sexta-feira, 28 de julho de 2023

 Estou outra vez sem computador, que vai ter de ser formatado, por isso para a próxima semana voltamos aos posts.



sábado, 22 de julho de 2023

A Pequena Crónica de Ana Madalena Bach (Chronik der Anna Magdalena Bach) 1968

A primeira longa metragem de Huillet e Straub foi um projecto alimentado e consolidado ao longo de dez anos até poder ser finalmente concretizado. A dupla tinha um conjunto de ideias precisas e não abdicava da sua materialização no filme o que implicava custos elevados. Para isso foram necessárias árduas demandas para que tudo pudesse ficar como tinha sido idealizado. 
O projecto era fazer uma biografia semi-ficcional sobre Bach a partir dos relatos da sua segunda mulher, Anna Magdalena Bach. Este retrato autobiográfico não abrange a totalidade da vida do compositor, mas apenas o período posterior ao seu casamento. Aliás o filme não se centra em aspectos peculiares da sua vida a qual, ao que parece, não foi especialmente entusiasmante, Os relatos, feitos em voz neutra, revelam-nos as constantes deambulações do compositor para ganhar a vida, oferecendo os seus préstimos ou sendo solicitado pelos diversos nobres que governavam as diferentes regiões da Alemanha quer em encomendas musicais, quer em locais e condições de leccionação ou de outros empregos. As palavras não são muitas e os diálogos são quase inexistentes. Sobra então uma apresentação tão extensa quanto possível da genialidade de Bach, sendo as palavras proveitosamente substituídas pela música, pelo que não será descabido dizermos que estamos em presença de um filme musical. São excertos (na maioria muito pequenos) de vinte e cinco obras suas, preferencialmente tocadas por instrumentos da época e com trajes e em espaços da primeira metade do século XVIII. O rigor chega ao ponto de apresentar partituras da época escritas pelo próprio Bach. No tom de sobriedade e rigor que caracterizará toda a sua filmografia posterior, não é de estranhar que a generalidade dos actores sejam músicos com destaque para o notável cravista e maestro Gustav Leonhardt. 
Visto à distância de meio século, este ainda é hoje considerado o filme mais emblemático de Huillet e Straub, provavelmente o seu mais conhecido e popular. Alguns dos mais indefectíveis seguidores consideram-no um filme menor, acusando-o de convencionalismo. Na minha opinião, não têm razão. O filme é muito simples, com uma estrutura narrativa (se é que ela existe) linear e sem aquelas ambiguidades argumentativas típicas dos seus filmes posteriores e que dão azo a reflexões e opiniões frequentemente desencontradas. No entanto, se pensarmos de como as abordagens biográficas são feitas no cinema mainstream e a compararmos coma Crónica de Anna Magdalena Bach, percebemos a imensidão que as separa. Quando analisamos, por exemplo a biografia de Mozart feita por Milos Forman (para nos atermos estritamente a grandes compositores musicais) percebemos a diferença entre a exterioridade e a interioridade. Enquanto espectadores, vemos Amadeus como um filme sobre um compositor da segunda metade do século XVIII, mas, em bom rigor, nunca saímos, enquanto espectadores, do final do século XX. Em contrapartida, em Anna Magdalena Bach, a perspectiva que nos é dada pelos realizadores e que se transmite a quem vê o filme, é um mergulho completo na época que retrata. Não apenas entramos no universo da música de Bach. Agora também fazemos parte dele.
* texto de Jorge Saraiva

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segunda-feira, 17 de julho de 2023

O Noivo, a Actriz e o Proxeneta (Der Bräutigam, die Komödiantin und der Zuhälter) 1968

São menos de vinte e três minutos que marcam uma rara incursão de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet numa história de amor. Na mesma curta metragem surgem condensados a adaptação da peça de Ferdinand Brückner, Krankheit der Jugend de 1928, misturada com três poemas do poeta espanhol do século XVI Juan de la Cruz e com passagens musicais do Ascension Oratório de Bach.
Apesar da sua curta duração é um dos filmes mais complexos da dupla e o primeiro em que se sente a mistura, frequentemente surpreendente, mas nunca aleatória, de referências artísticas muitos diversificadas. Basicamente é composto por três partes distintas: numa primeira parte, sem palavras, acompanhamos um longo travelling nocturno sobre as ruas de Munique e os seus bairros de prostituição; a segunda é filmada num longo take de 11 minutos dentro de uma única divisão de uma casa e onde se sucedem os diálogos e as personagens a uma velocidade vertiginosa, quase numa mínima representação teatral em que as diversas cenas são separadas por breves momentos em que o ecrã fica negro; e uma terceira parte mais rápida e fluida que corresponde ao casamento da actriz e ao desenrolar da cena final que conduz ao assassinato do proxeneta. Nas palavras do próprio Straub, O Noivo, a Actriz e o Proxeneta é um olhar sobre a decadência da civilização ocidental. A complexa estrutura narrativa não ofusca um argumento particularmente simples: uma mulher mantida na prostituição de rua que só enriquece um proxeneta sem escrúpulos, apaixona-se por um homem e através do casamento entre ambos, vê a hipótese de abandonar o tipo de vida que já não quer manter. O proxeneta tenta retaliar e impedir que os seus lucros desapareçam e acaba por ser baleado na parte final do filme. Mas, mais importante do que uma sinopse do argumento, interessa particularmente a forma como o mesmo é apresentado e que já acima foi referido e as ilações que dele podem ser extraídas. Não é exagerado dizer-se que todos os filmes de Straub e Huillet, independentemente do seu conteúdo, devem ser submetidos a uma leitura política radical, aliás de acordo com as convicções ideológicas dos cineastas. A situação de aviltamento a que a mulher é sujeita forçada a prostituir-se e a ser explorada por um proxeneta, é uma metáfora óbvia à degradação do sistema económico capitalista e às situações de humilhação e desigualdade a que os mais pobres são sujeitos; mas o facto da mulher ser capaz de encontrar uma forma de se libertar, é uma metáfora sem ambiguidades à destruição do próprio sistema e à possibilidade da construção de um mundo novo, tal como a mulher foi capaz de o fazer na sua vida particular. Este acto de libertação prolonga de forma coerente o filme anterior, Não Reconciliados e o seu subtítulo: Ou Só A Violência Ajuda Onde A Violência Reina. A revolução é a única forma de pôr fim à decadência da civilização ocidental. O que é notável, é que a obra posterior de Straub e Huillet demonstrou que não estamos perante um revolucionarismo circunstancial do final da década de 60 e das chamas provocadas pelo Maio de 68. A obra posterior espalhada por várias décadas, demonstra que a opção ideológica e estética nunca foi renegada. 
Realizado no mesmo ano que Crónica de Ana Magdalena Bach, O Noivo, a Actriz e o Proxeneta não é um filme menor apesar da sua curta duração.  Hanna Schygulla e Rainer Werner Fassbinder, ainda longe do protagonismo que alcançariam posteriormente no cinema alemão, são dois dos actores constantes do elenco, naquele que segundo o texto da Cinemateca é o mais comovente de todos os filmes de Straub e Huillet.
Legendas em inglês.
Texto de Jorge Saraiva.

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sexta-feira, 14 de julho de 2023

Não Reconciliados (Nicht versöhnt oder Es hilft nur Gewalt, wo Gewalt herrscht) 1965

O segundo filme de Straub e Huilet volta a ter uma duração pouco convencional (cerca de 50 minutos) e baseia-se, tal como Machorka-Muff, num romance de Heinrich Boll. Embora a realização seja apenas creditada a Jean-Marie Straub, mais uma vez se pode falar de um trabalho feito em dupla, embora só a partir da década seguinte, oficialmente a direcção dos filmes fosse assinada por ambos. Recebeu o subtítulo Ou Só A Violência Ajuda Onde A Violência Reina (citando uma frase de Brecht) e foi estreado extra-concurso no Festival de Berlim de 1965 onde provocou uma forte celeuma.
Nas palavras de Straub trata-se de uma espécie de filme-oratório que narra «a história de uma frustração, a frustração da violência, a frustração de um povo que falhou a sua revolução de 1848 e que não conseguiu livrar-se do fascismo.» Nas suas palavras houve a pretensão de tentar eliminar, tanto quanto possível, qualquer conotação histórica imediata. Ao longo dos cinquenta minutos de duração, encontramos uma narrativa fragmentada, polvilhada por um sem número de personagens onde o tempo é frequentemente ludibriado, como se a sequência narrativa não fosse realmente o mais importante. Ou seja, não há em Não Reconciliados uma vontade deliberada de contar uma história, mas apenas de encontrar um fio condutor que passe pelas acções e desenvolvimento do pensamento político das diversas personagens. Não é por acaso que na pesquisa que fiz para a elaboração deste texto, vi sinopses muito variadas, algumas das quais se parecem estar a referir a filmes completamente distintos. Por isso, mais do que procurar elaborar uma síntese sobre o seu conteúdo, interessa primordialmente tentar responder a esta questão: afinal o que fica do que passa? O que poderemos encontrar como denominador comum? A resposta não é inteiramente óbvia, mas poderá ser encontrada nas explicações iniciais do próprio Straub e que surge constantemente reflectida na obra literária de Boll. Se, grosso modo, há aqui três gerações de uma mesma família que se estende entre as décadas de 10 e o início dos anos 60 do século passado que tem como denominador comum a arquitectura, o dado paradoxal é que no serviço militar a sua função é exactamente oposta, isto é a destruição de edifícios em actos de guerra. Assim os mesmos que projectam a construção de edifícios são os responsáveis pela sua própria destruição. Uma das personagens fornece uma explicação relativamente detalhada sobre o «campo de tiro» utilizado durante a guerra. Para explodir uma ponte seria necessário fazer igualmente explodir uma igreja se tal fosse necessário, desde que esta se encontrasse no referido campo de tiro. 
Esta ancoragem na dialéctica dos contrários na expressão hegeliana (a tese-antítese-síntese aqui representada pela metáfora construção-destruição-nova construção) parece encerrar em si mesma toda a tragédia da Alemanha de meados do século XIX até quase ao final do século XX. O mesmo país que produziu o mais importante pensamento filosófico da modernidade, que fez revoluções em 1848 e em 1918 (ambas falhadas) foi o mesmo que provocou duas guerras mundiais e que germinou o horror nazi que perdurou muito para além do período em que Hitler esteve no poder. Tudo se pode sintetizar numa abadia que se constrói, destrói e reconstrói, como se a vertigem pela utopia desabasse no pesadelo do abismo. Nesse sentido, Não Reconciliados é um filme alemão como poucos, porque coloca um país e um povo perante o seu passado até ele se transformar em presente. E por isso é duro até o osso ficar totalmente descarnado. 
Texto de Jorge Saraiva. 

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terça-feira, 11 de julho de 2023

Machorka-Muff (Machorka-Muff) 1963

O primeiro filme de Jean-Marie Straub e Danièlle Huillet, Machorka-Muff, é uma curta metragem de cerca de dezassete minutos e que foi realizada em 1963. Embora estejamos a falar de dois cineastas franceses, o filme pode considerar-se como uma das primeiras obras da nova vaga do cinema alemão, cujo manifesto de intenções tinha sido apresentado em Oberhausen no ano anterior. Straub tinha-se exilado na República Federal da Alemanha para evitar ser mobilizado para a guerra da Argélia e foi em território germânico que fez a sua estreia na realização.
O filme basear-se-ia num conto curto do escritor Heinrich Boll a quem a dupla voltaria com Não Reconciliados de 1965 e de quem também outro ilustre par do cinema alemão, Volker Schlöndorff e Margarethe Von Trotta adaptariam, doze anos depois, o livro a Honra Perdida de Katharine Blumm. Se Boll foi sempre um escritor incómodo para o poder que se constitui na Alemanha, pela denúncia aos constantes atropelos à democracia e pelo encobrimento do passado nazi de muitas figuras proeminentes da política e dos negócios deste país, Machorka-Muff é, a este respeito, absolutamente exemplar. Um coronel alemão desloca-se a Bona para receber as insígnias de general. Um homem de extrema-direita, militarista e insensível que está disposto a salvar a reputação de um seu antecessor e herói que foi derrotado em Schwichi-Schwalache durante a II Guerra Mundial e que acabou os seus dias em França, segundo Machorka-Muff, vítima de uma tremenda injustiça. A insistência do coronel baseia-se num argumento que nos parecerá quase macabro: não morreram oito mil homens nessa batalha, mas mais de catorze mil, o que, supostamente provaria o heroísmo do referido general. Ao mesmo tempo acompanhamos a sua vida privada e, mais importante, as suas reflexões políticas que mostram que o seu apego à democracia é mínimo («a oposição não conta porque nós é que temos a maioria») aquilo a que Straub chamou uma «história de violação» a propósito desta curta metragem. 
Se do ponto de vista formal, ainda estamos longe dos longos planos, da comunhão com a natureza e do artificialismo recitativo das personagens dos seus filmes posteriores, o que se torna verdadeiramente relevante, é o conteúdo acerado e certeiro de Machorka-Muff. Dezassete minutos chegam para cumprir as duas premissas essenciais do Manifesto de Oberhausen: não esquecer o nazismo e denunciar os atropelos aos direitos civis de uma democracia limitada. Palco privilegiado de uma luta ideológica sem quartel que se desencadeou com a Guerra Fria, o poder das duas Alemanhas (aqui não há inocentes, nem de um lado, nem do outro) descobriu que os nazis podiam ser reciclados para a democracia, mesmo sem serem democratas) aproveitando a sua experiência de poder e de impiedade. Essa é a principal ilação desta curta-metragem, um princípio de ajuste de contas com o passado que afinal se prolonga no presente. Reitz, Kluge, Fassbinder e Schlöndorff, entre outros, fizeram-no de forma admirável: um país que pelo cinema ajusta contas com o seu passado e a forma como ele condiciona o presente. Mas Straub e Huillet fizeram-no antes de todos.
Legendas em inglês.
Texto de Jorge Saraiva.

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domingo, 9 de julho de 2023

Straub & Huillet - Introdução por Jorge Saraiva

10 COISAS QUE EU APRENDI SOBRE CINEMA DEPOIS DE TER VISTO OS FILMES DE DANIÈLE HUILLET E JEAN-MARIE STRAUB 

Já não sei bem se fui eu que lancei este desafio ao Chico, ou se foi uma proposta sua: fazer um ciclo integral sobre a cinematografia de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub e escrever os respectivos textos. Eu já tinha previamente escrito os textos que acompanharam as retrospectivas de Alain Resnais, de Douglas Sirk e Michael Powell e Emeric Pressburger. Mas havia uma diferença significativa. Dos cineastas em causa eu conhecia a grande maioria dos seus filmes. De Straub e Huillet tinha visto quatro ou cinco longas metragens e nenhuma curta. O facto de ter gostado imenso de todos os filmes que tinha visto deles funcionou para mim como um impulso irresistível para conhecer os restantes de uma forma sistematizada.
Os 27 textos que vão acompanhar esta primeira parte do ciclo (a que se situa entre a primeira curta metragem de 1963 e a morte de Danièle Huillet em 2006) foram escritos por alguém que não percebe nada de cinema em termos técnicos. Nunca frequentei nenhuma escola, nunca participei na elaboração de um filme, nem sei como é que se faz. Aquilo que vão ler é apenas a perspectiva de um espectador, que viu milhares de filmes na vida e que através deles foi formando o seu próprio gosto.
O processo de elaboração destes textos foi simples e comum. Ao visionamento dos filmes seguia-se a fase do atordoamento maravilhado. Maravilhado porque os achei a praticamente todos absolutamente excepcionais; atordoado porque eles são tão diferentes de tudo o que vi, que transportar ideias e sentimentos para as palavras adequadas nem sempre era uma tarefa fácil. A paralisia da escrita era quebrada por alguma pesquisa e reflexão e, frequentemente, o voltar atrás para rever alguns momentos. O que vão ler, repito, não são grandes dissertações teóricas sobre o cinema de Straub e Huillet (façanha de que eu aliás não seria capaz), mas apenas as impressões de uma pessoa que gosta de cinema e dos filmes deles em particular. Gostaria de vos deixar de forma muito sintetizada 10 ideias fortes sobre a generalidade da sua obra e que serão desenvolvidos ao longo dos respectivos textos:


1) O Cinema é uma Arma 

Desde 1963 que Straub e Huillet fizeram do seu cinema uma clara opção política e ideológica. Essa opção está para lá da transitoriedade dos acontecimentos imediatos e das querelas ideológicas mais mesquinhas. O seu cinema está claramente do lado da denúncia das injustiças de uma sociedade dividida em classes e na vontade da sua transformação revolucionária. Nenhum dos seus filmes, mesmo aqueles que aparentemente parecem estar mais distantes desta intenção, se afasta deste propósito.

2) Toda a Revolução É um Lance de Dados 

A Revolução não é uma declaração de intenções nem um dogma assente em pretensas verdades irrefutáveis. A revolução é essencialmente uma forma de estar e de ser, mas não uma cartilha desenhada a régua e esquadro. Nas a radicalidade da transformação não é apenas política, mas também estética. Não faz sentido existirem grandes proclamações ideológicas, quando as mesmas são servidas por formas artísticas conservadoras e conformistas.

3) Lições de História 

Com Straub e Huillet viajamos livremente pelo passado. Pela Grécia e pelo Império Romano; pela Revolução Francesa e pela Comuna de Paris. No mesmo filme misturam-se épocas distintas para lhes encontrar um laço comum. A História não se repete de forma factual, mas quando Brecht escreve sobre Júlio César estava a pensar em Hitler. Não é uma circularidade histórica no sentido literal do termo, mas a percepção que a sociedade de classes, independentemente das circunstâncias e respectivos protagonistas, é geradora de opressão, de injustiça e de exploração.


4) Quem Faz e Quem Vê 

O cinema de Straub e Huillet não tem nenhum tipo de filtros. Não há nenhuma artificialidade, nem nenhuma tentativa de embelezar o produto. Não há efeitos especiais (excepto se eles forem absolutamente necessários), nem nenhuma pós produção áudio, ou a coloração química artificial. Há assim uma total ausência de mediação entre aquilo que é feito originalmente e aquilo que os espectadores têm oportunidade de ver. Poder-se-ia dizer que há neles uma visão marxista da forma de fazer cinema em que não existe nenhum privilégio de quem faz relativamente a quem vê, nenhum truque escondido nenhum mecanismo de pós-produção que leve o espectador a interrogar-se como é que as coisas foram feitas. Tudo é claro e transparente.

5) Formatos e Tamanhos Diversificados 

Ao longo de 40 anos e de 27 filmes entre 1963 e 2006, Straub e Huillet não privilegiaram nenhum tipo de cinema em relação a outro. Trabalharam com obras de ficção e com documentários. Fizeram filmes sobre óperas de Schöenberg e peças de Brecht, um ensaio de Franco Fortini e a correspondência entre Cézanne e Gasquet. Os seus filmes rompem com a tradicional distinção entre a ficção e o documentário colocando-se num terreno estimulantemente inclassificável. Fizeram longas, médias e curtas metragens. Estas, por vezes não ultrapassando os dez minutos de duração, são tão relevantes como o resto dos seus filmes.

6) Respeitar as Obras de Arte 

O conceito de adaptação raramente existe na obra cinematográfica de Straub e de Huillet. Os quadros de Cézanne ou aqueles a que ele se refere existentes no Louvre são mostrados na sua totalidade devidamente pendurados e emoldurados; as óperas de Schöenberg são filmadas na íntegra e no caso de Moisés e Aarão o que se ouve no filme é o mesmo que foi publicado em disco. As tragédias de Sófocles ou de Corneille são apresentadas na íntegra sem mutilações nem adaptações, ou seja, sem «arredondamentos» para a linguagem cinematográfica de forma a tornar obra pretensamente mais apelativa

7) Perfeição e simplicidade 

Nada é deixado ao acaso nos filmes de Straub e Huillet desde os locais das filmagens, quase sempre paisagens naturais, até ao trabalho de direcção de actores. Estes normalmente são não profissionais. O trabalho a que eram sujeitos revelava-se frequentemente exaustivo com centenas de repetições e gravações que se prolongavam por vários meses até se encontrar o ritmo e o tom adequados. Existem numerosos ângulos e perspectivas de filmagens e o trabalho de montagem é meticuloso e frequentemente com variantes que vieram a ser aproveitados para curtas metragens. O resultado de todo este labor é um produto extremamente simples o que, no entanto, nunca deve ser confundido com quaisquer tipos de facillitismos.

8) Música, Palavras e Silêncio 

Em Othon, os versos alexandrinos de Corneille, são, em si mesmos, uma linguagem musical. Straub e Huillet utilizaram a sua língua francesa materna, mas também o alemão e, mais tarde, o italiano, ao longo dos seus filmes. O prazer do texto é também o prazer da língua, o respeito pela sua musicalidade intrínseca das palavras como se elas fossem (e são!) uma linguagem paralela que se harmoniza perfeitamente com o silêncio. Sobretudo nos filmes iniciais, há longos espaços de silêncio em que a câmara se detém em longos planos fixos ou deambula por paisagens naturais mostradas sem explicações. O diálogo entre as palavras e o silêncio é um dos aspectos mais fascinantes do cinema de Straub e de Huillet.

9) Um Cinema Conceptual Que Não Procura Efeitos Fáceis 

Não há em nenhum dos filmes de Straub e de Huillet nenhum argumento original, provavelmente com a excepção da curta metragem de dez minutos, Europa 2005, 27 de Outubro. Os cineastas partem sempre de um texto escrito, literário ou musical e eles são de origens e épocas muito diversificadas. Mas não se trata de uma adaptação para a linguagem cinematográfica no sentido comum do termo. Trata-se de um diálogo e um confronto com o próprio texto. Em nenhum momento se procura transformar as ideias principais de uma obra para a transformarem no argumento de um filme. Por exemplo em Antígona de Sófocles estamos em presença de um acto de filmar a tragédia na sua essência, onde não existe nenhum momento de distracção das palavras. Não há efeitos fáceis em nenhum momento da sua obra.

10) Um Lugar Que Só Neles Existe 

Este é um cinema que só neles existe. Straub considera-se um herdeiro da tradição do cinema clássico, num percurso que vai de Von Stroheim a Dreyer, passando por Ford, Renoir e Fritz Lang. Mas a obra que nos vão deixando (Straub continua a fazer curtas metragens) é radicalmente diferente de tudo o que existe, uma espécie de continente isolado na história do cinema. E que verdadeiramente não é comparável ao de ninguém, embora exerça um enorme fascínio na obra de outros cineastas que se inspiram na sua austeridade rigorosa, na sua autenticidade radical e no seu brilhantismo, para criarem os seus próprios percursos.

É com esta fantástica introdução, da autoria do Jorge Saraiva, que vamos dar o início a um dos ciclos mais aguardados dos últimos tempos. Venham daí, e sigam tudo pelos textos que irão ser acompanhados nos próximos dias, acompanhados pelos filmes. Até já.


sexta-feira, 7 de julho de 2023

Regresso

 Bom, peço desculpas por esta longa ausência, mas tenho estado com o PC avariado (sem som) e sem muito tempo para o arranjar. 
Faz este mês um ano que faleceu o professor Jorge Saraiva, colaborador durante muito tempo deste blog, para o qual escreveu textos em vários ciclos e colaborou em várias iniciativas. Chegou-me hoje uma proposta da Inês Esteves, que em homenagem ao Jorge podia reactivar os links do ciclo de Straub e Huillet. Achei uma ideia fantástica, e a partir do próximo Domingo vou fazer isso mesmo, e re-publicar os filmes do ciclo, com os textos do Jorge e os links dos filmes, um por um, talvez de dois em dois dias. 
Espero que esteja tudo bem convosco. Vamos ao ataque.