segunda-feira, 1 de maio de 2017

Os Amantes de Salzburgo (Interlude) 1957

Interlude, (Os Amantes de Salzburgo, mais um incompreensível baptismo em português), marca o regresso de Douglas Sirk à Alemanha, onde não trabalhava desde que resolveu fugir para os EUA. No conjunto dos grandes melodramas da segunda metade da década de 50, este é o menos conhecido e que raramente é citado entre as suas obras primas. Durante décadas quase nem entrava nas contas dos filmes de Sirk. Havia apenas algumas referências e mesmo a Wikipedia limita-se a referências ligeiras, ao contrário dos seus grandes melodramas da época, que são alvo de abundante informação. 
O crítico do New Yorker, Richard Brody, chama-lhe uma obra prima escondida (hidden masterwork) e tem absoluta razão. O filme adapta de forma muito livre o livro Serenade de James McCain e é praticamente todo filmado em Munique, excepto uma curta, mas significativa, incursão em Salzburgo. Do ponto de vista visual e de realização é o filme mais belo de Sirk, com excepção de Escrito No Vento. É também o único melodrama desta fase em que os temas sociais e uma possível leitura política, se encontram totalmente ausentes. Mas esteticamente é um filme absolutamente primoroso e o trabalho de realização, contidamente emotivo, está entre os melhores que Sirk fez. Ao regressar à Alemanha, filma a música como nunca tinha feito anteriormente, nalguns casos em planos longos, o que era raro ver no cinema da época. Vemos assim desfilar excertos de obras de Schumann, Wagner, Brahms e Mozart. Ou seja, quase que se aproveita o filme, para evocar a cultura alemã e austríaca, neste caso, através da sua vertente musical. O argumento foi entendido pelo referido crítico, como uma espécie de declaração de amor ao seu país, subitamente interrompido pela ascensão de Hitler ao poder e que nunca poderá ser retomado da mesma forma. Por isso a forma desencantada com que o filme termina. O amor pode ficar, mas nunca poderá ser concretizado quando esbarra com princípios morais inultrapassáveis. Talvez essa sensação de amargura e de frustração tenha contribuído para a pouca aceitação de Interlude. Aqui não há nenhum happy end, como era tão comum nos filmes da época. O amor entre um maestro famoso e uma jovem anónima americana que vai trabalhar para a delegação cultural do seu país em Munique, nunca se poderá concretizar. Não se trata, como noutros filmes de realçar as diferenças sociais e de formas de vida do par. Nesse sentido, Interlude surge na perspectiva quase calvinista (curiosamente numa região onde impera o catolicismo) de sacrifício pela renúncia. Tudo parece aproximar os dois amantes, apesar do tom desdenhoso da parte dele no início do filme (o artista famoso que é importunado pela incógnita funcionária americana) e das reservas dela (como é que alguém tão famoso se pode apaixonar por mim). Mas se ela tem de lidar com um compatriota médico por si apaixonado e que lhe propõe casamento e o regresso à América, ele tem que lidar com uma esposa à beira da loucura e que depende dele em exclusivo. Este dilema da existência de uma esposa que não se pode abandonar e que remete a fama para a solidão e a descoberta de um novo amor, vamos encontrando situações de avanço e recuo e a transformação das personagens como é típico do cinema de Sirk. A cena chave do filme, primorosa e poderosamente filmada, em que a amante salva a esposa de se suicidar por afogamento, coloca o ponto final em todos os devaneios. Afinal e parafraseando o título de um dos mais famosos filmes de Fassbinder (um dos seus mais indefectíveis admiradores) se o amor é mais frio do que a morte, a moral e o sentido de dever (como Kant o postulou) é mais forte do que o amor. Daí, nesta polaridade de oposições, o espírito prevalece sobre os sentidos, a moral deontológica impera sobre a liberdade, se esta não for entendida como uma submissão a uma conduta do Bem e do dever. Por isso, fica a renúncia e o desencanto com que o filme termina e a brusca separação dos dois amantes. A efemeridade do amor, o trânsito e a fragilidade das relações afectivas são a nota que dá corpo a esse desencanto. Sobrevive apenas a ambiguidade da memória. Woody Allen (outro admirador de Sirk) resumiu-o de forma magistral na cena final da sua obra prima, Uma Outra Mulher: não sei se uma recordação é alguma coisa que se tem ou uma coisa que se perdeu. 
Interlude é uma obra prima, um dos melhores filmes de Douglas Sirk. Só por ele, valia a pena fazer este ciclo. 
* Texto de Jorge Saraiva.

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