hostilidade que à partida sentiam contra ele. Por isso, talvez o segredo mais íntimo do filme, resida na sua espiritualidade, não tanto no sentido religioso da palavra, mas de forma mais profunda, como se se tratasse do reencontro de cada um consigo próprio e com o sentido da vida. 
O final acaba por nos remeter para um inesperado júbilo, num filme que nunca sendo sombrio, não prevê que tudo se possa concluir de forma feliz. Mas não há aqui nenhum desajustamento. No fim resta sempre a esperança. Numa cidade devastada pelas bombas, numa guerra mortífera como nenhuma outra que a humanidade tenha conhecido, a esperança em dias melhores é aquilo que nos pode salvar da insanidade. A cena final, na mais simbólica catedral britânica, com os soldados a cantar e o jovem organista a acompanhá-los (concretizando finalmente o seu sonho) é a corporização dessa mesma esperança, É também uma cena empolgante, suficientemente bela para figura na antologia dos melhores finais da história do cinema. 
 Se estão a pensar que Canterbury Tales é uma obra prima, não se enganaram. É mesmo uma obra prima."
Texto de Jorge Saraiva.

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sábado, 23 de setembro de 2017

Livros - Semana 1

A partir de esta semana, e como reparei que é do interesse de muita gente, vou abrir uma secção nova aqui no blog. Todas as semanas, sempre ao fim de semana, poderão encontrar aqui cinco publicações que tenham a ver com o mundo do cinema. Poderão ser ensaios, teses de mestrado, revistas, ou até mesmo publicações vossas. Se quiserem mandar algum trabalho vosso mandem para myonethousandmovies@gmail.com. Será aqui publicada com todo o gosto.
Para a primeira semana serão estas as publicações:

- Revista Sight & Sound, Setembro de 2017 - Link

- Women, Desire, and Power in Italian Cinema, de Marga Cottino-Jones - Link
Estudo contextual sobre a representação das mulheres nos filmes italianos do século XX. Marga Cottino-Jones argumenta que as formas como as mulheres são tratadas na tela reflectem um "conservadorismo sexual" subconsciente, típico de uma sociedade italiana enraizada dentro de uma ideologia patriarcal.

- Monte Hellman: His Life and Films, de Brad Stevens - Link
Em 1970 o LA Times escreveu que ele era o segredo mais bem guardado de Hollywood. Mais de 40 anos depois, Hellman e o seu trabalho continuam secretos, e o seu génio reconhecido apenas por um grupo fechado de fãs. Este livro é uma biografia, e um estudo intenso sobre a sua carreira até ao ano de 2003.

- Future Imperfect: Philip K. Dick at the Movies, de Jason P. Vest - Link
Philip K. Dick foi um dos autores americanos mais incisivos e subversivos da última metade do século XX. As adaptações cinematográficas da sua obra geraram muito interesse a partir do filme "Blade Runner" (1982), que é necessária uma dissertação sobre os seus filmes. Future Imperfect é a primeira publicação a examinar as primeiras oito adaptações da obra de Dick à luz das suas fontes literárias. 

Through the Mirror: Reflections on the Films of Andrei Tarkovsky, de Gunnlaugur A. Jonsson, Thorkell A. Ottarsson - Link
Já passaram mais de 30 anos desde que Andrei Tarkovsky faleceu de cancro no seu exílio em França. Esta é uma de muitas obras escritas em torno do seu trabalho, e uma forte indicação do interesse continuo, e dos desafios colocados pelos seus filmes. Esta colecção de ensaios, cada uma com uma abordagem única, ajuda-nos a compreender um pouco melhor o seu mundo.

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

A Vida do Coronel Blimp (The Life and Death of Colonel Blimp) 1943

A Vida do Coronel Blimp (The Life and Death of Colonel Blimp) marca o início da época de ouro de colaboração entre a dupla Michael Powell e Emeric Pressburger a partir da produtora The Archers criada e controlada por ambos. Neste período que se estende até 1951 seriam produzidos os filmes mais conhecidos da dupla e que hoje se constituem como referências incontornáveis quer do cinema britânico, quer da própria história do cinema mundial.
A Vida do Coronel Blimp é mais um filme de guerra, ou melhor, um filme de guerras. Mas, ao contrário de alguns dos seus antecessores, não é nenhuma encomenda do Ministério de Informação Britânico. O efeito foi exactamente o oposto. O retrato do general Candy não foi particularmente bem acolhido pelas forças armadas britânicas, que viram nele uma espécie de herói bonacheirão, relativamente estouvado e que não corresponde exactamente às virtudes marciais convencionais. Mais controversa ainda foi a forma como é descrita a amizade entre o general Candy e o coronel alemão Theo Kretschmar-Schuldorff, uma relação que ultrapassa fronteiras e até amores pela mesma mulher. Apesar do coronel ter afirmado «que o nazismo é a invenção mais diabólica que o cérebro humano produziu» esta relação de amizade foi vista de forma suspeita. O coronel que se bate em duelo com o general em Berlim em 1902, ambos ainda jovens, por um motivo aparentemente fútil, e que é prisioneiro de guerra britânico durante a primeira guerra mundial, acaba por fugir de Hitler e do nazismo e pedir refúgio em Inglaterra. Talvez este seja o calcanhar de Aquiles do filme: quando Theo é libertado das prisões inglesas e ouve promessas de paz, cooperação e de amizade entre os dois povos, volta ao seu país a remoer num discurso de renascimento alemão e desforra das humilhações sofridas. Regressa menos de 20 anos depois desiludido com o rumo que Hitler deu à Alemanha. Nunca se percebem inteiramente os motivos da transformação das suas ideias. Como já tinha sucedido nos seus anteriores filmes, a guerra propriamente dita é um presente ausente. É um pano de fundo constante, mas onde não se filma qualquer acção militar. Em contrapartida, há uma notável discussão que opõe Candy a Theo sobre os métodos a utilizar na guerra: Candy defende uma concepção ética da guerra, sem tortura aos prisioneiros, sem bombardeamentos de cidades nem danos sobre civis; Theo, pelo contrário, considera que a segunda guerra não pode ser comparada à primeira e que o nazismo só pode ser eficazmente combatido com as mesmas armas e sem quaisquer tipos de contemplações. A discussão ainda hoje mantém plena actualidade. O bombardeamento de muitas cidades alemãs, algumas delas de forma absolutamente inútil e por pura vingança, revela qual a teoria que se impôs nos anos finais da guerra. 
Do ponto de vista formal, o filme é primoroso. A utilização da cor, que tinha sido iniciada com o Ladrão de Bagdad, aperfeiçoa-se, tornando-se uma das imagens de marca das suas obras subsequentes. O argumento, não sendo dos mais brilhantes, é, ainda assim, excelente, com um início de desconcertante sarcasmo («foi combinado que a guerra só começava à meia noite» afirma Candy em desespero), para depois funcionar em flashback, só retomando o início na parte final do filme. O trabalho de direcção de actores é excelente, com a particularidade das três principais personagens femininas serem todas representadas pela mesma actriz (Deborah Kerr) o que faz todo o sentido, face ao próprio desenvolvimento do argumento.
 Apesar das reservas com que foi acolhido, A Vida do Coronel Blimp foi um sucesso de bilheteira na Grã-Bretanha, em 1943. Nos EUA só foi estreado dois anos depois, devido a pressões do próprio governo britânico. Hoje há uma visão mais consensual sobre o filme: apesar de não ser dos meus favoritos da dupla, normalmente é presença regular na lista dos cem melhores filmes de todos os tempos. Isto naquele que Powell considerava como o mais inglês dos seus filmes, apesar do argumentista ser húngaro, o director de fotografia, francês, o compositor, judeu alemão e o responsável pelo guarda roupa, checo... 
* texto de Jorge Saraiva

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quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Falta um dos Nossos Aviões (One of Our Aircraft Is Missing) 1942

One of Our Aircraft Is Missing é a quarta colaboração entre Michael Powell e Emeric Pressburger, a primeira para a nova produtora Archers, onde a dupla poderia ter um maior controlo criativo sobre a sua própria obra. 
O filme é visto como uma arma de propaganda feita para elevar a moral das tropas britânicas envolvidas na Segunda Guerra Mundial e, simultaneamente, um apelo à população para que se mantivesse unida em torno do objectivo de derrotar a Alemanha nazi. Apesar da ligação estreita ao próprio Ministério da Informação, de forma alguma One of Our Aircraft Is Missing pode ser menorizado. Muitos cineastas dos dois lados do Atlântico, envolveram-se directamente na propaganda de guerra, alguns até muito mais reputados do que Powell e Pressburger, como foi o caso de Frank Capra. Sendo um filme de guerra, não é um filme de guerra qualquer. É, provavelmente, o melhor filme da dupla, até à altura e uma obra prima do género. Curiosamente quase não tem tiros nem mortes, excepto nas partes inicial e final. Isto significa que a aposta é nos aspectos usualmente menos relevados da guerra, a tensão psicológica, o medo e a resistência civil à ocupação. O argumento inverte a situação do filme anterior, 49th Paralell. Aqui não são soldados alemães que ficam retidos em território inimigo, sem grandes hipóteses de escaparem. Num raid aéreo sobre a Alemanha, um dos aviões britânicos é atingido e acaba por se despenhar na Holanda, então ocupada pelos nazis. Os seis tripulantes ejectam-se em pára-quedas e procuram sobreviver em território hostil. Embora o filme seja centrado nas estratégias dos seis militares britânicos, os verdadeiros protagonistas do filme, são os anónimos cidadãos holandeses que conscientemente arriscam a vida para os enviar de volta para o seu país. Salvar os militares é uma forma de resistir ao inimigo invasor, embora saibam que, caso sejam denunciados, serão mortos por traição. Aliás o filme é dedicado a estes anónimos cidadãos holandeses que perderam a vida para que o seu regresso fosse possível. Vista nesta perspectiva, todos os tiroteios, ou espectaculares cenas de guerra são absolutamente supérfluos. Sabemos que as coisas não se passaram realmente assim. Em todos os lugares houve sempre gente a colaborar com o inimigo, alguns por convicção ideológica, a maioria por pura conveniência. Mas, e nisso é que sente mais o carácter propagandístico do filme, aqui parece haver um sentido de unidade entre todos os holandeses. De resto, One of Our Aircraft Is Missing, é um monumento à sobriedade. Não há histórias de amor cruzadas, nem paixões mais ou menos platónicas entre ingleses e holandeses. Ao contrário de muito filmes dessa e de todas as épocas, não há nenhuma espécie de inglês universal que todos falam, sejam eles índios, russos ou chineses. Os holandeses falam holandês, excepto aqueles que dominam a língua inglesa e o mesmo se passa com os alemães. 
Apesar da sobriedade, algumas das cenas, designadamente as finais, são filmadas de forma virtuosa e dispondo de todos os recursos tecnológicos da época (com alguns adiamentos no produto final, para nele serem incorporadas as mais recentes inovações da tecnologia militar) o que valeu nomeação do filme para os Óscares da melhor fotografia e dos melhores efeitos especiais, assim como do melhor argumento, embora não tivesse ganho nenhum. O filme não tem nenhuma banda sonora, uma vez que os realizadores consideraram que a mesma contribuiria para desviar a atenção dos seus aspectos centrais. E, verdadeiramente, não precisa. 
* Texto de Jorge Saraiva

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quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Os Invasores (49th Parallel) 1941

Os Invasores é a primeira incursão de Michael Powell e Emeric Pressburger na segunda guerra mundial que então devastava o mundo. Tal como o posterior One of Our Aircraft Is Missing (1942), enquadra-se no esforço de propaganda do governo inglês no combate ao nazismo, e por isso, se pode, com propriedade, referir que são encomendas oficiais. Como sucede nos primeiros filmes do duo, Powell é o realizador e Pressburger o argumentista.
"Os Invasores" tinha um objectivo político claro: pressionar a opinião pública dos EUA e do seu governo a abandonarem a política de neutralidade então vigente, aliando-se aos britânicos. Daí o título de 49th Parallel (nos EUA recebeu o nome de The Invaders) que marca a fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá. O argumento é bastante sofisticado para um filme de guerra. Após uma batalha entre um submarino alemão e aviões de guerra aliados, um grupo de soldados alemães que tinha sido destinado a uma missão, fica isolado em território inimigo e sem possibilidades de retorno ao submarino que havia sido destruído. O filme torna-se quase uma espécie de road movie invulgar, uma vez que os soldados alemães têm como objectivo atravessar de forma incógnita todo o Canadá para chegarem a Vancouver onde poderão embarcar rumo ao Japão com informações preciosas sobre segredos militares do Canadá. Curiosamente, acabam por ser os alemães os principais protagonistas do filme, em particular, o tenente Ernst Hirth (representado pelo actor Eric Portman). As contradições entre o grupo de soldados alemães são evidentes: alguns são militares como outros quaisquer, fazendo uma guerra porque para ela são enviados contra a sua própria vontade e sem se sentirem parte de qualquer espírito salvador do mundo a partir do conceito de supremacia racial ariana; o tenente Hirth, pelo contrário, representa o ideal nazi com todo o arsenal ideológico que lhe é característico. Esta distinção subtil que se corporiza na execução do soldado alemão que é mais vulnerável à complacência com o «inimigo», é, na minha opinião, o aspecto mais relevante de todo o filme. O nazismo não representa a totalidade de um povo, mas sim apenas um grupo ideologicamente mais radicalizado e fanático que veicula uma mensagem de ódio e de destruição. Esta diferença é muito eficaz do ponto de vista propagandístico (sobretudo se se tiver em conta os objectivos acima referidos) em particular quando comparada com muitos filmes sobre esta guerra em que os alemães são apresentados sempre como desprovidos de sentimentos e cegos seguidores dos seus dirigentes. As cenas de guerra, propriamente ditas, são escassas e confinam-se aos momentos iniciais do filme. Todo o resto é a fuga e a perseguição que vai fazendo cair, um a um, os soldados alemães, à medida que estes procuram desesperadamente caminhar para Oeste. Algumas cenas como a da festa do dia nacional dos índios são verdadeiramente antológicas e o final, a um tempo irónico e justiceiro, revela a extraordinária capacidade de Pressburger na escrita de argumentos. 
Os Invasores deve ser visto como uma primeira parte de um díptico que tem em One of Our Aircraft Is Missing, a segunda. É um filme que retrata a guerra nas suas vertentes mais políticas e humanas em detrimento dos aspectos militares. Nessa medida, os dois filmes fazem parte daquele acervo de obras do género que são imprescindíveis. 
* Texto de Jorge Saraiva

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terça-feira, 19 de setembro de 2017

O Ladrão de Bagdad (The Thief of Bagdad) 1940

"No conjunto de filmes iniciais de Michael Powell. o Ladrão de Bagdad ocupa um lugar singular. Não é um filme de guerra, é uma co-realização com o alemão Ludwig Berger e o americano Tim Whelan, curiosamente dois cineastas com um largo currículo no cinema mudo. Por outro lado, é um filme colorido, o que não é muito comum nessa época. 
Aliás a cor desempenha um papel fundamental nesta «fantasia arábica» como é designado no genérico inicial. Viviam-se os primórdios do cinema a cores e imperava algum experimentalismo cromático que umas vezes resultava e noutras não. Felizmente, o Ladrão de Bagdad é muito bem sucedido. Todo o filme é, do ponto de vista formal, muito conseguido e artística e tecnicamente muito arrojado e inovador, ganhando Óscares nas chamadas categorias técnicas como os efeitos visuais a direcção artística e a cinematografia, para além de ser o primeiro filme a utilizar a o bluescreening. Havia uma versão de 1924 da qual esta supostamente um remake, mas parece que as diferenças entre ambas são substanciais, embora eu não tivesse visto o original. Embora não seja extraído das Mil e Uma Noites, o Ladrão de Bagdad inspira-se no mágico maravilhoso que nos foi deixado por essa obra literária. Por esses motivos e pela simplicidade do argumento, pelos efeitos visuais muito avançados para a época e pelo tom encantatório que é tão típico da cultura árabe, é um filme que abrange uma segmento etário muito amplo, designadamente, crianças e adolescentes, sem, no entanto, desagradar aos adultos Poder-se-á dizer de uma forma um pouco simplista, que o Ladrão de Bagdad tem inegáveis pontos de contacto com o Feiticeiro de Oz de Victor Flemming, datado do ano anterior, sobretudo porque vive no mesmo imaginário de um mundo fantasioso e alternativo onde as leis da física e da biologia não são as mesmas que conhecemos neste nosso mundo. São os encantamentos e feitiços que transformam homens em cães e cegam outros, que encantam princesas, tapetes voadores, génios da lâmpada que concedem desejos, sultões, dançarinas de véu e cavalos alados, mas que permitem uma redenção final voltando tudo à primeira forma, onde os maus são castigados e os bons recompensados. Este traço profundamente maniqueísta, típico das histórias infantis, encontrou na cultura árabe (mais uma vez as Mil e Uma Noites) o seu expoente máximo. Curiosamente, apesar de do filme ter sido rodado na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos por vários realizadores diferentes. o filme não se ressente particularmente desse facto, apesar das cenas filmadas em território americano terem sido sujeitos a códigos de vestuário femininos mais restritivos. Conrad Veidt, o popular actor alemão que vinha do cinema mudo, está, mais uma vez, magnífico no papel do usurpador do trono. A revelação é o jovem actor indiano Sabu Dastagir que posteriormente teria uma carreira bem sucedida em Hollywood, tendo também participado em Black Narcissus igualmente de Michael Powell e de Emeric Pressburger. 
Não é uma obra totalmente assinado por Michael Powell. Foge bastante ao universo habitual dos seus filmes, embora a forma multifacetada como filma, inviabiliza que se possa falar, num estilo Powell e Pressburger. Mas é um filme delicioso e refrescante. Provavelmente como hoje já não se fazem."
 * Texto de Jorge Saraiva

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segunda-feira, 18 de setembro de 2017

O Espião Negro (The Spy in Black) 1939

The Spy in Back é um filme histórico pelo facto de ser a primeira colaboração entre Michael Powell e Emeric Pressburger, através do conhecimento mútuo que lhes foi proporcionado pelo produtor Alexander Korda. Nesta altura, Powell que já tinha obtido algum reconhecimento por The Edge of the World é o realizador, enquanto Pressburger é o responsável pelo argumento. 
The Spy in Black inaugura os filmes cuja temática é a guerra a que voltariam sucessivamente nos anos seguintes. Desta vez é a primeira guerra, já que o ano da acção se passa em 1917. Trata-se de um filme de espionagem, um thriller complexo, onde a partir do argumento, se desenvolve um jogo de aparências, ao mesmo tempo que se enfatiza a utilização dos submarinos como instrumentos de guerra. Essas aparências resultam, em grande parte, das falsas identidades que as diversas personagens assumem, quer aparecendo disfarçadas, quer fazendo-se passar por outras pessoas. Mais do que um filme de guerra puro e duro (aliás a acção militar naval acontece apenas no final do filme), The Spy in Black transporta-nos, através de um argumento engenhoso para uma constante busca da identificação real das personagens, provocando sucessivas reviravoltas, um pouco ao estilo que Hitchcock tão bem popularizaria. Mais interessante ainda, é que a personagem principal é representada pelo excelente Conrad Veidt, um dos mais populares actores do cinema mudo alemão (e também do início do sonoro), mas que, pelo facto de a sua mulher ser judia, acabou por se exilar em Inglaterra e, posteriormente, nos Estados Unidos. Um dos aspectos mais peculiares é que não vai haver aqui a carga maniqueísta dos filmes posteriores, normalmente relacionados com a segunda guerra mundial. Neste conflito há claramente uma disputa ideológica, entre o nazismo e o fascismo e o anti-nazismo e anti-fascismo. Na primeira guerra o conflito é sobretudo de interesses económicos e territoriais sem a carga ideológica que o conflito posterior apresentou. Ora, Powell e Pressburger reflectem essa situação de forma admirável. Não se trata de um filme amoral ou neutro, mas o inimigo nunca é tratado da mesma forma que em filmes posteriores como The Invaders ou One Aircraft Is Missing. Embora sejam ludibriados no final e em grande parte de forma fortuita, com um final irónico onde os alemães se atacam a si próprios, estes nunca chegam a ser considerados como verdadeiros malfeitores. Lutam pelos interesses do seu país da mesma forma que os ingleses defendem o campo oposto. Aliás, não é por acaso, que as estratégias utilizadas por alemães e ingleses são muito semelhantes e normalmente implicam o uso de espiões. Retirar a carga política ao filme é, na minha opinião, o maior mérito do filme. De resto, estão aqui presentes todos os méritos dos filmes de Powell e Pressburger: um grande cuidado com todo o enquadramento histórico, uma realização virtuosa, mas sóbria, um excelente trabalho de direcção de actores e um especial cuidado com a própria credibilidade da acção. Tal como em filmes posteriores, os alemães falam alemão entre si e só mudam para inglês, quando precisam de comunicar com britânicos. 
As reacções a Spy in the Black foram, na generalidade, muito favoráveis, logo na altura em que o filme começou a correr nas salas. Quase 80 anos depois, ainda se vê com muito agrado. Não é, na minha opinião, uma obra prima absoluta, ao nível do que fizeram noutros filmes. Mas essa constatação, mais do que desvalorizar o filme, apenas reforça a qualidade imensa do conjunto da sua obra. 
* Texto de Jorge Saraiva

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domingo, 17 de setembro de 2017

The Edge of the World (The Edge of the World) 1937

Embora já fizesse filmes desde 1928, sobretudo curtas metragens (algumas das quais perdidas), The Edge of the World é considerado como o primeiro filme de Michael Powell. Pelo menos, é o primeiro em que ele pode assumir totalmente a sua direcção partir de um argumento próprio.
The Edge of the World bastaria para que Michael Powell pudesse ser recordado como um realizador importante. Felizmente, quer a solo, quer na posterior companhia de Emeric Pressburger, o cineasta deixou-nos suficientes motivos para tornar a sua imortalidade cinéfila num facto incontestável. Trata-se da passagem a tela de forma ficcionada de um dos acontecimentos mais dramaticamente relevantes na Grã-Bretanha na década de 30: a evacuação voluntária da ilha de Hirta situada no arquipélago de St. Kilda nas Novas Hébridas exteriores. Numa viagem de iate, três passageiros chegam à ilha que encontram desabitada, embora se notem ainda os sinais de recente povoamento. Curiosamente é o próprio Michael Powell, então com 32 anos que capitaneia o navio. Mas o filme é um flashback sobre o que se passou meia dúzia de anos antes. Embora baseado numa situação real, o filme ficciona o êxodo, através de uma história de amor entre dois jovens contra a vontade do pai dela. O que é absolutamente fascinante em The Edge of the World é a forma como Powell olha para aquele microcosmos, constituído por algumas dezenas de pessoas, numa vida agreste e dura, marcada por rituais perigosos, mas também por um elevado sentido comunitário. Há uma repartição da pobreza que se transforma num quase comunismo primitivo: o gado que se guarda junto, a pesca colectiva, as decisões tomadas em conjunto, por uma pequena comunidade que, de tão isolada e restrita, não chega a ter nenhum órgão de poder. Pelo tom desolado, por uma paisagem agreste (aqui com as escarpas altíssimas constantemente filmadas, como que a revelar que esta não é uma terra para pessoas) o filme tem alguns pontos de contacto com o célebre Stromboli de Roberto Rossellini. Mas o tom de inevitável decadência, de uma vida que gradualmente se vai tornando impossível, com a escassez da pesca e as colheitas cada vez mais fracas, fez-me lembrar a obra prima de Michelangelo Frammantino, Il Dono. O mesmo olhar antropológico sobre um mundo que se desfaz, mais lento no italiano, quase numa antevisão, mais acelerado no inglês, como uma inevitabilidade imediata. Neste confronto entre os novos que querem partir e os velhos que querem ficar e balizado pelo olhar mudo de uma velha paralítica, a câmara move-se com um virtuosismo surpreendente, aquele que só a sobriedade pode conferir. O olhar dela quando pressente a morte do neto é quase arrepiante. Mas não há lugar para comoções assolapadas. O êxodo é encarado com uma serenidade impressionante, com uma resignação digna. A inexorabilidade do destino dita a sua lei. A ilha, habitada desde tempos imemoriais, onde em raros dias de limpidez, se consegue vislumbrar a costa escocesa a sul (o que é presságio de desgraça) ficará entregue às aves. 
A corda que se parte e conduz à morte do mais renitente dos habitantes da ilha num antecipado e almejado suicídio, é a metáfora de um mundo a ruir. E, tal como em A Terra Treme de Visconti, nunca são necessárias muitas palavras para descrever a vida dos pobres. Está tudo nos olhares, está tudo nas imagens. 
* Texto de Jorge Saraiva
 Legendas em inglês

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sábado, 16 de setembro de 2017

Powell & Pressburger: A Retrospectiva

"O My Two Thousand Movies apresenta a todos os seus seguidores uma retrospectiva dos filmes de Michael Powell em nome individual e em parceria com Emeric Pressburger, uma das duplas de realizadores mais brilhante da história do cinema, conhecida pelo nome de The Archers. O ciclo englobará as suas obras mais significativas, designadamente as que foram realizadas entre o final da década de 30 e o início da década de 50.

 Se há uma palavra que penso que pode exprimir o cinema de Powell e Pressburger, ela é, intransigência. A dupla nunca se mostrou muito disponível para fazer qualquer tipo de cedência aos ditames do mercado. Nos EUA, grande parte da produção da altura, tal como hoje, estava calibrada pelo sucesso comercial. ao que contrário do que acontecia na Europa. E se é certo que a Grã-Bretanha não faz parte dos EUA, grande parte da sua produção cinematográfica sempre foi feita a pensar no mercado americano.

Powell e Pressburger impuseram as suas próprias regras. Fundaram a produtora The Archers para manterem sempre o controlo criativo da sua obra. E conseguiram-no. Na generalidade, os seus filmes demonstram um extraordinário cuidado em todos os planos. Tematicamente os seus filmes são muito variados. Há uma preocupação deliberada em escolher as obras literárias das quais Emeric Pressburger foi capaz de fazer excelentes argumentos, normalmente fluidos, consistentes e extremamente inteligentes. Os seus filmes escapam às visões maniqueístas e revelam a complexidade das personagens. Durante o período da II Guerra Mundial incidiram sobre o conflito, mas quase sempre de forma singular: nunca houve particular interesse em filmar as cenas de acção militar, mas sim os envolvimentos psicológicos e sociais dela derivadas. Aos The Archers interessam as pessoas nas suas complexidades, nas suas indecisões e nos seus contextos. Por outro lado, sobretudo a partir do final da II Guerra Mundial, os filmes abarcam uma pluralidade de temas que vão do melodrama ao registo antropológico, da fantasia à reflexão estética e religiosa, até ao thriller psicológico. A sua trilogia mais conhecida, A Matter of Life and Death, Black Narcissus e The Red Shoes, constitui, em si própria, um conjunto de filmes que suscitam uma profunda reflexão filosófica sobre o valor da vida e da morte, a fé e a vocação religiosa e a relação entre a criação artística e a vida comum, respectivamente. 

Do ponto de vista formal, Powell e Pressburger estiveram sempre na vanguarda da criação artística. Ao virtuosismo do trabalho de câmara, com muitos planos inusitados para a época, alia-se uma extraordinária utilização da cor, muito antes de Douglas Sirk a ter «reinventado». A direcção de actores é soberba permitindo em tempos diferentes revelar ou confirmar novos talentos. Sem querer ser exaustivo recordaria nomes como Conrad Veidt, Anton Walbrook, David Farrar, Eric Portman, Deborah Kerr, Moira Shearer, Pamela Brown, Wendy Hiller, Sheila Sim ou Kim Hunter. O extremo cuidado com todos os pormenores estendeu-se ao trabalho de fotografia, particularmente Jack Cardiff ou Christopher Challis, a música, a edição, os locais de filmagem, os adereços e guarda roupa. 

Vistos a esta distância (80 anos nos separam de The Edge of The World, o filme de Powell que inicia o ciclo) temos a sensação de intemporalidade. Quem ama o cinema sabe que o que distingue os filmes verdadeiramente essenciais daqueles que não passam da espuma dos dias, é um olhar retrospectivo sobre os mesmos. Os filmes de Powell e de Pressburger, tirando pequenos pormenores circunstanciais, poderiam ter sido feitos ontem. Tal como nas outras artes, o que verdadeiramente fica transcende o tempo."



É com esta  introdução do Jorge Saraiva que iniciamos o ciclo Powell & Pressburger: A Retrospectiva, que irá para o ar aqui no My Two Twousand Movies durante as três próximas semanas, e que incluirá um total de 18 filmes. Alguns de Powell a solo, embora a maioria seja da dupla.
Espero que gostem. Bom fim de semana.

A Long Weekend in Pest and Buda (Egy hét Pesten és Budán) 2003

Uma interessante história que explora a Húngria moderna, e os laços com o passado que muitos ainda têm. Ivan (Iván Darvas) está a morar na Suíça, mas é obrigado a voltar à sua Hungria natal depois de décadas de um exílio auto-imposto, para visitar Mari (Mari Töröcsik), uma ex-amante agora gravemente doente. Depois de chegar é confrontado com segredos do passado e também problemas do presente que mudarão a sua vida.
"A Long Weekend in Pest and Buda" dirigido por Károly Makk, volta a reunir Makk com as duas estrelas do filme "Amor" de 1971, Mari Töröcsik e Iván Darvas, passados mais de trinta anos. Embora não é uma sequela, utiliza algumas sequências deste filme, e também de "Merry-Go-Round" de Zoltán Fábri, em flashbacks. A idéia para o filme veio de uma sugestão de Marc Vlessing, o produtor, que queria que Makk fizesse um filme que olhasse para o passado recente da Húngria. Nesta altura (1997), Vlessing e Makk estavam em Londres, a dar os toques finais em "The Gambler", uma adaptação de um livro de Fyodor Dostoyevsky. "A Long Weekend in Pest and Buda" acabaria por ter uma longa gestação, em parte por causa dos problemas habituais de encontrar apoio financeiro, que não eram fáceis de encontrar. Desde o início da produção que Makk estava interessado em incluir os actor de "Amor", apesar de qualquer idéia que isso tenha levantado deste filme ser uma continuação, ou mesmo um remake, do filme anterior. A história de Ivan, e o seu antigo amor, Mari, também se tornou na história das suas gerações.
Mas o filme é também a história do encontro de Ivan com a sua filha, Anna, e o modo como eles lidam um com o outro, ora aproximando-se ora afastando-se. Por isso o filme nunca adopta a técnica de "Amor", de mudar o interesse narrativo de um personagem para outro. A perspectiva é sempre a de Ivan, mas o filme recusa-se a deixá-lo sozinho, oferecendo-lhe através da reconciliação com a sua filha, uma libertação da dor com o passado.
Mais um filme bastante raro, com legendas em inglês.

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quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Hungarian Requiem (Magyar rekviem) 1990

Em 1956 houve uma revolta do povo húngaro contra os seus senhores russos, que permitiram os húngaros florescerem por uns breves instantes, para depois os suprimirem. Suspeita-se de que os governantes do país sabiam desta revolta antecipadamente, mas permitiram que ela iniciasse e continuasse para identificar quem era mais activo. Neste filme estamos em 1958, e sete homens muito diferentes esperam nas suas celas para serem levados e executados. Os seus sonhos, fantasias e lembranças aliviam o que de outra forma parece ser uma situação repetitiva. Eles são um velho professor, um oficial, um marinheiro durão, um polícia que trocou de barreira durante a revolução, um cigano assustado, um lutador pela liberdade, e um jovem acabado de fazer 18 anos...
Co-produção húngara/alemã baseada num livro de Mihály Kornis. Coma atmosfera mortífera de uma cela como pano de fundo, as memórias poéticas, sonhos e fantasias de amor e liberdade temporária destes homens acalmam a tensão insuportável desta poderosa evocação da resistência. Era uma homenagem de Karóly Makk, um homem que já tinha realizado o primeiro filme de amor homossexual no seu país, à resistência húngara que lutou bravamente contra os russos. Um destaque especial para o actor francês Mathieu Carrière num dos papéis centrais do filme. 
Como o filme em si é sobre a repressão e opressão da revolução húngara de 1956, é uma interessante informação secundária que os julgamentos do ministro do interior húngaro do período (1957-61) Béla Biszku, que ordenou que os soldados abrissem fogo sobre a multidão, e depois fosse responsável pela execução de milhares de pessoas, tinham acabado de começar em Budapeste.  
É um belíssimo drama político de Makk, que não merece cair no esquecimento. Legendas em inglês.

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quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Outra Forma de Amar (Egymásra Nézve) 1982

Repressão política e sexual na Hungria, logo depois da revolução de 1956. Em 1958, o corpo de Eva Szalanczky, uma jornalista política era descoberto perto da fronteira. A sua amiga Livia está no hospital com o pescoço partido. O marido de Livia, Donci, está sob prisão. Num flashback ao ano anterior vemos o que leva a esta tragédia. Eva consegue um emprego como escritora, conhece Livia e sente-se atraída por ela. Livia sente o mesmo, mas é casada e tem muitas dúvidas e hesitações. No trabalho, elas procuram os limites das verdades políticas. Em particular elas enfrentam os limites de viver a verdade sexual e emocional. 
Na Hungria o cinema esta sujeito a menos censura do que nos seus vizinhos da Checoslováquia e Polónia, mas mesmo assim, este filme de Károly Makk encontrou muita oposição no país de origem, e Makk sofreu muita pressão para mudar a história. Não apenas o assunto era muito sensível politicamente, mas também foi o primeiro filme da Europa do Leste a lidar com o tema da homossexualidade. Makk, no entanto, já tinha uma grande reputação no Ocidente, em parte devido ao seu filme de 1971, "Love", e assim "Outra Forma de Amar" acabou por ser exibido em Cannes em toda a sua forma, sem cortes nem censura, acabando depois por ser exibido comercialmente nos Estados Unidos e no Reino Unido. 
Baseado num livro de Erzsebet Galgoczi, é um drama envolvente que nos dá um valente soco no estômago. A história é contada em flashback, e sabemos logo de inicio que não vai acabar bem, com Makk a ligar explicitamente a opressão política à opressão sexual. Foi exibido na Selecção Oficial de Cannes, sendo a quinta vez que um filme de Károly Makk entrava na competição. 

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terça-feira, 12 de setembro de 2017

Casa de Respeito (Egy Erkölcsös Éjszaka) 1977

Grande parte do filme passa-se num bordel gerido pela madame (Iren Psota). Quase todas as suas meninas interessam-se pelo Dr. Jeno Kelepei (Gyorgy Cserhalmi), que não é um homem particularmente atraente, nem rico, e de acordo com as meninas, nem a sua "inteligência" as impressiona. No entanto, todas se derretem à sua volta. Um dia Jeno conta à madame que a sua mãe lhe enviou 120 coroas, e a sua renda são 90. Reclama que não lhe sobra muito dinheiro, e gosta de fazer a sua visita habitual ao bordel. Fazem um acordo em que ele poderá viver lá e pagar 90 coroas, mas nunca poderá chegar aos ouvidos da mãe, ou ela não lhe envia mais dinheiro. 
Como este filme é uma comédia, é fácil de adivinhar o que se segue. A mãe, um dia, faz-lhe uma visita inesperada, causando muitos distúrbios no bordel. As jovens têm de manter o seu trabalho em segredo até a mãe de Jeno ir embora, que pensa que aquela moradia é um local com quartos de aluguer. 
Uma comédia baseada num pequeno conto de Sandor Huyady, "The House With The Red Light", "A Very Moral Night" está vagamente ligado aos sucessos anteriores de Károly Makk, "Amor" (Szerelem) e "Jogo de Gatos" (Macskajáték), em primeiro lugar porque em todos estes três filmes são as mulheres as figuras centrais da acção, e em segundo lugar pela fotografia de János Tóth. Ao lado de grandes nomes como Bergman ou Antonioni, Makk tornou-se num especialista no retrato da alma de uma mulher no grande ecrã. 
Talvez a coisa mais encantadora neste filme seja a forma como a pequena e frágil velhinha encanta o bordel, com um grande sorriso sobrenatural, ensinando às jovens prostitutas os maiores segredos da vida, acima de tudo, pelo seu magnífico humor e boa disposição, mesmo perante situações adversas. 
Filme muito raro, tem legendas em inglês.

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segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Jogos de Gatos (Macskajáték) 1974

As heroínas do filme são as duas irmãs Szkalla, que quando eram novas eram brilhantes e bonitas, mas agora estão velhas, e vivem separadas uma da outra. Giza é a mais solitária, porque tem de andar presa a uma cadeira de rodas, e vive com o filho em Munique. A outra é a senhora Orbánné, que dá aulas de canto para sobreviver em Budapeste e vive um romance com Csermlényi, um antigo pretendente, que é um tenor já na reforma. Quando está de bom humor ainda tem uma grande proximidade com o seu inquilino, Egérke...
Três anos depois do seu primeiro grande sucesso internacional, e consequente vitória no grande prémio do Júri em Cannes, Karoly Makk regressa com uma história de partir o coração sobre duas irmãs solteiras, que depois de uma vida dolorosa, ainda procuram acreditar na esperança e no amor. Mais uma vez Makk faz-se valer dos desempenhos extraordinários da sua dupla de actrizes, desta vez interpretadas por Margit Dajka e Elma Bulla. "Macskajáték" opõe-se à desolação do mundo exterior com paixão, amor e lealdade.
Além de ter concorrido para a Palma de Ouro em Cannes, "Macskajáték" conseguiu ainda uma nomeação para o Óscar de Melhor filme em Lingua Estrangeira, o segundo da Húngria a conseguir ser nomeado para este prémio, seis anos depois de "The Boys of Paul Street", de Zoltán Fábri, um filme que já por aqui passou num ciclo deste realizador. Os húngaros continuariam a tentar, para conseguir finalmente ganhar um Óscar para "Mephisto", de István Szabó, em 1982. "Macskajáték" teve estreia em Portugal no festival da Figueira da Foz em 1986.
Legendas em Inglês.

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sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Amor (Szerelem) 1971

Passado no início da década de cinquenta, uma era de perseguição política sob o domínio de Mátyás Rákosi, época em que muitos húngaros foram presos ou executados. Luca (Mari Töröcsik), depois de ver o marido ser preso e não ter mais notícias sobre a sua condição, o estado de saúde, ou sequer saber se ele está vivo ou morto, decide começar a visitar a sogra (Lili Darvas) frequentemente para não deixar que a senhora descubra que o seu filho está preso, fazendo com que a idosa continue a acreditar que o filho está a fazer um filme em Nova Iorque. 
Muitas sequências são inteligentemente interrompidas com imagens de flashbacks, memórias e pensamentos, que nos deixam ler a mente das personagens fornecendo também pistas sobre o relacionamento destas. Algumas destas imagens sugerem que bem lá no fundo a sogra talvez saiba a verdade, mas é mais feliz a acreditar nesta verdade alternativa. As interpretações destas duas mulheres (de Lili Darvas e Mari Törõcsik) são absolutamente incríveis, e são apresentadas muito subtilmente o que evita que o filme se torne demasiado sentimental ou sombrio, apesar do tema ser muito emocional ou político. 
Ao minimizar o aparecimento das forças da autoridade apenas para o mínimo requerido pela narrativa, Makk permite-nos concentrar nos mínimos detalhes sobre o amor, a perda, e a recuperação.
No festival de Cannes de 1971 ganhou o grande prémio do Júri, colocando no mapa do cinema internacional o realizador Károly Makk. As duas actrizes, Torocsik e Darvas também ganharam uma menção especial pelas suas interpretações. Lili Darvas tinha 69 anos na altura, e participaria aqui no seu último filme, depois de uma carreira em que trabalhou sobretudo para a televisão. Falecia em Nova Iorque, três anos depois. 

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quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Károly Makk

Os dias de glória do cinema húngaro tiveram lugar a partir de meados da década de sessenta, até finais da década de setenta, principalmente por causa da relativa liberalização do regime comunista, liderado por um apoiante dos soviéticos, János Kádár. Károly Makk estava entre os principais realizadores daquele período, a par de nomes como  Miklós Jancsó, Márta Mészáros, István Szabó, Zoltán Fábri e István Gaál, cujos filmes começaram a ser cada vez mais vistos e aclamados no Ocidente.
Por causa de problemas com a censura, durante o regime anterior, que eram considerados marionetas estalinistas, Makk, que fazia filmes desde 1955, teve de esperar até 1971 para conseguir reconhecimento internacional, numa obra intitulada, simplesmente, "Amor". Este filme, esquisitamente forjado sobre o amor, a falsidade (política e pessoal) e a ilusão, ganhou o prémio do Júri no Festival de Cannes, e menções especiais para as actrizes Darvas e Törőcsik guiando o realizador para uma carreira bastante eclética, que incluía uma nomeação ao Óscar de melhor filme em língua estrangeira com "Cat’s Play" (1974), mas seria com "Another Way" (1982), que atingiria o seu píncaro, uma história sobre um romance lésbico que foi em primeira instância nomeado pela Hungria para a representar nos Óscares, sendo depois a sua candidatura retirada por ordens de Kádár.
Makk nasceu na pequena cidade de Berettyóújfalu,, no leste da Hungria, onde o seu pai, Kálmán, era proprietário de um cinema, dando ao filho hipóteses de ver muitos filmes. Os pais, que tal como muitos húngaros perderam o seu negócio depois do país cair sob o domínio soviético. Ele inicialmente pretendia tornar-se engenheiro, uma profissão que era comum à sua família do lado da mãe. Em vez disso entrou para a indústria cinematográfica nacionalizada, onde trabalhou desde argumentista a realizador.
Károly Makk faleceu no passado dia 30 de Agosto, com 91 anos, e, nos próximos dias vamos aqui prestar-lhe homenagem, com a exibição de alguns filmes, entre os quais os mais importantes. Serão 6 filmes, já a partir de amanhã.


quarta-feira, 6 de setembro de 2017

A Ilha dos Mortos (Survival of the Dead) 2009

Na Ilha Plum, localizada na costa marítima norte-americana, vivem duas famílias que travam uma briga histórica. De um lado está o patriarca Capitão Patrick O'Flynn (Kenneth Welsh), que deseja acabar com os zombies, e do outro lado está Seamus Muldoon (Richard Fitzpatrick), que faz de tudo para não deixar ninguém exterminar os seus parentes mortos-vivos antes deles se curarem. 
Era o sexto filme de zombies de George A. Romero, e o segundo desde a tentativa de fazer um reboot à série, ao estilo de Blair Witch Project, com "Diary of the Dead", que não foi muito bem recebido, mesmo pelos seus fãs mais acérrimos. As boas notícias eram que "Survival of the Dead" não era um filme tão desapontante como "Diary of the Dead", apesar de não ser um regresso à forma do realizador. Felizmente o método de câmara na mão, na primeira pessoa, foi abandonado, a favor de uma narrativa mais convencional, mas o argumento era a prova aparente de que Romero já tinha dito tudo o que havia a dizer no sub-género "zombie". O realizador ainda não estava convencido disso, porque depois deste filme, e antes da sua morte, já tinha anunciado mais duas continuações, sendo que a primeira está já em andamento, chamada "Road of the Dead", com um novo realizador a substituir Romero.
É possível que a história e o filme tenham ambição dentro das restrições da série b, e do cinema de baixo orçamento em geral, mas desde "Land of the Dead" que Romero decidira voltar ás suas raízes indie. Á sua sabedoria sobre o assunto adiciona um elemento que pode ser visto como intrigante ou questionável, mas neste filme isso não afecta a história. 
Concorreu para o Leão de Ouro em Veneza. 

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terça-feira, 5 de setembro de 2017

Diário dos Mortos (Diary of the Dead) 2007

Um grupo de estudantes de cinema passam a registar com as suas câmaras, no meio do caos, o que acontece quando os zombies passam a inexplicavelmente tomar conta do mundo. Ao mesmo tempo, também acompanham pela internet, através de vídeos e relatos em blogs, como a situação aterroriza o planeta. Um deles fica especialmente obcecado com o registo, colocando em perigo a sua vida para gravar este acontecimento.
Mesmo antes de estrear "Land of the Dead", Romero queria fazer um filme sobre os "média emergentes". Depois de Land estrear, que ele sentiu que ficava "grande" em scope, ele queria voltar a fazer um filme com um orçamento reduzido, e sentiu que a ideia dos "media emergentes" se podia aplicar neste caso. Mesmo com o filme a ser filmado num estilo "cinema verité", Romero preferiu usar um director de fotografia, em oposição de deixar os actores filmarem por eles mesmos. Preferiu assim por causa das falhas que tinha visto em filmes como "The Blair Witch Project", que considerou ser um filme vertiginoso demais.
É o quinto filme na série de Zombies de Romero e há algumas referências notáveis aos filmes anteriores da série, mas não é nenhuma sequela directa a nenhum deles. Segundo Romero, é uma "rejeição ao mito". A acção ocorre simultaneamente com os eventos de "Night of the Living Dead". Isto foi parcialmente baseado numa preocupação prática, pois Romero pensou que se o filme se passasse muito longe do apocalipse zombie, as escolas estariam fechadas e, portanto, não fazia sentido ter os jovens estudantes como ponto focal. Foi também inspirado no livro "Book of the Dead", uma antologia de contos passada no mesmo período de tempo.

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domingo, 3 de setembro de 2017

Terra dos Mortos (Land of the Dead) 2005

O Mundo em que vivemos já não existe. É apenas uma lembrança na memória dos poucos seres humanos sobreviventes que são obrigados a lutar contra os zombies. Os humanos estão isolados numa pequena cidade, enquanto os mortos vivos povoam o resto do mundo. Os ricos tentam manter a ilusão de que ainda moram num mundo normal vivendo em torres. Os restantes mortais são obrigados a viver nas ruas, entregando-se a vícios como jogos, prostituição e drogas. No entanto, para manter estes padrões de vida, tanto ricos como pobres são obrigados a confiar em mercenários que de vez em quando saem da cidade em busca de produtos para comercializar e satisfazer os humanos. Liderados por Kaufman (Dennis Hoper), Ridley (Simon Baker) e Cholo (John Leguizamo) são dois desses mercenários que arriscam as suas vidas em troca de pagamento, eles sonham em juntar dinheiro e fugir para um mundo melhor... Se é que ele existe. Enquanto isso, o exército de mortos-vivos vai-se fortalecendo,vão ficando cada vez mais inteligentes.
"Land of the Dead" é o quarto filme da série de Zombies de George A. Romero, que tinha começado em 1968 com "Night of the Living Dead", que tão bem encapsulava o medo da era do Vietname, e de um país que estava a comer as pessoas vivas. Cada filme era um espelho da era em que foi feito, e "Land of the Dead" não fugia à regra, sendo uma visão de pesadelo da obsessão da era Regan com o armamento militar. "Land of the Dead" continua com as mesmas preocupações ideológicas dessa era, mas é, inequivocamente, um produto pós 9/11 e os consequentes males do terrorismo. Não é por acaso que o personagem no poder declara algo parecido com Bush: "Não negociamos com terroristas", enquanto outro ameaça desencadear a sua própria versão de uma "jihad". Os zombies lentamente a tomar conta do mundo podem personificar os estrangeiros sem rosto que vão chegando aos Estados Unidos, e o verdadeiro vilão é homem de negócios que tenta tirar proveito da situação para si próprio. 
Os zombies neste filme estão a tornar-se numa ameaça maior porque estão a ficar mais inteligentes. Começaram a desenvolver uma comunicação rudimentar, e a descobrir como usar objectos contundentes, depois ferramentas, e por fim, armas de ataque. Assustadoramente, num certo sentido, estão a tornar-se mais como nós. Tal como "Dawn of the Dead" e "Day of the Dead", "Land of the Dead" encoraja fortemente a reconstruir aquilo que foi perdido, o que é fundamental nas preocupações ideológicas de Romero. Afinal, a mensagem global de toda a série é de como os mesmos poderes dinâmicos são sempre replicados numa sociedade que toma conta da outra. 
Foi um regresso de Romero em força aos zombies, 20 anos depois do filme anterior. 

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O Rosto da Vingança (Bruiser) 2000

Henry trabalha para uma famosa revista de moda chamada "Bruiser". Ele só quer ser aceite, mas a sua fraca personalidade e timidez fazem dele um alvo fácil para todas as pessoas, incluindo o melhor amigo que lhe está a roubar a esposa infiel, o patrão cruel e até mesmo a empregada doméstica. Henry mantém-se calado e segue sempre as regras. Até que um dia ele acorda sem rosto. Todos os anos de submissão custaram-lhe a única coisa que não pode ser substituída: a sua identidade. Ele transformou-se num espaço em branco, um fantasma anónimo sem feições. É quando a sua ira explode, libertando toda a raiva e desespero acumulado dentro dele. 
O mais desapontante em "Bruiser" é que George A. Romero esteve tempo demais sem filmar, passaram sete anos desde o filme anterior, que já tinha sido uma desilusão para muita gente, e depois deste regresso seria de esperar algo mais cuidadoso, servido com mais entusiasmo e energia. "Bruiser" tenta funcionar tanto como sátira social e como filme de terror, mas acaba por não funcionar da melhor forma em nenhum dos mundos. 
Ainda assim é um filme tenso, com uma excelente interpretação de Peter Stormare, bem melhor que a do protagonista Jason Fleming, que nunca consegue conquistar o espectador. Depois deste filme, Romero estaria parado mais cinco anos, e percebeu que teria de voltar aos mortos-vivos. Regressaria então, para mais uma trilogia dos "...of the Dead". Este é um filme a descobrir, pelos fãs de Romero que ainda não o conhecem.

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sexta-feira, 1 de setembro de 2017

A Face Oculta (The Dark Half) 1993

Um escritor tem um pseudónimo literário com o qual escreve violentos livros de crime. Thad é um jovem que ao ser operado para tirar um tumor do cérebro descobre ter na cabeça o cérebro de um possível irmão gémeo, que nunca se desenvolveu. Anos mais tarde, Thad é um escritor de sucesso, mas também produz literatura barata sob o pseudónimo de Geroge Stark. No entanto, quando é ameaçado por alguém que descobriu o seu segredo, ele "enterra" George Stark. A partir dessa altura, ele torna-se o principal suspeito de uma série de assassinatos chocantes.
"The Dark Half" quase que pode ser considerado o filme esquecido de George A. Romero. Não faz parte da sua famosa série dos mortos-vivos, nem faz parte da série dos seus filmes mais baratos, como "Martin", "Knightriders", ou "The Crazies". Tal como "Creepshow" é uma colaboração com Stephen King, e uma tentativa de entrar no mundo do cinema mainstream, infelizmente falhada, apesar do filme ter algumas qualidades.  Romero a adaptar muito fielmente um romance de Stephen King sobre a dualidade da personalidade, ou, de forma mais melodramática, a besta dentro de nós. 
Para ajudar a tentativa de entrar no mainstream, temos um elenco bastante competente, com alguns actores de créditos firmados (Timothy Hutton, Amy Madigan, Michael Rooker, Julie Harris - três deles já tinham sido nomeados para os Óscares), mas algo falhou na tentativa de comunicar com o público. Hoje em dia ainda divide muitos os fãs do realizador, havendo uma minoria que aprecia bastante o filme.

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