sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Introdução a “Música de Acompanhamento para uma Cena de Cinema” (Einleitung zu Arnold Schoenbergs Begleitmusik zu einer Lichtspielscene) 1973

Esta curta metragem de pouco mais de quinze minutos parte de uma partitura escrita por Arnold Schoenberg para um filme imaginário sobre o tema «Perigo Ameaçador Angústia Catástrofe» e faz parte de um conjunto de curtas metragens sobre compositores encomendada pelo canal de televisão da República Federal Alemã, Süd-West-Funk. A sua estrutura consiste numa pequena introdução (a cores) feita por Jean-Marie Straub a Schoenberg, à peça em si e a sua relação de amizade com Kandinsky, a que se segue (a preto e branco) a leitura de uma carta que o compositor enviou ao pintor; na segunda parte, Danièle Huillet faz uma pequena introdução ao discurso de Brecht no Congresso Internacional de Escritores em Defesa da Cultura em 1935, a que se segue a leitura de excertos do mesmo, mantendo-se a mesma ordem de relação entre a cor e o preto e branco; na parte final (e de novo a preto e branco) desfilam imagens de guerra, particularmente de bombardeamentos. A música da partitura une todos os segmentos.
A longa carta de Schoenberg a Kandinsky tem como pretexto o convite que o pintor lhe endereçou para leccionar na Bauhaus e que foi recusado. Schoenberg é um dos mais revolucionários compositores de todo o século XX e a admiração e amizade entre os dois era mútua. Schoenberg, austríaco residente em Viena era judeu e na sua obra está presente abundantemente a sua origem. As razões para a sua recusa em aceitar o convite prendem-se com a onda crescente de antissemitismo que varria a Alemanha nos anos 20 e que teria o seu triste apogeu na década seguinte. Schoenberg denuncia a escalada de Hitler e dos seus apaniguados e da tentativa de fazer dos judeus o bode expiatório da terrível situação vivida no país após a I Guerra Mundial. Esta situação de perseguição e de ódio racial está aliás muito bem documentada em filmes como Berlin Alexanderplatz de Fassbinder ou O Ovo da Serpente de Bergman. Para o compositor a consequência foi o exílio na década seguinte quando os nazis entraram na Áustria. O que é curioso é que extra-musicalmente, Schoenberg não era conhecido por ser um homem particularmente empenhado do ponto de vista político nem ser conotado com ideias de esquerda. Ficou célebre o seu misticismo e o seu carácter supersticioso do qual se contam inúmeros episódios. É certo que as suas composições dodecafónicas e atonais foram consideradas arte degenerada pelo nazismo e o seu percurso acabou por ser similar ao de outro vienense judeu seu contemporâneo, Freud, também ele acusado de ser um defensor de teorias degeneradas. Mas, possivelmente a falta de enquadramento político adequado na crítica ao nazismo levou a que o referido discurso de Brecht tenha sido incluído no filme. A tese central de Brecht, remete para a visão marxista sobre o fascismo, ou seja, de que o fascismo é o recurso de que a burguesia se serve para travar a revolução dos trabalhadores. Assim, enquanto o capitalismo se mantiver, o perigo do fascismo (a ditadura terrorista do capital financeiro) é real. Logo a luta contra o fascismo enquanto regime político é indissociável da luta contra o capitalismo enquanto sistema económico que o viabiliza. Se isto é verdade na década de 30 com regimes fascistas implantados na Alemanha, em Itália, em vários países da Europa central em Portugal e em Espanha depois da Guerra Civil), não deixa de o ser em 1972 quando o filme foi realizado e mais ainda nos dias de hoje, por razões facilmente compreensíveis a quem esteja atento ao mundo que o rodeia. 
Straub considerava Schoenberg o mais importante compositor alemão desde Bach e expressou a sua admiração por ele não só neste filme, como no seguinte, Moisés e Aarão baseado numa sua ópera que ficou incompleta. Os realizadores expressam também a sua admiração por Brecht a quem recorreriam com frequência ao longo da sua obra. Por todas as razões expostas, esta Introdução a «Música de Acompanhamento para uma Cena de Cinema» parece ainda mais actual quase cinquenta anos depois do que quando foi realizado, tendo em conta a forma como os novos fascismos vão surgindo um pouco por todo o lado.
* texto de Jorge Saraiva

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quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Lições de História (Geschichtsunterricht) 1972

No conjunto da vasta obra de Brecht, Os Negócios do Senhor Júlio César ocupa um papel singular. Trata-se de um romance que ficou inacabado, escrito na Dinamarca, precisamente quando o dramaturgo se encontrava exilado, meia década depois de Hitler ter chegado ao poder. O romance só foi publicado postumamente e não é, obviamente, uma das suas obras mais conhecidas. Mas foi a partir deste texto que Straub e Huillet fizeram uma nova incursão na história da Roma clássica.

Quando estava a ver o filme, lembrei-me de um célebre poema de Brecht que, em boa parte, sintetiza de forma admirável a concepção materialista da história e que se aplica muito a este texto.

«Quem construiu Tebas, a das sete portas? 
Nos livros vem o nome dos reis, 
Mas foram os reis que transportaram as pedras? 
Babilónia, tantas vezes destruída, 
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas 
Da Lima Dourada moravam seus obreiros? 
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde 
Foram os seus pedreiros? A grande Roma 
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem 
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio 
Só tinha palácios 
Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida 
Na noite em que o mar a engoliu 
Viu afogados gritar por seus escravos. 

O jovem Alexandre conquistou as Índias 
Sozinho? 
César venceu os gauleses. 
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço? 
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha 
Chorou. E ninguém mais? 
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos 
Quem mais a ganhou? 

Em cada página uma vitória. 
Quem cozinhava os festins? 
Em cada década um grande homem. 
Quem pagava as despesas? 

Tantas histórias 
Quantas perguntas» 

O romance analisa com alguma minúcia e um estilo incisivo e irónico, a ascensão de Júlio César e a forma como atingiu, expandiu e consolidou o seu poder imperial. Nas próprias palavras de Brecht, «Júlio César foi o primeiro político que tratava os homens de negócios espanhóis não como espanhóis, mas como homens de negócios». Estamos ainda longe do capitalismo moderno, mas já aqui o dinheiro e o pragmatismo a que ele sempre se associa, tende a substituir as ideologias convencionais. Júlio César entendeu-o de forma admirável na sua ascensão ao poder. Os negócios de classe estão acima de tudo e são eles que determinam a escravatura, as opções políticas e as guerras. Aparece-nos assim o mais célebre imperador romano completamente despojado da aura mítica com que uma certa história o quis vestir. É um homem que provém de uma família abastada romana que pertencia ao partido democrata, supostamente para defender os mais pobres da cidade, mas que se moveu sempre por uma descomunal ambição de conquista, que, aliás, viria a materializar. Por isso, estamos em presença de uma figura hábil, oportunista e sem escrúpulos, mestre na arte da manipulação dos descontentamentos populares, que posteriormente aproveita para satisfazer os seus interesses pessoais. O romance apresenta-nos quatro depoimentos sucessivos de um banqueiro, um camponês-soldado, um jurista e um escritor que vão narrando as suas visões de Júlio César e as suas vivências com o imperador. Os depoimentos são prestados a um jovem investigador do século XX contrastando o facto de cada um deles (os que depõem e o que investiga) vestirem as roupas das respectivas épocas. Entre os depoimentos, existem longos planos do investigador a conduzir o seu carro no tortuoso e congestionado trânsito romano da década de 70. Este aspecto, particularmente enigmático e desconcertante, remete-nos para a ideia que já tinha sido expressa em Othon de que os acontecimentos históricos não se podem nem devem confinar ao passado, antes se reproduzem noutras épocas, frequentemente com uma actualidade surpreendente. 
No 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx afirmou que a história se repete sempre pelo menos duas vezes: a primeira como tragédia, a segunda como comédia. Na ambição desmedida pelo poder, na manipulação sem escrúpulos, no oportunismo e militarismo, Júlio César poderá ser facilmente comparado a qualquer ditador moderno, particularmente a Hitler que estava no seu apogeu no final da década de 30. É a este contínuo histórico que Straub e Huillet recorrem em grande parte dos seus filmes para ilustrar a forma como acontecimentos e personalidades históricas se reproduzem no presente. Ainda recentemente o professor Fernando Rosas alertou para o facto das semelhanças existentes entre a ascensão actual da extrema direita um pouco por todo o lado e o trágico avanço do fascismo nas décadas de 20 e 30 do século passado. É a este contínuo histórico, a estas Lições de História, que Brecht primeiro e Straub e Huillet depois, recorrem de forma exemplar e com o brilhantismo habitual reservado à genialidade. 
* Texto de Jorge Saraiva

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terça-feira, 8 de agosto de 2023

Othon (Les yeux ne veulent pas en tout temps se fermer, ou Peut-être qu'un jour Rome se permettra de choisir à son tour) 1970

Othon é o primeiro filme a cores de Straub e Huillet (que desta vez também assina a realização) e a sua segunda longa metragem. Em muitos aspectos é também a sua primeira obra em que aparecem de forma vincada algumas das características da sua obra posterior: o tom vincadamente teatral e o mergulho no mundo clássico a que regressariam frequentemente, desta vez, através da adaptação da tragédia de Pierre Corneille (1606-1684), Othon, uma das suas obras mais tardias e menos conhecidas. Straub dedicou o filme a todos os falantes da língua francesa que não tiveram o privilégio de conhecer a obra de Corneille, propondo que desta forma o escritor tivesse uma audiência mais larga. O verdadeiro título do filme é Les Yeux ne veulent pas en tout temps se fermer, ou Peut-être qu'un jour Rome se permettra de choisir à son tour, dois versos da tragédia, embora tivesse sido o nome da própria tragédia que tivesse prevalecido.
A tragédia original de Corneille situa-se no período do Império Romano, mais precisamente no ano 69 D.C. Galba o imperador romano aproxima-se do fim da sua vida e hesita na escolha do seu sucessor, ao mesmo tempo que se vão sucedendo jogadas de bastidores entre aqueles que o influenciam no sentido de se perfilarem de forma mais favorável para a sua sucessão. Um dos mais temerários é Othon, que não sendo um dos favoritos de Galba, é, no entanto, um dos mais hábeis na arte de manipular as peças que lhe permitam aceder ao poder. Embora se esteja ainda naquilo que se convencionou chamar de apogeu do Império Romano, os sinais de deterioração começam a notar-se, ainda que de forma não facilmente perceptível. A forma de Straub e Huillet transporem a tragédia para o cinema é absolutamente radical. Em momento algum podemos dizer que estamos na presença de uma adaptação romanesca que é comum relativamente às obras literárias. O que a dupla de cineastas faz (e voltaria a repeti-lo variadas vezes ao longo da sua carreira) é pôr os actores a recitar o texto na íntegra. A tarefa é árdua, uma vez que a tragédia é composta por versos alexandrinos, extremamente trabalhados, quer na sua forma gramatical, quer na sua forma fonética. O resultado é estarmos na presença de um filme feito de palavras. Os momentos de silêncio são raros, os monólogos frequentemente sobrepõem-se aos diálogos, embora nunca exista a sensação de que estes não existam. As personagens «conversam» umas com as outras, mas nunca se interrompem. Os movimentos dos actores são escassos, muitas vezes aparecem de forma inopinada na tela sem se fazerem anunciar, os planos são longos e quase sempre focados nos rostos dos actores. Estes, como se tornará num hábito nos filmes da dupla, são amadores e muitos deles nem têm o francês como primeira língua, o que gera uma notável confusão de sotaques. Othon foi filmado no Monte Palatino e na vila Doria-Pamphilj a partir de uma autorização conseguida junto do município romano por Alberto Moravia e Laura Betti a quem o filme é dedicado, para além do próprio Corneille. E embora os actores estejam vestidos com trajes da época, o enquadramento de fundo é o da Roma actual, com os seus edifícios modernos e o seu fluxo constante de tráfego automóvel. Parece que o propósito é bem claro: Othon une três épocas distintas, ou seja, o período do Império Romano em que a acção decorre, o século XVII em que foi escrito e o final da década de 60 do século XX em que foi filmado. Tratando-se de uma tragédia de cariz essencialmente político, o seu conteúdo transcende tempos e lugares. A luta desenfreada pelo poder, a manipulação através de jogos de bastidores, a ambição desmedida, a exploração de sentimentos alheios para benefício pessoal, não são apanágio de uma determinada época, antes atravessam todas como se fossem uma marca indelével da sociedade de classes. 
Este universalismo da mensagem sobre uma clique da classe dominante e dos seus jogos de poder é profundamente pedagógica. Straub achava que o filme poderia ser exibido nas fábricas e que seria facilmente compreendido pela classe operária e ajudá-la na sua tarefa de transformação da sociedade. Descontando os excessos revolucionários próprios da época e de que os cineastas (felizmente!) nunca se afastaram, percebe-se que a escolha da tragédia de Corneille não foi arbitrária, uma vez que ela tem uma vitalidade enorme que pode ser perfeitamente transposta para a actualidade.
Legendas em inglês.
* texto de Jorge Saraiva

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