quinta-feira, 30 de abril de 2020

40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera: "Mest" de Yermek Shinarbayev

O Jornal do Fundão, os Encontros Cinematográficos, o Lucky Star – Cineclube de Braga, o My Two Thousand Movies e a Comuna associaram-se nestes tempos surreais e conturbados convidando quarenta personalidades, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos para escolherem um filme inserido no ciclo “40 dias, 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera”, partilhado em segurança nos ecrãs dos computadores de vossa casa através do blog My Two Thousand Movies. O trigésimo convidado é o crítico de cinema Carlos Natálio, que escolheu este raro filme e se justificou do modo escrito abaixo.

Sinopse: Revenge é um filme soviético de 1989, dirigido por Ermek Shinarbaev e escrito por Anatoli Kim. Foi exibido na seção Un Certain Regard no Festival de Cannes de 1991. O filme foi restaurado em 2010 pela World Cinema Foundation no Laboratório Cineteca di Bologna / L'Immagine Ritrovata e lançado como Revenge. 

Carlos Natálio: "A primeira imagem de “Mest” [“Vingança”, 1989] do cazaque Yermek Shinarbayev é o rosto de uma tartaruga que avança, lentamente, para a câmara. Ouvimos um respirar ou uma espécie de suspiro. Virá do animal? Nunca o saberemos. Instantes depois e vemos um soberano da Dinastia coreana Joseon que pergunta ao seu conselheiro porque se move ela (a tartaruga) sempre na mesma direcção. Vai na direcção do mar, de onde provém. O filme acabará no mar, também. E no entremeio há uma história de uma vingança que mais do que servir-se fria, servir-se-á apurada, destilada pelo destino, como se fosse sendo entregue a prestações, como o lento caminhar resiliente da tartaruga. Mas isto registei apenas agora, com o cuidado de um olhar mais pesado. A primeira vez que vi o filme (já não recordo exactamente quando e em que circunstâncias; teria sido na televisão ou já na internet?; no cinema não foi, isso sei) só fiquei com duas coisas. O brilho e um menino sentado.
 O brilho é fácil de explicar. Desde as primeiras imagens que percebemos que esta é uma obra onde a luz do dia explode nos planos. As pessoas desaparecem na luz intensa do dia, o sol a despejar os seus raios do cimo de uma montanha, o trajecto por um corredor que a manhã faz atravessar pela claridade ou a fluorescência que vem como canhão de cada uma das janelas do exterior para o interior. Em concreto lembrava a foice iluminada - recordemos a queda do bloco soviético, o início da independência do Cazaquistão, não mais do que um par de anos depois da estreia do filme - que é o objecto do crime que dá origem à semente do ódio e da vingança. É uma cena de ouro, literalmente, um ouro que encandeia. Encandeia o julgamento, não sabemos porque o professor resolve matar uma das alunas, e encandeia o espaço, com blocos de luz no dourado das palhas do celeiro, que mais parecem objectos sem substância. Uma espécie de sonho terrível que vai-se a ver e acaba mesmo por ser a realidade. Se este é um filme que passa por várias épocas e espaços - o prólogo no século XVII, a Coreia e depois a China de 1915, a ilha Sacalina, nos anos 30 e 40, ilustrando a convulsão histórica que aquela zona teve entre domínio e influências russas, japonesas, chinesas e subjugação coreana - o mesmo acontece com esse brilho. À medida que a vingança parece aproximar-se da sua substância, os reflexos, as cores vão escurecendo, raiando de sangue e dourado, como se o filme fosse fazendo osmose com o crepúsculo e a tragédia sombria.  
E depois havia esse menino sentado. Durante muito tempo ali estava, inerte. A mãe ia construir-lhe uma protecção de palha para o abrigar da chuva e do sol. O seu pai não tinha conseguido vingar a morte da sua meia-irmã e este engravida, sob sugestão da sua esposa já velha, uma mulher mais nova. O intuito parece simples e maquiavélico: ter um filho que se destine a ter como propósito de vida realizar os desejos vingativos do pai. Esses planos do menino sentado têm um poder existencial e político. Por um lado, pode alguém crescer à espera de crescer? Inerte, num estado de hibernação até poder cumprir o seu desígnio? Por outro lado, e isso vem no filme de Shinarbayev desde o prólogo, as pessoas e as tartarugas têm missões e enquanto não as cumprem habitam a elipse ou, quando muito, a espera. Ou as duas. Algo que parece trazer nas suas linhas e contra linhas um modelo de cooperação social.
Finalmente, este é também um filme sobre a poesia. Ou mais em concreto um filme acerca da tentativa da fuga da poesia, da sua vontade em desentranhar-se da injustiça e da crueldade. Como no prólogo vemos, com um poeta do reino a pedir para sair da corte, ao não conseguir lidar com a execução de um lutador que se deixou ganhar pelo príncipe como sinal da sua submissão e foi por isso castigado. Diz o poeta ao soberano: «a injustiça não é um terreno fértil para a poesia». Mas que poesia poderá haver na vingança? A passagem do tempo parece dizer-nos que com ele tudo passa, e que a poesia ganhará ao sangue derramado. Mas este belo filme da nova vaga cazaque, disseminado que é pelo tempo, pelos espaços, pelas épocas, converte a vingança em ironia do destino. Não apaga a vingança, apenas a subjuga a uma enorme roda da vida. Talvez por isso seja fácil de perceber uma ideia que pessoas que se debruçaram sobre este filme sublinham: a humildade que perpassa na nova vaga cazaque, a colectividade de todo o processo criativo, a pouca relevância de um centramento na figura do autor. Ou como diz o poeta: «não existe verdade a ser encontrada que se esconda por detrás da palavra “eu”»."

Legendas em inglês

Amanhã, a escolha de Inês Sapeta Dias 

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quarta-feira, 29 de abril de 2020

40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera: “O Cavalo de Turim”, de Béla Tarr

O Jornal do Fundão, os Encontros Cinematográficos, o Lucky Star – Cineclube de Braga, o My Two Thousand Movies e a Comuna associaram-se nestes tempos surreais e conturbados convidando quarenta personalidades, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos para escolherem um filme inserido no ciclo “40 dias, 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera”, partilhado em segurança nos ecrãs dos computadores de vossa casa através do blog My Two Thousand Movies. O vigésimo nono convidado é a montadora e professora Cristina Amaral, que escolheu O CAVALO DE TURIM de Béla Tarr. Sobre esta obra final do realizador Hungaro escreveu-no o texto abaixo.

Sinopse: Turim, 3 de Janeiro de 1889. O filósofo Friedrich Nietzsche sai de casa. Ali perto um camponês luta com a teimosia do seu cavalo, que se recusa a obedecer. O homem perde a paciência e começa a chicotear o animal. Nietzsche aproxima-se e tenta impedir a brutalidade dos golpes com o seu próprio corpo. Naquele momento perde os sentidos e é levado para casa onde permanece em silêncio por dois dias. A partir daquele trágico evento Nietzsche nunca mais recuperará a razão, ficando aos cuidados da sua mãe e irmãs até ao dia da sua morte, a 25 de Agosto de 1900. Partindo deste evento, o filme tenta recriar o percurso do camponês, da sua filha, do velho cavalo doente e a sua existência miserável.

Cristina Amaral sobre O Cavalo de Turim: 

«O CAVALO DE TURIM – Béla Tarr 

Um cinema raro, com escrita própria, com um tempo particular. Rigoroso, milimetricamente encenado. E, por todos esses motivos, muito arriscado, o que o faz escapar da monotonia e da previsão. 
Eu me lembro de quando assisti O CAVALO DE TURIM pela primeira vez. 
Deixou-me atordoada. É um filme que nos coloca frente a frente com um fim de mundo real, sombrio, muito próximo de nós – não mais o da ficção científica, não mais o dos blockbusters, ou dos disaster movies. 
Austero desde os créditos e o texto inicial. O preto e branco – presente em praticamente toda a sua filmografia (dos que conheço apenas o OUTSIDER é colorido) completa esse mundo onde não há espaço para dispersão. Aqui, a música é palavra, e o vento é música. 
Os longos planos-sequência revelam também uma montagem bela e inteligente, a partir de seus movimentos de câmera e enquadramentos primorosos. E cada corte, é uma cortina que se abre para esse mundo interiorizado, monossilábico, e que roda em círculos. E, também mérito dessa mise en scène, não soa repetitivo. 
“Mãe, eu sou um tolo.” 
Descrito em off, o pranto de Nietzsche, abraçado ao cavalo é, com certeza o ato mais humano dentro do filme – é o sofrimento da poesia diante da dureza e da estupidez. 
Além disso, apenas um fiapo de vida para nos apoiar, que é passagem dos ciganos pela casa, rápida, fugaz, mas transgressora. E agressiva também. O resto é uma morte que se deixa acontecer. 
O CAVALO DE TURIM é quase premonitório desses tempos que vivemos agora, em que estamos confinados, onde a doença e a morte são os perigos que nos rondam de perto, à espreita do lado de fora das nossas casas. 
É visionário, preciso, rigoroso. Traz dor, beleza, e a vida escapando com o vento inexorável. A natureza não nos perdoa. 
Um cinema que nos obriga a repensar o mundo, nossa forma de viver, e a buscar urgentemente uma nova humanidade.»

Amanhã, a escolha de Carlos Natálio.

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terça-feira, 28 de abril de 2020

40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera: “Pouco a Pouco”, de Jean Rouch

O Jornal do Fundão, os Encontros Cinematográficos, o Lucky Star – Cineclube de Braga, o My Two Thousand Movies e a Comuna associaram-se nestes tempos surreais e conturbados convidando quarenta personalidades, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos para escolherem um filme inserido no ciclo “40 dias, 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera”, partilhado em segurança nos ecrãs dos computadores de vossa casa através do blog My Two Thousand Movies. O vigésimo oitavo convidado é a montadora Patricia Saramago, que escolheu Pouco a Pouco de Jean Rouch, justificando-se assim: «O orgulho do Sul do mundo. Para vermos de maneira diferente coisas a que estamos demasiado habituados.»

Sinopse: PETIT À PETIT é um exemplo extremo da noção de “antropologia compartilhada”, que foi tão cara a Rouch. Retomando ao seu modo a ideia das clássicas Lettres Persanes, de Montesquieu, Rouch conta a história de um habitante do Níger, cuja empresa vai construir o primeiro prédio de Niamey e vem a Paris ver como vivem as pessoas nas “casas de andares”. Isto é pretexto para uma divertida excursão de antropologia invertida, em que o africano observa com surpresa os estranhos hábitos dos parisienses, numa crítica implícita ao modo como os antropólogos franceses estudam os seus compatriotas. O filme também é um retrato dos espíritos da Paris dos primeiros anos do período pós-68.

Em 1968, quando se estava a preparar para rodar Petit à Petit, Jean Rouch escreveu aos Cahiers du Cinéma que “o filme vai ser improvisado durante a rodagem, naturalmente. O que se segue, são as grandes linhas da história, desenvolvida com os intérpretes ao longo de passeios pela África negra, e com o “herói”, Damouré Zika, durante a sua primeira estadia em Paris. 
“Tudo começa portanto nesta pequena aldeia do Níger, Ayorou, onde vivem os três inseparáveis: Illo, o pescador, Lam, o pastor, Damouré, o «galante». Depois de terem sido iniciados às regras elementares do comércio, como vimos em Jaguar, criaram eles próprios uma sociedade anónima, comissionada para vender os peixes deles, o gado, e vários outros produtos. Essa sociedade chama-se «Pouco a pouco», em memória da loja onde fizeram a sua aprendizagem no Gana, «Pouco a pouco, o pássaro faz o seu chapéu», o que significava que, pouco a pouco, o pássaro conseguia adquirir o turbante do chefe.” 
Legendas em inglês

Amanhã, a escolha de Cristina Amaral.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera: “O Castelo Branco”, de Johan van der Keuken

O Jornal do Fundão, os Encontros Cinematográficos, o Lucky Star – Cineclube de Braga, o My Two Thousand Movies e a Comuna associaram-se nestes tempos surreais e conturbados convidando quarenta personalidades, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos para escolherem um filme inserido no ciclo “40 dias, 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera”, partilhado em segurança nos ecrãs dos computadores de vossa casa através do blog My Two Thousand Movies. O vigésimo sétimo convidado é o realizador belga Mieriën Coppens, que escolheu O Castelo Branco de Johan van der Keuken.


Sinopse: Misturando imagens da meca do turismo espanhol, Formentera, de um centro comunitário em Columbus, Ohio, e de fábricas na Holanda, o filme ilustra nitidamente as vidas fragmentadas e alienadas que a economia de mercado produz e retrata friamente o que Van der Keuken viu como ‘uma correia transportadora [que] atravessa o mundo’. 

Van Keuken disse em entrevista a Bérénice Reynaud que «o aspecto simbólico do meu trabalho nem sempre é percebido pelo espectador. Eu passo por símbolos para voltar a uma percepção mais intensa, mais descritiva e talvez mais difícil do Real. Há uma multiplicidade de níveis, porque eu não me posso colocar num nível puramente materialista. O aspecto material/materialista das coisas é como uma ferramenta para perceber o que está a acontecer no mundo. Também há um aspecto especulativo, que não posso recusar totalmente, mesmo que não deva fazer “demais” com isso, e mantê-lo sempre na sua justa perspectiva. Ao mesmo tempo, fico muito ansioso, bem, com a perfeição, i.e., gostava de ser capaz de mostrar algo com clareza absoluta. No entanto, estou perfeitamente ciente de que sou um cineasta a trabalhar com a aproximação... Sim, pode-se dizer que há um elemento lúdico no meu trabalho, que o cinema é um “brinquedo de construção” para mim, mas, ao mesmo tempo, há coisas que são tão reais e tão poderosas que não podem ser dominadas. Daí entrarmos no reino da aproximação. Não posso aceitar o plano angular perfeito de campo/contra-campo como a “verdade” de um filme. Há uma parte de mim que desespera por nunca ser capaz de “dizer a coisa certa.”» 

Mieriën Coppens deixou-nos o seguinte poema: 

“Local de convalescença, perto da água. 
Isolado, um chão. 
Tantos motivos. 
Tantos laços mútuos. 
O quadro ilegível. 
O futuro.” 



Nota: o filme não tem legendas, mas também não tem muitos diálogos.


Amanhã, a escolha de Patrícia Saramago. 

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domingo, 26 de abril de 2020

40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera: “Cidade nas Trevas”, de Fritz Lang

O Jornal do Fundão, os Encontros Cinematográficos, o Lucky Star – Cineclube de Braga, o My Two Thousand Movies e a Comuna associaram-se nestes tempos surreais e conturbados convidando quarenta personalidades, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos para escolherem um filme inserido no ciclo “40 dias, 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera”, partilhado em segurança nos ecrãs dos computadores de vossa casa através do blog My Two Thousand Movies. O vigésimo sexto convidado é o realizador, actor e encenador Jorge Silva Melo, que escolheu Cidade nas Trevas de Fritz Lang, dizendo-nos que “precisamos de uma imprensa livre, precisamos de si, não podemos viver nesta corrupção, neste mundo sem luz. Para Lang tudo era tremendo - e ameaçador o final que parece feliz. Temos de ouvir Puccini logo a seguir: nessun dorma!

Sinopse: Outro dos filmes favoritos de Lang. Adaptação de um romance de Charles Einstein que, por sua vez, teve como uma das inspiração o filme de Lang "Man Hunt". Lang retoma o tema do assassino "compulsivo" que desenvolvera em M, mas coloca-o no centro da disputa pela direcção de um jornal por um grupo de candidatos.

No seu Dicionário do Cinema, Jacques Lourcelles diz-nos que é o “penúltimo filme americano de Lang. Um dos pontos mais altos da sua carreira; na nossa opinião, o seu melhor filme. Baseado num romance, mas sobretudo baseado em relatos de notícias variadas recortadas de jornais e que ele tinha o hábito – mantido até ao fim da sua vida, embora já não trabalhasse mais - de coleccionar, Lang escreveu o guião minuciosamente com Casey Robinson e será um dos mais sofisticados da sua carreira. A preparação não menos minuciosa da rodagem e que permitiu manter, sendo o orçamento do filme bastante razoável, os intérpretes prestigiosos reunidos no conjunto (George Sanders, Ida Lupino, Thomas Mitchell, Rhonda Fleming, etc) só quatro ou cinco dias cada um, quando temos a impressão de os ver presentes ao longo de toda a intriga. (Só a Dana Andrews foi concedido um número de dias ligeiramente superior.) A ambição do filme é imensa, a perfeição do seu estilo, cujos elementos desdenham dar nas vistas, sóbria e eficaz. Lang quer dar a ver um panorama bastante vasto da sociedade americana, fundada aos seus olhos na competição e no crime. Como a competição e o crime se tornaram indissoluvelmente ligados, é este o seu tema, a partir do qual surgem as características do seu estilo, obedecendo todas a uma estética da necessidade que nenhum outro cineasta levou tão longe. Criador solitário e exigente, Lang não está totalmente à parte da corrente americana mais inovadora. While the City Sleeps integra e até interioriza de alguma maneira a revolução trazida no ano anterior ao relato policial por Kiss Me Deadly. Doravante já não há bons nem maus nos enredos. A ferocidade da competição trouxe todas as personalidades ao mesmo nível, o grau zero da moral e da consideração pelos outros. Se examinarmos à lupa (é o que faz o filme) o comportamento de cada uma das personagens envolvidas na acção, vemos ou que eles não têm ideia nenhuma do que lhes poderia servir de moral, ou então – e ainda é pior – que eles sacrificam à sua ambição quaisquer escrúpulos que pudessem ter, comportamento considerado como normal na sociedade em que estão inseridas. A partir daí, o criminoso que os jornalistas procuram com tanto ardor para conseguir um cargo torna-se não só a sua presa, mas também o seu reflexo. Às vezes é mais digno de piedade do que eles. Lang leva aqui a um grau de perfeição absoluta a sua arte das ligações necessárias ou mesmo fatais entre as sequências. Seja por um elemento de diálogo, por um elemento visual, por uma personagem ou pelo efeito de uma causa dramática específica, as sequências encadeiam-se umas às outras a um ritmo e a uma progressão lógica que parece obedecer a alguma fatalidade, que na verdade não é senão a consequência das acções cruzadas de cada um dos protagonistas ocupados em suplantar, a usar ou a destruir o próximo – grande teia de aranha onde por fim todos se encontram presos. Requinte supremo da mise en scène: aquelas divisórias de vidro que, dentro dos escritórios do jornal, separam as personagens permitindo-as verem-se umas às outras e dão à história a possibilidade de executar várias sequências frontais, ligadas numa interacção permanente. Este entrelaçado magistral é visto na luz soberba de uma chapa metálica rasgada a bisturi. Depois de muitos avatares e metamorfoses, redesenhados através da experiência e do estilo de um cineasta meticuloso e genial, o microcosmos expressionista reaparece aqui – talvez pela última vez – lavado de todas as suas histórias, dotado de uma pureza expressiva cuja abstracção e concentração fascinam. É um pequeno pedaço de inferno onde as criaturas estão ocupadas, achando-se livres e activas, sob o olhar de um cineasta que não procura outra coisa senão ver bem e dar bem a ver a realidade, mas mantendo o ponto de vista de Sirius sobre todas as coisas.”

Amanhã, a escolha de Mieriën Coppens.

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A partir de Junho



O CINEMA ESPANHOL NO TEMPO DE FRANCO

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sábado, 25 de abril de 2020

40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera: “Moisés e Aarão”, de Straub/Huillet

O Jornal do Fundão, os Encontros Cinematográficos, o Lucky Star – Cineclube de Braga, o My Two Thousand Movies e a Comuna associaram-se nestes tempos surreais e conturbados convidando quarenta personalidades, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos para escolherem um filme inserido no ciclo “40 dias, 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera”, partilhado em segurança nos ecrãs dos computadores de vossa casa através do blog My Two Thousand Movies. O vigésimo quinto convidado é Carlos Fernandes, que escolheu Moisés e Aarão de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub.

Sinopse: “Schoenberg é o músico que melhor conhecemos a seguir a Bach”, segundo diz Straub. Na sua adaptação da ópera bíblica inacabada do compositor vienense, Straub e Huillet mantiveram-se fieis aos princípios do seu cinema: som directo, cantores ao invés de actores dobrados, “imagens que não bloqueiem a imaginação do espectador”, numa atitude diametralmente oposta à do tradicional “filme de ópera”.

Carlos Fernandes escreve-nos este texto: 
“O sonho de um mundo novo. O “Êxodo” de Schoenberg segundo Straub-Huillet. 
Schoenberg iniciou a escrita do libreto desta ópera quando já se expectava a possibilidade de um novo “Êxodo” na Europa. A partir 1920 as manifestações anti-semitas eram tão descaradas que ele próprio, unicamente por ser judeu, foi obrigado a abandonar o hotel onde vivia numa pequena aldeia perto de Salzburgo. 
Afundado nesse presente, o compositor e libretista mergulha nos fundamentos de uma história tão remota, quanto transcendental, transportando-a para a contemporaneidade na estrutura de um texto excepcionalmente vinculado a uma partitura matematicamente pura – o serialismo dos 12 tons. 
Embora incompleta, esta ópera, foi simultaneamente a obra-prima do século XX para uns e uma coisa inacabada para outros. Mas para Straub e Huillet estava lá o material rigoroso e necessário que lhes permitiu ver nesta ópera um filme. 
E Jean-Marie Straub e Danièle Huillet fizeram uma vez mais um trabalho magnífico. 
Trabalharam no guião entre 1959 e 70, e filmaram entre 73 e 74 no deserto de Louxor, no vale do Nilo e no anfiteatro italiano Alba Fucens, com som directo sob fundo da Orquestra de Viena pré-gravada. 
Tiveram um cuidado extremo com todos os aspectos que pudessem dramatizar deliberadamente a história, construindo um trabalho de câmara com movimentos rigorosos e planos formais em contraponto visual à complexa partitura de Schoenberg. 
A magnitude da abordagem no conflito entre a espiritualidade interior de Moisés e a capacidade de Aarão de comunicar com as massas (a primeira dupla liderança da história), bem como a proeza dos “milagres necessários” que Aarão concebe para convencer o povo a seguir Moisés até a terra prometida, são configurações dignas de reverência. 
Por fim, a fidelidade ao texto e a tudo – o terceiro acto, que tinha ficado por escrever, surge como um recital sublime apoiado em notas do próprio Schoenberg. 
O combate à opressão e o sonho de um mundo novo. 
É importante que as coisas mexam.”

Amanhã, a escolha de Jorge Silva Melo.

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sexta-feira, 24 de abril de 2020

40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera: "Holiday", de George Cuckor

O Jornal do Fundão, os Encontros Cinematográficos, o Lucky Star – Cineclube de Braga, o My Two Thousand Movies e a Comuna associaram-se nestes tempos surreais e conturbados convidando quarenta personalidades, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos para escolherem um filme inserido no ciclo “40 dias, 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera”, partilhado em segurança nos ecrãs dos computadores de vossa casa através do blog My Two Thousand Movies. O vigésimo quarto convidado é o crítico de cinema brasileiro Giovanni Comodo, que escolheu Holiday de George Cukor.

Sinopse: O livre-pensador Johnny Case fica noivo de Julia Seton, filha do milionário Ned Seton. Mas entra em choque com a noiva e com o pai dela quando expõe a sua forma livre de viver e ao negar-se a trabalhar, embora queira continuar a ganhar dinheiro. Só é compreendido pela irmã da noiva, Linda Seton, que é considerada a ovelha-negra da família.

No início da sua folha da Cinemateca sobre o filme, Bénard da Costa escreve que “Holiday assenta em quatro poderosos pilares, todos eles reutilizados por Cukor no célebre The Philadelphia Story de 1940: na base, uma peça teatral de Philip Barry, célebre boulevardier dos anos 20, 30 e 40; adaptação de Donald Ogden Stewart, argumentista favorito de Cukor e que, com ele, havia colaborado já em Tarnished Lady e Dinner at Eight, e colaboraria, no futuro, em The Women, The Philadelphia Story, A Woman's Face, Keeper of the Flame e Edward My Son, antes de ser posto na lista negra do Senador McCarthy; Katharine Hepburn e Cary Grant. E foi o quarto filme de Katharine com Cukor (depois de A Bill of Divorcement, Little Women e Sylvia Scarlett) e o terceiro filme dela com Cary Grant (depois de Sylvia Scarlett e de Bringing Up Baby de Howard Hawks).” 
Justificando a sua escolha, Giovanni Comodo escreveu-nos que “a comédia de George Cukor traz em estado de graça a dupla Cary Grant (Johnny) e Katharine Hepburn (Linda). Cukor, sempre elegante, sempre discreto, faz do filme uma enorme oportunidade para observar o movimento dos corpos de Grant e Hepburn no espaço: como andam, como se atraem, como respiram próximos um do outro. Grant em estado burlesco, com cambalhotas mil, e Hepburn em pura classe e incendiária. Para além disso, há piadas incessantes do choque de Johnny e seus amigos com a alta roda nova-iorquina. Um filme que não caminha, desliza. Por fim, é difícil pensar em algo melhor para estes tempos do que ficar trancado por um par de horas em um quarto com Grant e Hepburn.” 

Amanhã, a escolha de Carlos Fernandes. 

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quinta-feira, 23 de abril de 2020

40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera: "A Árvore dos Tamancos" , de Ermanno Olmi

O Jornal do Fundão, os Encontros Cinematográficos, o Lucky Star – Cineclube de Braga, o My Two Thousand Movies e a Comuna associaram-se nestes tempos surreais e conturbados convidando quarenta personalidades, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos para escolherem um filme inserido no ciclo “40 dias, 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera”, partilhado em segurança nos ecrãs dos computadores de vossa casa através do blog My Two Thousand Movies. O vigésimo terceiro convidado é o realizador Billy Woodberry, que escolheu A Árvore dos Tamancos de Ermanno Olmi.

Sinopse: "A Árvore dos Tamancos" foi o filme de Ermanno Olmi premiado com a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes que trouxe a consagração do realizador italiano. É um filme quase documental, onde são recuperadas características do neo-realismo como a utilização de actores amadores e se faz uma exploração crua mas intensamente poética da realidade. O filme conta a vida de quatro famílias italianas de camponeses no final do século XIX. Vêm da Lombardia, trabalham numa exploração agrícola na região de Bergamo e vivem uma vida comunitária. Todos ajudam sempre que surgem dificuldades como aconteceu no caso de Gopa, um vagabundo que acolheram, ou no nascimento do bebé de Batisti. No entanto, um dia Batisti abate um olmo para fazer uns tamancos para o filho e fica mal visto na comunidade que o acolhia.

O cineasta norte-americano disse-nos que «as minhas razões para escolher A Árvore dos Tamancos, de Ermanno Olmi foram bastante simples. Na altura em que me estenderam o convite para seleccionar um filme para a série, as taxas mais altas de hospitalizações, infecções e morte estavam a acontecer no norte de Itália, na região da Lombardia e em Bergamo. Lembrei-me de Olmi e lembrei-me que ele tinha nascido na região e pensei neste filme belo e comovente que ele lá fez em 1978 sobre a vida dos camponeses no início do século vinte. A minha ideia era que no meio do sofrimento tão grave ligado a este sítio nesta altura, o filme pudesse ser uma oportunidade para partilhar este trabalho com um público como forma adicional de pensar sobre este local e estas pessoas através deste filme.» 
Em entrevista a Bert Cardullo, e discutindo o seu método de trabalho, Ermanno Olmi disse que “sou uma pessoa que ainda trabalha bastante na Moviola. Para A Árvore dos Tamancos, estive lá um ano inteiro. A montagem é o momento em que todas as emoções que senti quando comecei a pensar no filme, a concebê-lo, a escolher os locais de filmagem, as caras – estas coisas todas – a montagem é o momento em que tudo se conjuga. Pode-se dizer que durante esse tempo, eu ajusto as minhas contas, trabalho esta escolha ou aquela síntese, resumo a emoção de todas as minhas emoções no que diz respeito a este filme em particular. Não é trabalho administrativo no sentido em que olho para o guião e digo, “OK, para esta cena precisamos de um corte tal e tal. E para aquela cena é necessário um grande plano .” É um novo momento criativo, um momento extraordinário. Isto é porque eu raramente escrevo argumentos sistemáticos e organizados; em vez disso, rabisco uma data de notas. Quando estou a rodar, apareço no plateau com essas notas todas – pedacinhos de papel cheios de apontamentos sobre o diálogo, a atmosfera, as caras – e aí, no plateau, começo uma nova fase crítico-criativa – e não crítico-executiva – enquanto penso nos planos que quero tirar. A montagem, naturalmente, é uma continuação deste processo crítico-criativo.” 

Amanhã, a escolha de Giovanni Comodo. 

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quarta-feira, 22 de abril de 2020

40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera: "Querido Diário", de Nanni Moretti

O Jornal do Fundão, os Encontros Cinematográficos, o Lucky Star – Cineclube de Braga e o My Two Thousand Movies associaram-se nestes tempos surreais e conturbados convidando quarenta personalidades, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos para escolherem um filme inserido no ciclo “Cinema em Tempos de Cólera: 40 dias, 40 filmes”, partilhado em segurança nos ecrãs dos computadores de vossa casa através do blog My Two Thousand Movies. O vigésimo segundo convidado é o crítico de cinema brasileiro Bruno Andrade, que escolheu Querido Diário de Nanni Moretti, e nos diz de sua justiça:

Sinopse: "Querido Diário" é um misto de comédia e documentário autobiográfico dirigido e interpretado por Nani Moretti. O filme, que valeu ao cineasta o prémio melhor realizador em Cannes em 1994, divide-se em três partes. Na primeira, Moretti percorre as ruas de Roma, no Verão, de vespa, claro. Na segunda, viaja com um amigo pela Sicília e na terceira consulta vários médicos por causa dum linfoma.

As palavras do Bruno Andrade:
"1. As imagens que chegaram da Itália, ainda no início da atual crise, das pessoas nas varandas dos seus apartamentos, embaladas pelas mesmas canções; vídeos no Youtube, no Instagram, lives do Facebook; condomínios fechados, mas também antigos prédios próximos a piazzas e vias; sets que vão de Adriano Celentano a Corona (a banda italiana capitaneada pela brasileira Olga Maria de Souza), o compartilhamento e a socialização; a descontração, essa verdadeira arte de viver dos italianos... Tudo isso estranhamente me faz pensar na passagem em que Nanni Moretti diz querer fazer um filme só sobre casas, sobre as fachadas das casas, enquanto passeia de Vespa por vários bairros romanos. A mobilidade, a desenvoltura, a extroversão. Impossível, diante dessas imagens dos cidadãos encontrando novas formas de convívio, não lembrar de Moretti e do seu filme. Dialética estranha, de certa forma inquietante, tão italiana, essa da deambulação e do ócio. Caro diario parece ocupar-se totalmente dela nos seus três episódios: o homem que vagueia livremente, solitariamente pela cidade e chega à orla de Ostia como que num circuito fechado; as ilhas, a vontade de isolamento, mas também a vontade de aprender a dançar; a doença, a busca pela cura, a necessidade da comunicação; entregar-se ao desconhecido, colocar-se nas mãos do outro, aceitar aquilo que a vida coloca nos nossos caminhos. E ao fim de tudo um copo d’água que revigora corpo e espírito.
Não consigo pensar em outro filme que fale tantas coisas sobre o presente momento.

2. Muita coisa a aprender com os italianos, em todas as horas, principalmente em matéria de catástrofe (desde, é óbvio, os tempos do império): foram eles que se prepararam antes de todos para aquilo que seria o futuro da comunicação (a intuição que fez Moretti pegar o bastão do Rossellini tardio e rascunhar a partir dos anos 1990 aquilo que mais tarde se confirmaria com a selfie, o vídeo-diário, as lives); foram eles que viram primeiro o seu cinema popular sucumbir completamente pela idiotização televisiva do público (segunda metade dos anos 1980); foram eles que elegeram primeiro um palhaço midiático proto-fascista, foram eles que desde então precisaram lidar com isso (primeira metade dos anos 1990 - as duas coisas, por sinal, idiotização televisiva e eleição de Berlusconi, interligadas); são eles que estão mostrando como lidar com essa realidade que potencialmente leva a um filme de Tsai Ming-liang (nada mau enquanto filme, mas um tanto trevoso para se viver no dia-a-dia), transformando-a em um filme de Moretti (mesmo que ao som do Azzurro de Adriano Celentano).

3. Num país que reúne Adriano Celentano e Nanni Moretti sempre pode acontecer coisas interessantes, leia-se paradoxais por natureza: Moretti, ex-militante do PCI, cruza com um morador de Casal Palocco - "cães de guarda atrás dos portões, pizza pré-pronta, videocassete, pantufas", em suma, o equivalente romano do eleitor do PSDB/DEM/NOVO - e começa uma conversa.

4. O verdadeiro contraplano de todo filme italiano, de todo o cinema italiano (neorrealismo, commedia all'italiana, peplum, melodrama, giallo, mesmo o cinema de poesia e o faroeste/filme de pirata/poliziottesco nas mãos de Sollima e Damiani), é o social.

5. Uma força regeneradora parece atravessar todo o filme, indescritível como tal, mas perceptível nesses passeios por Roma, nas viagens marítimas rumo às ilhas, e mesmo nas inúmeras consultas com médicos de todo o mundo. Essa força parece mais e mais necessária para enfrentarmos os desafios dos dias vindouros. Inevitavelmente."

Amanhã, a escolha de Billy Woodberry.

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terça-feira, 21 de abril de 2020

40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera: “Nathalie Granger”, de Marguerite Duras

O Jornal do Fundão, os Encontros Cinematográficos, o Lucky Star – Cineclube de Braga e o My Two Thousand Movies associaram-se nestes tempos surreais e conturbados convidando quarenta personalidades, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos para escolherem um filme inserido no ciclo “Cinema em Tempos de Cólera: 40 dias, 40 filmes”, partilhado em segurança nos ecrãs dos computadores de vossa casa através do blog My Two Thousand Movies. O vigésimo primeiro convidado é Mathilde Ferreira Neves, que escolheu Nathalie Granger de Marguerite Duras.

Sinopse: Crónica da vida quotidiana de uma mulher e da sua filha, que partilham a casa com uma amiga e a filha dela. Silêncios, tarefas domésticas, corredores, notícias inquietantes na rádio, telefonemas do departamento de imigração, Jeanne Moreau, Lucia Bose, Gérard Dépardieu. Marguerite Duras.

Numa entrevista a Leopoldina Pallotta della Torre publicada em La Passione sospesa (1989), e sobre o filme, Marguerite Duras disse que “eu adorava a ideia de trabalhar com duas grandes estrelas, invertendo o cliché e mostrando os corpos delas de trás, ou as mãos delas, sem me demorar nas pernas, nos rostos e nos seios delas.
"Queria fazer um filme que respeitasse o ritmo da mulher, sem apelar à feminidade habitual, tão desgastada. Tenho belas recordações deste acordo entre mulheres, elas as duas e eu. 
"Quanto a Jeanne, desde a época de Moderato cantabile que me apercebi da inteligência extraordinária do olhar dela, com a seriedade com que interiorizava os seus papéis. Enquanto rodava com Brook, vinha constantemente a minha casa para me pedir informações sobre a vida de Anne Desbaresdes, que eu própria era obrigada a inventar no momento para a contentar. 
"A Jeanne é muito parecida comigo: ambas tínhamos sido atravessadas pela força de um amor durante a nossa vida toda. Não necessariamente de um amor que já existisse, mas por qualquer coisa que ainda lá não estava, que ia chegar ou acabar." 
Mathilde Ferreira Neves escreve-nos que “para Marguerite Duras, Nathalie Granger é, antes de mais, o trabalhar da matéria do feminino: da função que as mulheres têm tido e mantido ao longo dos séculos, das angústias da mãe de Nathalie, que são, no fundo, as angústias de qualquer mãe. Mas o que é, efectivamente, importante para a realizadora é que o filme, muito para além de ser uma afirmação do feminino, é uma negação da sociedade tal como a conhecemos.” 
Uma homenagem a Lucia Bosè (extraordinária actriz neste filme), recentemente falecida devido à pneumonia covidiana. 

Amanhã, a escolha de Bruno Andrade. 

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segunda-feira, 20 de abril de 2020

40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera: O Acossado, de Jean-Luc Godard

O Jornal do Fundão, os Encontros Cinematográficos, o Lucky Star – Cineclube de Braga e o My Two Thousand Movies associaram-se nestes tempos surreais e conturbados convidando quarenta personalidades, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos para escolherem um filme inserido no ciclo “Cinema em Tempos de Cólera: 40 dias, 40 filmes”, partilhado em segurança nos ecrãs dos computadores de vossa casa através do blog My Two Thousand Movies. O vigésimo convidado é o escritor e tradutor Paulo Faria, que escolheu O Acossado de Jean-Luc Godard.

Sinopse: Ao lado de "Les 400 Coups", o outro grande "filme-símbolo'' da Nouvelle Vague, e também o primeiro sinal de que, como escreveu Serge Daney, este novo cinema não só não se contentava em sacudir o "antigo" como ameaçava, literalmente, destrui-lo. "À Bout de Souffle" é um dos filmes que melhor ilustra as consequências práticas e teóricas dos postulados da Nouvelle Vague, fazendo "explodir" o cinema para depois o reinventar. A primeira longa-metragem de Godard resultava, por si mesma, num nos momentos mais decisivos de toda a história do cinema. Texto: Cinemateca Portuguesa.


Sobre esta obra rompedora, Paulo Faria ofereceu-nos um generoso texto: 

Não há amores infelizes 

(O Acossado, de Jean-Luc Godard)

 Paulo Faria 

Numa entrevista dada em 1961, no ano seguinte à estreia de A Bout de Souffle (O Acossado), Jean-Paul Belmondo contou que, quando o abordou para fazerem este filme, Godard lhe passou para a mão três folhas pequenas, nas quais escrevera: «O fulano parte de Marselha, rouba um automóvel, quer ir novamente para a cama com a rapariga, mas ela não quer. No final, ele morre ou foge. Logo se vê.» Desde os primórdios da sua concepção, portanto, O Acossado foi um filme sob o signo da liberdade absoluta. Um filme que nasceu sem guião, sem final predefinido, ao sabor do génio de Godard. E vê-lo é para mim, sempre, uma experiência radical de liberdade. Durante os 87 minutos que O Acossado dura, sou livre. O filme acaba e regresso à minha condição de homem agrilhoado às minhas ansiedades, aos meus medos, às minhas inseguranças. 
Reza a lenda (e, neste caso, a lenda coincide com a realidade) que, durante as cinco semanas que durou a rodagem, Godard se sentava todas as manhãs na sala dos fundos de um café parisiense e se punha a escrever os diálogos para as filmagens daquele dia. Ao fim de uma hora ou duas, ia ter com Belmondo e Jean Seberg, que estavam na esplanada, a matar o tempo depois do pequeno-almoço, e entregava-lhes os diálogos. Eles liam, davam as suas sugestões e, logo em seguida, as filmagens começavam. Para um ansioso incurável como eu, imaginar este método de trabalho tem qualquer coisa de assombroso, deixa-me siderado, cheio de um misto de admiração e inveja. Sei que, numa situação assim, seria incapaz de escrever uma linha de jeito, um diálogo como deve ser. Sei que a minha criatividade não resistiria a esta prova de fogo. O génio talvez seja apenas isto: a inteligência descontraída. Ao pequeno-almoço, Godard escrevia tranquilamente os diálogos do dia, pensando, provavelmente, «eles que esperem». Diálogos geniais, réplicas fulgurantes, tudo com aquele travo de espontaneidade sem ligeireza, de sagacidade cortante, mas sem arrogância. 
Godard incentivava os actores a improvisarem, a darem ideias, a serem livres. Belmondo sentia-se como peixe na água neste ambiente caótico, Seberg nem por isso. Godard não tinha autorização para filmar em muitos locais onde o fez. Os exteriores foram rodados à socapa, à má-fila, ou então à descarada, a pisar o risco. O Acossado é um filme transgressivo até ao osso, livre até ao tutano. Nos Campos Elísios, no célebre diálogo em movimento entre Seberg e Belmondo («New York Herald Tribune!», apregoa ela de vez em quando, numa voz que me comove, porque sei como ela foi infeliz, como morreu tragicamente), Godard usou uma câmara oculta, montada num carrinho de três rodas coberto por um oleado escuro, onde haviam recortado um buraco para a lente. Dentro do carrinho, todo encolhido, o operador de câmara invisível recolhia as imagens, como um repórter de guerra. Quanto aos interiores, improvisou-se: o quarto da rapariga a quem o herói furta dinheiro, logo no início do filme, era o quarto da própria actriz, Liliane David, e os móveis, objectos e roupas que ali vemos eram os dela. Nas filmagens, usaram-se os automóveis dos amigos de Godard, o Simca do próprio Godard, o descapotável Triumph de dois lugares do marido de Seberg. E as personagens secundárias do filme foram, quase todas, interpretadas por amigos e colaboradores de Godard. Já para não falar dos figurantes, que o foram no verdadeiro sentido da palavra: meros transeuntes que apareceram no filme sem querer, desprevenidos, que se desviaram dos actores e ficaram a olhar para a câmara, espantados com o que se estava a passar. Tudo isto transparece no filme, mas, como que por magia, não há, no produto final, ar de improviso nem de coisa atabalhoada. O Acossado é a vida tal como ela é, caótica, trepidante, febril. 
Michel Poiccard (Belmondo) e Patricia Franchini (Seberg) são o casal mais arrebatador da história do cinema. Eu sempre quis ser Michel Poiccard, mas sempre soube que nunca o seria. Ele é um malandro de coração puro, eu sou um obsessivo-compulsivo, incapaz de mandar os outros passear, incapaz de mandar o mundo passear. Mas, sempre que quero, durante 87 minutos, sento-me em frente ao ecrã e sou Michel Poiccard. Ele corre desalmadamente o filme inteiro, naquelas suas passadas largas e ligeiras, com aqueles seus movimentos elásticos e felinos, e, mesmo moribundo, alvejado a tiro nas costas, continua a correr, a correr sem parar. Acende cigarros uns nos outros, pergunta as horas a toda a gente, compra jornais atrás de jornais, faz telefonemas atrás de telefonemas. É um marginal bizarro, pouco convencional, que corrige o francês das namoradas, que prefere «os velhos» à juventude. Conta histórias fantasiosas sobre as suas origens, sobre o pai, sobre o avô, olha-se longamente ao espelho, mente, rouba. Não possui uma beleza convencional. Tem o nariz esborrachado, os lábios grossos, os olhos esbugalhados. Patricia, por seu lado, pergunta constantemente o significado das palavras e expressões francesas que não entende, faz um ar pensativo, magoado, parece hesitar. Há nela uma tristeza funda, sem remédio. Tem as mãos feias, de dedos curtos, mas um rosto de anjo, um sorriso arrebatador. Tira os sapatos brancos de salto alto e corre, mas o correr dela é ligeiro, os pés quase não lhe tocam no chão. 
Também ela se vê inúmeras vezes ao espelho. Michel e Patricia parecem duvidar da própria existência, parecem precisar de se certificar de que não se eclipsaram, de que ainda estão ali. São duas crianças, crianças como eu nunca soube ser. Brincam com bonecos de peluche, macaquinhos e ursos, e, na lendária sequência no quarto do Hôtel de Suède, entregam-se a jogos pueris. Ele diz-lhe: «Vou contar até oito. Se não sorrires para mim, estrangulo-te», e, pouco depois, é ela quem lança um desafio: «Vou olhar-te nos olhos, e veremos quem é o primeiro a desviar o olhar.» Das duas vezes, é Patricia quem perde, quem fraqueja. Da primeira vez, quando ele conta muito devagar, como fazem os garotos, «sete, sete e meio, sete e três quartos», ela deixa-se vencer e sorri. Da segunda vez, é também ela quem cede e desvia os olhos, para logo espreitar o rosto dele através de um cartaz enrolado, como fazem as crianças para se esconder. Dir-se-ia que é ela a mais vulnerável, a mais pueril. No fim de contas, não é bem assim. No fim de contas, é Michel o idealista, que declara: «Dizem que não há amores felizes. É precisamente ao contrário. Não há amores infelizes.» Ao passo que Patricia, racional, fria, afirma: «Fiz-te mal para ter a certeza de que não te amo.» 
Todo o filme se joga na tensão entre a infância (ou antes, a juventude como prolongamento da infância), despreocupada e transgressora, e a idade adulta, aborrecida e regrada. O Acossado é um filme para meninos sérios como eu, que foram adultos antes do tempo e que, depois, passam a vida a querer ser crianças. Em vão, claro. Michel e Patricia são crianças a tentar apreender o mundo. Debitam generalizações sobre «os franceses», «as mulheres», «os homens», «as suecas», «os americanos», como se tentassem organizar o caos que os rodeia. Como se tentassem criar à sua volta um mundo previsível, para não terem tanto medo. 
Numa cena lindíssima, Patricia, ao atravessar a rua numa passadeira, marcada no empedrado escuro com duas fiadas paralelas de chapas metálicas redondas, saltita de chapa em chapa, como uma criança a cruzar um regato, de pedrinha em pedrinha. No final, traído por Patricia, que escolheu, afinal, a sensatez e a vida adulta, Michel morre, estendido no empedrado da rua, numa passadeira em tudo idêntica àquela, entre duas fiadas de chapinhas redondas. Caído de costas, solta a sua última baforada de fumo de tabaco. Segue-se uma troca de palavras, a última do filme, em que, sucessivamente, Michel, o agente da polícia e Patricia usam de novo a palavra que já tantas vezes foi declinada ao longo da película, em milhentos contextos: «dégueulasse» («nojento»). Patricia faz então o mesmo que ela e Michel tantas vezes fizeram ao longo do filme, isto é, fitar a objectiva e falar directamente comigo. E, por último, a palavra «Fim» surge no ecrã em letras garrafais, e eu torno a ser adulto e esquizofrénico, torno a viver a minha vida de todos os dias. Mas, durante 87 minutos, fui Michel Poiccard, namorei com Patricia Franchini. De noite, sonho que Godard mudou de ideias e decidiu optar pelo outro final, rabiscado nas folhas que mostrou a Belmondo. Sonho que Michel e Patricia fogem de carro para Roma, têm filhos e vivem felizes para sempre. Sonho que Michel Poiccard tem, afinal, razão: não há amores infelizes. 

Paulo Faria

Março de 2020

Amanhã, a escolha de Mathilde Ferreira Neves.

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domingo, 19 de abril de 2020

40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera: “As Vinhas da Ira”, de John Ford

O Jornal do Fundão, os Encontros Cinematográficos, o Lucky Star – Cineclube de Braga e o My Two Thousand Movies associaram-se nestes tempos surreais e conturbados convidando quarenta personalidades, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos para escolherem um filme inserido no ciclo “Cinema em Tempos de Cólera: 40 dias, 40 filmes”, partilhado em segurança nos ecrãs dos computadores de vossa casa através do blog My Two Thousand Movies. O décimo nono convidado é o presidente da Câmara Municipal do Fundão, Paulo Fernandes, que escolheu As Vinhas da Ira de John Ford.

Sinopse: "As Vinhas da Ira" adapta o romance homónimo de John Steinbeck, vencedor do Pulitzer, sobre a odisseia dos oakies, os agricultores do Oklahoma arruinados pela desastrosa seca da década de 1930 e expulsos das suas terras pelos brancos, que buscam a Califórnia como a "terra prometida". Uma das maiores interpretações de Henry Fonda no papel de Tom Joad, o novo Moisés que vai servir de guia e não poderá entrar nessa terra. Jane Darwell, arquétipo das mães fordianas, ganhou também um Óscar. Texto: Público.


Paulo Fernandes descreveu-nos a obra como «um filme de todas as nossas vidas do mestre John Ford, quem melhor entendeu e filmou a condição humana, que aqui adapta o não menos fabuloso e actualíssimo romance de John Steinbeck. Para o presente e para o futuro, depois de tantas e tantas privações, recordo livremente o discurso da Mãe: “Durante muito tempo parecia que estávamos derrotados, totalmente derrotados. Sentia-me mal e estava assustada. Como se estivéssemos perdidos sem amigos que nos valessem… Mas o rio continua a fluir. Uma mulher vê assim as coisas… Sei que sofremos um grande golpe mas é isso que nos torna fortes. Reis, ricos, políticos, nascem e morrem. Mas nós continuamos a viver. Não podem erradicar-nos, não podem derrotar-nos. Nós viveremos para sempre porque nós somos o povo.”
"Como tenho escrito a propósito de outros filmes de Ford, talvez seja preciso recuar à pintura holandesa do século XVII para encontrar uma tão funda adequação entre os valores duma sociedade e a representação dessa sociedade, entre o olhar dum artista que a simboliza e o olhar dos homens e mulheres que, simbolizando-a também, neles foram retratados.” 

Amanhã, a escolha de Paulo Faria.

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Em Junho no My Two Thousand Movies


O Cinema Espanhol no Tempo de Franco

sábado, 18 de abril de 2020

40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera: “Days of Heaven”, de Terrence Malick

O Jornal do Fundão, os Encontros Cinematográficos, o Lucky Star – Cineclube de Braga e o My Two Thousand Movies associaram-se nestes tempos surreais e conturbados convidando quarenta personalidades, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos para escolherem um filme inserido no ciclo “Cinema em Tempos de Cólera: 40 dias, 40 filmes”, partilhado em segurança nos ecrãs dos computadores de vossa casa através do blog My Two Thousand Movies. O décimo oitavo convidado é a cantora e realizadora Marta Ramos, que escolheu Days of Heaven de Terrence Malick.

Sinopse: Bill (Richard Gere) e Abby (Brooke Adams) são um jovem casal, mas fingem ser irmão e irmã. Os dois estão a trabalhar em Chicago de início do século XX e a fome e a miséria que se vive na cidade fá-los desejar viajar para Sul. Juntamente com Linda (Linda Manz, irmã de Bill e que faz também de narradora) acabam por arranjar trabalho num racho em Panhandle, Texas. Quando a época de colheita acaba, o jovem e rico rancheiro (interpretado por Sam Shepard) convida-os a ficar. Mas o convite está longe de ser uma mera amabilidade. É que o rancheiro está apaixonado por Abby e, quando o jovem casal descobre que o proprietário sofre de uma doença terminal e apenas deverá ter mais um ano de vida, a jovem mulher acaba por aceitar a proposta de casamento dele. Quando a morte anunciada tarda a chegar, a impaciência e a tensão tomam conta das personagens. O realizador Terrence Malick consegue, em "Dias do Paraíso", transformar um trágico triângulo amoroso num filme impressionante que conquistou o Óscar de melhor fotografia.


DAYS OF HELL AND RAIN 

Marta Ramos 

O céu é lume, a terra é lume, 
O ar rareia. 
Inferno, que até o canto da cigarra afugenta, 
E a água que bebemos incendeia, 
No louco pulsar de cada veia, 
Aflita, incontrolada, a dor rebenta.



Versos de uma amiga, camponesa alentejana, chamada Virgínia Dias, ela que, também criança, se tornou à força crescida, como a voz que nos conta a história neste filme. Voz de ambígua idade, criança ainda e já mais qualquer coisa, de tal forma que de início nem consigo destrinçar de qual das duas raparigas se trata. 
Apaixonei-me por essa narração tão crua e selvagem, de quem diz as coisas apenas uma e pela primeira vez. 
Respondi com “Days of Heaven” por instinto, sem saber muito bem porque o escolhi para este ciclo de quarentena, como quem nega e se defende do momento presente.
Há qualquer coisa na forma de filmar de Malick que me faz sentir cúmplice do maravilhamento face ao mundo. Corridas pelo meio do trigo, jogar às apanhadas com o vento, tantos animais filmados como se, paralelamente à história dos humanos, assistíssemos por momentos aos enredos, acções e movimentos desses outros seres, que reverberam os sentimentos humanos, visceralmente. A natureza como cúmplice e testemunha das emoções que não são apenas humanas afinal.

«He told me the whole earth was going up in flames. There's gonna be creatures running every each way, some of them burned, half their wings burning. People are gonna be screamin' and hollerin' for help.»
E em várias cenas sentimos esse fogo anunciado no início, as fornalhas industriais, as várias fogueiras de celebração, aquela outra em que se lançam inutilmente os gafanhotos e o imenso incêndio final purgando o campo e alma.
Há uma crueza, a matéria em bruto. Tudo é um sol-pôr.
«Style of leaving things as they are, as much as possible» refere Almendros (director de fotografia do filme) que juntamente com o realizador Terrence Malick tantas vezes exasperavam alguns membros da equipa, por esperarem pelo momento certo do dia para filmar. A hora mágica entre o sol se pôr e a noite cair, essa exigência que fosse a luz da natureza a pintar os quadros, como se o tempo e a luz natural a entrar pela objectiva - a revelar porque a ocultar, a ocultar porque a revelar os seres e as coisas - fosse a matéria de um poema de fogo.
Diz o Bénard que a menina fala à amiga e que o plano final assim o revela, mas tenho para mim que esta história é contada ao trigo, ao fogo e ao vento, companhias eternas deste filme.
“Days of Heaven” ou “days of hell” é um grito, continua o Bénard, e o que a menina conta lembra-me as palavras do «blue eyed son» na canção do Bob Dylan, “A Hard Rain's A-Gonna Fall”*. O mesmo sufoco: na canção uma «hard rain», o frio e a humidade de uma tempestade prestes a cair, no filme as “flames”, os entardeceres, o fogo; e embora contrastem nas temperaturas a que nos expõem, e nos ambientes que evocam, a menina irmã ou o rapaz de azuis olhos falam-nos na mesma voz, donde estiveram, o que viram, o que ouviram e quem encontraram.
Sejam de paraíso ou de inferno, feitos afinal do que é a vida, são estas vozes-poema que emanam uma estranha energia e é com ela que quero ficar:

And I'll tell it and think it and speak it and breathe it
And reflect it from the mountain so all souls can see it
Then I'll stand on the ocean until I start sinkin'
But I'll know my song well before I start singin'
And it's a hard, it's a hard, it's a hard,
it's a hard It's a hard rain's a-gonna fall

* Há duas versões imperdíveis desta canção: quando a Patti Smith a cantou na cerimónia do Nobel a Bob Dylan, e a da dupla Tom Russell e Lucinda Williams.

Amanhã, a escolha de Paulo Fernandes. 

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sexta-feira, 17 de abril de 2020

40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera: "The Quick Gun", de Sidney Salkow

O Jornal do Fundão, os Encontros Cinematográficos, o Lucky Star – Cineclube de Braga, o My Two Thousand Movies e a Comuna associaram-se nestes tempos surreais e conturbados convidando quarenta personalidades, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos para escolherem um filme inserido no ciclo “Cinema em Tempos de Cólera: 40 dias, 40 filmes”, partilhado em segurança nos ecrãs dos computadores de vossa casa através do blog My Two Thousand Movies. O décimo sétimo convidado é o crítico de cinema norte-americano Chris Fujiwara, que escolheu The Quick Gun de Sidney Salkow.

Sinopse: O pistoleiro Clint Cooper (Audie Murphy) regressa à sua cidade natal, depois de algum tempo fora por ter matado em duelo dois filhos do rancheiro Tom Morrison (Walter Sande). No caminho, depara-se com a quadrilha de Spangler (Ted de Corsia), pronta para assaltar o banco local. Quando chega à cidade, Clint vê que a maioria dos homens está fora, conduzindo um rebanho, mas ainda assim decide ajudar o xerife Scotty (James Best), seu amigo. Clint também quer retomar o seu romance com Helen Reed (Merry Anders) e reaver o rancho da família..

Justificando a sua escolha, Chris Fujiwara disse que «agradeço ao Mário por me lembrar de Sidney Salkow. “The Quick Gun” parece um filme feito num mundo prestes a desligar-se totalmente. É quase doloroso de ver durante a primeira hora. A forma estranha como o director de fotografia usa o Techniscope reforça a sensação de que tudo se passa num vazio. Na última secção do filme, a redutibilidade de todo o empreendimento vem trabalhar em seu favor, e o filme sobrevive, como Audie Murphy, com uma espécie de certeza sinistra e vazia. Nunca vi um filme em que sentisse de forma tão intensa que a interpretação de Frank Ferguson elevava o nível do filme. “The Last Man on Earth”, de Salkow, é, sem dúvida, extremamente ressonante agora. Sente-se pena de toda a gente no filme... De Vincent Price, dos vampiros também.»
No livro de entrevistas de Boyd Magers e Michael G. Fitzgerald, Westerns Women, e na entrada dedicada a Merry Anders, que interpretou Helen Reed neste filme, lê-se que “toda a gente que alguma vez trabalhou com Audie Murphy fica com uma impressão distinta, muitas vezes variada, mas sempre distinta. “Como é que posso ser gentil... ele tinha mudanças de humor. Eu andava com muito cuidado. Ele olhava para nós como se nos pudesse matar, e nunca soube porquê. Falei com o Jimmy Best, que tinha trabalhado muitas vezes com o Audie. Ele disse, 'Ele amanhã esquece-se. Não passes as noites acordada por causa disso. O filme vai terminar daqui a três dias.' Nesse tivemos uma filmagem dura, íamos para as rodagens de exterior por volta das quatro horas da tarde e filmávamos a noite pela noite, até às 2:30 e 3:00 da manhã.”

Amanhã, a escolha de Marta Ramos.

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quinta-feira, 16 de abril de 2020

40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera: “O Túmulo dos Pirilampos”, de Isao Takahata

O “Jornal do Fundão“, os “Encontros Cinematográficos”, o “Lucky Star – Cineclube de Braga“, o “My Two Thousand Movies” e “A Comuna” associaram-se nestes tempos surreais e conturbados convidando quarenta personalidades, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos para escolherem um filme inserido no ciclo “40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera”, partilhado em segurança nos ecrãs dos computadores de vossa casa através do blogue “My Two Thousand Movies”.
O décimo sexto convidado é Vanessa Duarte, que escolheu O Túmulo dos Pirilampos de Isao Takahata: “Ando há mais de meio ano a restaurar uma autocaravana, a alimentar uma ideia de liberdade. Vou pelo mundo. Está quase pronta e o mundo fechou-se. Como é tudo tão frágil… Tenho visto imagens muito caricatas de acções de desinfecção de espaços e objectos com luz UV. Talvez a luz do cinema possa limpar a alma.”

Sinopse: Verão de 1945. O império do sol nascente treme debaixo dos constantes ataques aéreos dos aliados. Esta é a história de Seita e da sua irmã mais nova Setsuko, duas crianças que nasceram no momento e lugar errados. Depois de perderem a mãe e a sua casa num dos bombardeamentos e perante a impossibilidade de contactar o pai, um oficial da Marinha Imperial Japonesa, as duas crianças tentam sobreviver sozinhas num mundo que não dispõe nem dos recursos mais básicos para as sustentar. Escondidos num refúgio antiaéreo abandonado, Seita começa a roubar comida para alimentar a sua irmã doente. A sua trágica luta pela sobrevivência transforma-se numa ode ao espírito humano e uma emotiva homenagem aos esquecidos.

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quarta-feira, 15 de abril de 2020

40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera: "A Cidade das Mulheres", de Federico Fellini

O Jornal do Fundão, os Encontros Cinematográficos, o Lucky Star – Cineclube de Braga e o My Two Thousand Movies associaram-se nestes tempos surreais e conturbados convidando quarenta personalidades, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos para escolherem um filme inserido no ciclo “Cinema em Tempos de Cólera: 40 dias, 40 filmes”, partilhado em segurança nos ecrãs dos computadores de vossa casa através do blog My Two Thousand Movies. O décimo quinto convidado é o escritor H.M.S. Pereira, que escolheu A Cidade das Mulheres de Federico Fellini.


Sinopse: Num compartimento dum comboio, Snaporaz sai da sua sonolência para seduzir uma bela desconhecida. Segue-a pela floresta até um hotel fantasmagórico onde decorre um congresso de feministas. Intimidado pela agressividade exuberante das militantes, ele refugia-se no seu papel de conquistador nato…

A escolha de H.M.S Pereira: Pelo sonho das aventuras que não podemos ter em casa  Sem a sua permissão mas com toda a minha admiração, aqui cruzo a poética da prosa da Adília Lopes com a poesia das prosaicas mulheres do Fellini:
«Em 81 disse à Drª Manuela Brazette, psiquiatra, “Eu sou feia”. Ela disse-me “Não é ser feia. Não há pessoas feias. Não tem é atractivos sexuais”. Lembrei-me então do homem que em 74, tinha eu 14 anos, se cruzou comigo no Arco do Cego. Lembrei-me do homem, da cara do homem vagamente, mas lembrei-me muito bem do que ele me tinha dito ao passar por mim. Tinha-me dito “Lambia-te esse peitinho todo”. Lembrei-me também da meia-dúzia de outros homens que durante a minha adolescência me tinha dito quando eu passava “Coisinha boa” e “Borrachinho”. Ainda hoje me sinto profundamente agradecida a esses homens. Pensei que eles estavam a avacalhar, que eram uns porcalhões. Mas quem estava a avacalhar era a Drª Manuela Brazette, ela é que é uma porcalhona. Acho que um homem nunca consegue ser mau para uma mulher como outra mulher.» [“Irmã Barata, Irmã Batata”, Angelus Novus, 2000]

Amanhã, a escolha de Vanessa Duarte.

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terça-feira, 14 de abril de 2020

40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera: “Un Giorno in Barbagia” + “Un Petit Monastère en Toscane”

O “Jornal do Fundão“, os “Encontros Cinematográficos”, o “Lucky Star – Cineclube de Braga“, o “My Two Thousand Movies” e “A Comuna” associaram-se nestes tempos surreais e conturbados convidando quarenta personalidades, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos para escolherem um filme inserido no ciclo “40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera”, partilhado em segurança nos ecrãs dos computadores de vossa casa através do blogue “My Two Thousand Movies”.
O décimo quarto convidado é o realizador e crítico de cinema Patrick Holzapfel, que escolheu Un Giorno in Barbagia de Vittorio de Seta e Un petit monastère en Toscane de Otar Iosseliani.

Para justificar a sua escolha, escreveu-nos que são “dois belos filmes sobre a vida e a coexistência, a música e o trabalho. Iosseliani e De Seta apenas ouvem e observam, porque o que as pessoas fazem dispensa explicações. Um mostra o mundo dos homens, o outro o das mulheres. Imaginar estes filmes no ambiente de trabalho dos dias de hoje ou num mundo em que consideramos a internet como a nossa salvadora durante uma pandemia é quase impossível. Lembra-nos o quanto nos afastámos do sagrado, bem como do mundo. Neste aspecto, ambos são filmes tristes mas plenos de vida e, portanto, de esperança.”

Un Giorno in Barbagia
Sinopse: Uma das preciosas curtas-metragens documentais realizadas por Vittorio de Seta na década de 1950, aqui na Sardenha. No seu registo realista e poético, Seta filma o mundo do trabalho e dos gestos quotidianos de pastores, pescadores e operários, bem como a sua ligação à paisagem.
Un petit monastère en Toscane 
Sinopse: Uma pequena comunidade retirada, composta de cinco monges, ocupados com as suas orações, as suas vinhas, ou os seus passeios nos campos toscanos. 

Amanhã, a escolha de H.M.S. Pereira. 

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segunda-feira, 13 de abril de 2020

40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera: "O Incompreendido", de Luigi Comencini

O Jornal do Fundão, os Encontros Cinematográficos, o Lucky Star – Cineclube de Braga e o My Two Thousand Movies associaram-se nestes tempos surreais e conturbados convidando quarenta personalidades, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos para escolherem um filme inserido no ciclo “Cinema em Tempos de Cólera: 40 dias, 40 filmes”, partilhado em segurança nos ecrãs dos computadores de vossa casa através do blog My Two Thousand Movies. O décimo terceiro convidado é o crítico Sérgio Alpendre, que escolheu O Incompreendido de Luigi Comencini, descrevendo-o como “um milagre cinematográfico. Em homenagem a Andrea Tonacci, que sempre corrigia o modo como eu pronunciava o título desse filme.”

Sinopse: Praticamente ignorado aquando da sua estreia em 1967, esta obra de Luigi Comencini tornou-se um filme-culto, com grande êxito da crítica e de público a partir da sua reposição em 1978. Comencini constrói uma das mais comoventes histórias de amor, sobre uma criança que procura conquistar a afeição do pai que o marginalizara devido à dor pela morte da mulher. A quintessência do melodrama filmada com ternura e contenção.

No seu Dictionnaire du Cinéma, Jacques Lourcelles escreve que “O Incompreendido é para ver em díptico com Le avventure di Pinocchio, realizado quatro anos mais tarde. As duas obras constituem a parte essencial, a mais original e a mais conseguida, da carreira de Comencini. Nestes dois filmes, Comencini projecta duas luzes radicalmente opostas sobre o seu tema predilecto, a infância. Por um lado a tristeza e o fracasso (apesar dos «reencontros» finais), por outro o optimismo e a vitória. Por um paradoxo social rico em significado, o filme triste é sobre personagens bem abastadas, enquanto que o olhar optimista, em Pinocchio, se aplica aos seres mais miseráveis. O tema particular que liga O Incompreendido a Pinocchio, no interior dessa vasta crónica da infância que é a obra de Comencini, é o das relações de uma criança com o pai e dos obstáculos, mais ou menos intransponíveis, que podem impedir essa relação de florir livremente. Em Pinocchio, há uma concepção retrógrada e mecânica da Moral a separar relutantemente os dois heróis. Aqui, o obstáculo fatal é uma incompreensão quase permanente do pai, forma banal, quotidiana e atroz da incomunicabilidade. Através da tristeza muitas vezes desalentadora deste filme, Comencini quis marcar com força que a compreensão entre o pai e o seu filho (de forma mais geral : entre o adulto e a criança), longe de ser fácil e adquirida desde o início, é pelo contrário fruto de um milagre frágil que a atenção, a lucidez e a paciência, além do amor, devem renovar a cada instante. Comencini também pinta neste filme um quadro conjunto de duas crianças, com sensibilidades e idades diferentes – opondo-se a animalidade destruidora e inconsciente do mais jovem à insegurança angustiante do mais velho – que é uma pura maravilha de justiça e de observação. Comencini tinha lido o romance de Florence Montgomery na infância e julga-o hoje com extrema severidade («um pequeno livro verdadeiramente ignóbil, uma máquina de fazer chorar» cf. «Positif» nº156). Serviu-lhe contudo para tecer uma trama de cardápios de acontecimentos, de detalhes significativos, muito fina e muito cerrada e ao mesmo tempo isenta de todo o dramatismo inútil. Refinado na sua construção e na minúcia da sua observação, O Incompreendido é igualmente refinado pela beleza das cores e dos lugares. Este refinamento acrescenta uma melancolia suplementar e quase insustentável à gravidade do tema tratado.” 

Amanhã, a escolha de Patrick Holzapfel. 

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domingo, 12 de abril de 2020

40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera: “E.T. – O Extra-Terrestre”, de Steven Spielberg

O Jornal do Fundão, os Encontros Cinematográficos, o Lucky Star – Cineclube de Braga e o My Two Thousand Movies associaram-se nestes tempos surreais e conturbados convidando quarenta personalidades, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos para escolherem um filme inserido no ciclo “Cinema em Tempos de Cólera: 40 dias, 40 filmes”, partilhado em segurança nos ecrãs dos computadores de vossa casa através do blog My Two Thousand Movies. O décimo segundo convidado é Ana Petrucci, que escolheu E.T. - O Extra-Terrestre de Steven Spielberg.

Sinopse: Vinte anos depois da estreia regressa ao grande ecrã a obra-prima de Steven Spielberg. Inesquecível foi a história da amizade entre o extraterrestre, deixado por engano na Terra, e o pequeno Elliot, que esconde e protege ET dos adultos. A edição comemorativa do filme contém imagens inéditas, novo tratamento de som e outras alterações de carácter político, eticamente exigidas depois dos ataques terroristas de 11 de Setembro 2001. Exemplo disso foi a eliminação das espingardas dos polícias que perseguem o pequeno extraterrestre e a substituição da palavra "terrorista" usada pela mãe de Elliot. Um filme a redescobrir pelos mais velhos e a descobrir com deslumbramento pelos mais novos. 

Ana Petrucci escreve-nos que «E.T. é uma escolha óbvia nestes dias: é um regresso à infância, à cassete VHS do meu primo André, à aventura daquela outra criança que veio de longe e passa pelo inimaginável - perder-se dos pais e ser perseguida pelos homens, vistos com molhos de chaves e correntes na cintura. 
A curiosidade e a amizade de Elliot resgatam E.T. e, a princípio, só as crianças podem vê-lo através da sua imaginação mágica e inocente, à semelhança das fadas de Peter Pan – a história que a mãe lê a Gertie antes de ir para a cama. 
Quando, mesmo no início, E.T. olha para L.A., de Mulholland Drive, contempla a humanidade, sem nos dissecar como rãs. E.T. ensina-nos que há ligações tão fortes que sobreviverão à distância. 
Este é um outro Halloween, felizmente com E.T. podemos fazer uma ligação directa para casa! 
P.S.: "E.T." também é a melhor volta de “bina” do Cinema!» 

Amanhã, a escolha de Sérgio Alpendre. 

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Em Junho no My Two Thousand Movies


O Cinema Espanhol no Tempo de Franco 

sábado, 11 de abril de 2020

40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera: “Spencer’s Mountain”, de Delmer Daves

O Jornal do Fundão, os Encontros Cinematográficos, o Lucky Star – Cineclube de Braga e o My Two Thousand Movies associaram-se nestes tempos surreais e conturbados convidando quarenta personalidades, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos para escolherem um filme inserido no ciclo “Cinema em Tempos de Cólera: 40 dias, 40 filmes”, partilhado em segurança nos ecrãs dos computadores de vossa casa através do blog My Two Thousand Movies. O décimo primeiro convidado é o realizador José Oliveira, que escolheu Spencer's Mountain de Delmer Daves.

Sinopse: Um pequeno proprietário de terras, enérgico, generoso e independente tem de enfrentar inúmeros obstáculos para juntar dinheiro suficiente para construir uma casa capaz de acomodar a sua mulher e os seus nove filhos.

O filme que hoje vamos ver foi realizado por um dos mais talentosos e prolíferos classicistas de Hollywood, Delmer Daves. Hoje um pouco esquecido, tocou em praticamente todos os géneros, do filme de guerra e de aventuras (Destination Tokyo, a sua estreia em 1943) ao filme noir (o mítico Dark Passage, baseado no romance do misterioso David Goodis, usando o olhar subjectivo de Humphrey Bogart durante um tempo considerável), concluindo a sua carreira no ano de 1965 em Itália e com Maureen O'Hara, em mais uma das muitas adaptações literárias que levou a cabo pelo próprio punho, ficando nos anais a história da actriz ter detestado o trabalho do operador de câmara que segundo ela a não beneficiou, torcendo então pela equipa Italiana que depois de cada dia de filmagens jogava uma partida de futebol contra a parte americana da equipa de filmagens; The Battle of the Villa Fiorita, chamou-se a empreitada. Realizador e argumentista que possuía verdadeiramente o material que escolhia, não um tarefeiro que aceitava qualquer material para muito bem ou mal o despachar, visto em retrospectiva abriu muitos caminhos para a nova Hollywood reclamar autorias nos anos 70, até chegar a Quentin Tarantino ou Paul Thomas Anderson.
Mas foram os westerns a comporem a parte mais brilhante da sua carreira. Broken Arrow abriu e surpreendeu os fifties e é um dos filmes mais importantes desse período, pois tal como The Last Wagon, de 1956 e talvez a sua obra-prima, Daves vai fundo na complexa questão racial da fundação dos Estados Unidos, a mestiçagem e a eterna questão da pertença, aprimorando ainda o seu portentoso talento para filmar paisagens de um modo inteiro que o coloca ao lado de John Ford ou de Anthony Mann. Mas imediatamente no ano seguinte, o expressionista 3:10 to Yuma (imbatível adaptação do escritor pulp Elmore Leonard) é um novo marco, carregado de suspense e terrífico, fechando logo depois esse ciclo fascinante com o vertiginoso e abissal The Hanging Tree, auscultando um Gary Cooper tão torturado e cansado como no terminal Man of the West. Daves sempre foi muito respeitado pelos seus pares, mas nunca teve grandes favores da crítica nem prémios, nem em França, onde os rebeldes da futura nouvelle vague nunca lhe prestaram a atenção merecida.
Faltou referir imensa coisa ao longo dos seus trinta filmes, nomeadamente o lado Shakespeariano de algumas obras, mas vamos então para Spencer's Mountain, o seu antepenúltimo filme e um dos pontos altos do cinema americano. Precisoso pois junta Henry Fonda com Maureen O'Hara nas montanhas, nas verduras, nas neves e nos lagos do Wyoming, envoltos num sereno esplendor transcendental que só Michael Cimino seria capaz de estar à altura nos grandes espaços contíguos de Heaven's Gate. «Over 100 years ago, my grandpa come into this land. Grandpa climbed this mountain and said, "this is it' and he built him a sod house' got himself a wife'and they named the whole mountain after him. Spencer's mountain it is to this day.» E logo vamos ver que quem profere orgulhosamente estas palavras, o filho Clay Spencer de Fonda, esteve à altura do legado do pai que primeiramente conquistou a montanha e pronunciou o "this is it'", com os seus nove filhos, desde o recém-nascido até ao primeiro dos Spencer que está prestes a ser graduado e tem em vista a faculdade.
Spencer's Mountain é um conto, quase ou mesmo um conto de fadas, sob a égide da abundância: crias, natureza, os diversos elementos, os acasalamentos vários, as dádivas e os legados de mãos vazias, muitos pais, muitos filhos, muitos ciclos. O eterno-retorno e todos esses milagres em filigrana. Com aquela luz também bíblica que rasga as nuvens do genérico para cair sobre a terra prometida. Vamos reparar, talvez hoje em dia anacronicamente, que todos se tratam por irmãos, todos parecem reconhecer-se irmãos, semelhantes, ajudando-se mutuamente, dividindo esforços, sem superioridades por aí além. É neste Paraíso Perfeito, porventura hoje irremediavelmente perdido ou bastante remoto, que se continuarão a desenrolar problemas semelhantes aos de todas as gerações em todas as épocas. E como sempre, tudo passa. Aqui numa respiração que tudo relativiza.
Os sonhos «maiores do que a vida» que presidem à construção de uma segunda casa no topo do mundo que jamais sairá do esqueleto; a dificuldade que o «rapaz do campo» tem em entrar para o ensino superior, apesar de ter aprendido as diversas matérias à maneira de Abraham Lincoln; o ostracismo mesmo que sub-reptício a quem não está inserido no campo religioso de uma comunidade; enfim, as eternas ciumeiras e vinganças perpetradas pela flutuante instituição do amor e sobretudo do amor não correspondido. Temos no início aquele momento sublime onde na casa em perpétua construção Fonda mostra ao filho a vista que pensou oferecer à amada no acordar de todos os dias, e será essa bela ambição desmesurada o preço a pagar por não ter entendido que todo esse maravilhamento já estava inteiro na sua casa actual, no desfilar proporcional dos nove filhos, do bebé às loirinhas do meio, do intelectual às adolescentes com sangue na guelra.
Fonda aceitará que todo esse maravilhamento, esse lar comum e magnânimo, esse privilégio incomparável, essa posse, não se medem em mais quatro paredes mas sim em toda a envolvência a perder de vista, transformadora, transcendental, e sagrada. Por instantes esqueceu-se, como por instantes todos nós nos podemos esquecer do essencial, mas irá vender tudo isso sem remorso a favor desse primoroso portal que pela primeiríssima vez um membro do clã poderá abrir para todos os outros. Com tal no espírito, tanto irá estar à altura da sua palavra severa aquando do assinar da candidatura do filho à faculdade, como nas mesmas elevações do seu Pai que tragicamente morre nesse hiato mas que no testamento pede ao neto: «Aim for the stars».
«If I had my way, you'd be president of these United States. Clayboy, it was like reaching for the sun and the moon and the stars, wasn't it, dear?», idealizou temerariamente a mãe. E assim foi, e assim poderá ser mais uma vez. Em Spencer's Mountain todos já nasceram com a mais sublime das dádivas, e todos os encontros e desencontros reservados ao factor humano e ao seu perene grito existencialista começam a entrar nos eixos e a colherem a verdadeira luz quando se olha simplesmente em volta, se respira, se limpa o olhar. Acolhendo e agradecendo toda essa abundância, até às estrelas. Um filme tão simples como genial, tão elementar como complexo. E um cineasta no domínio absoluto dos seus meios e da abertura ao outro grande meio natural: a cerimónia de graduação aglutina o hino nacional e a nostalgia da Americana, o discurso apaixonado e confessional da professora-mãe, as lágrimas e o orgulho, com os planos contra-picados que elevam tudo isso até alturas celestiais, tornando o cerimonial uma síntese de todo o trabalho paciente, meio invisível e dedicado de anos, condensando-o pelas formas cinematográficas.
Tudo o resto, e que resto, é a consumada e natural comunhão entre a técnica e esse espírito imperturbável original, nomeadamente nas operações com as gruas que Daves foi apurando em sequências vertiginosas nos westerns para aqui as usar subtilmente, muitas vezes na intimidade, unindo os habitantes à sua terra: no funeral do patriarca, depois de perscrutar os rostos e a mágoa de um modo quase documental, a câmara olha a disposição dos presentes de cima, move-se muito lentamente até enquadrar as montanhas e os céus gigantescos, acalmando e diluindo aí as nossas dores, infinito que nos ultrapassa; pouco depois, já no meio urbano, da primeira vez que vemos o jovem Clayboy na faculdade e ele diz que esse é o mais bonito lugar do mundo, a grua entra em acção e mostra-nos os relvados, as flores e sobretudo um novo mundo que espera o elemento que ousou sair da casca. As gruas que fazem fluir levemente o movimento, tornando-o a um tempo claro e cintilante, combinadas com o ecrã rasgado (o CinemaScope…), fundindo as horizontais das planícies com a verticalidade dos seus habitantes, numa perfeita rotação complementar. Muitos exemplos deste trabalho extremamente maleável e não maquínico poderiam ser dados, dos inícios de sequências em novos espaços ou descrevendo e dramatizando eventos fortes ou significativos, até a instantes fugazes e aventureiros, ficando mais um desafio para se estar atento no riquíssimo rol de possibilidades deste grande cineasta, cheio de coração.
Spencer's Mountain é a abundância, a regeneração e o estado de graça sempre possíveis a quem decide tomar atitudes (como Fonda a ir falar com o reitor, olhos nos olhos, como deve ser), não se desinteressando pelo que o rodeia. Agradecendo, como faz uma das mais novas na oração à mesa, por cada insignificância, desde os pássaros que cantam à comida no prato à fofura do mundo que para ela ainda é tudo. THE WORLD STEPS ASIDE TO LET ANY MAN PASS IF HE KNOWS WHERE HE IS GOING, assim mesmo em capitais, é outro presente da professora ao seu filho. Obrigado, montanha.
* texto da autoria do José Oliveira, há que salientar.

Legendas em espanhol.


Amanhã, a escolha de Ana Petrucci.

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