Sicília! marca o encontro entre o cinema de Straub e Huillet e o escritor italiano Elio Vittorini, uma das mais importantes vozes da literatura de todo o século XX. O escritor é contemporâneo de Cesare Pavese (outro autor adaptado pelos cineastas) e participou fortemente na luta antifascista e que após a guerra teve posições destacadas no Partido Comunista Italiano, chegando a ser editor do jornal Unitá, O órgão central do Partido. Abandoná-lo-ia após a invasão soviética da Hungria em 1956.
O filme baseia-se na obra Conversas na Sicília, uma das mais destacadas do escritor e que tem um cunho fortemente autobiográfico. Vittorini nasceu em Siracusa na Sicília, filho de um ferroviário e tal como o protagonista, emigrou para o Norte de Itália após a adolescência. O filme marca o regresso do protagonista a uma Sicília forçosamente muito mudada relativamente ao período em que ele lá vivia. Basicamente é composto por quatro diálogos distintos: o primeiro em que se faz passar por um regressado da América, com um vendedor de laranjas que se queixa da fraqueza do negócio; o segundo num comboio com outro regressado (e que possui uma profissão suspeita nunca especificada) sobre regressos e itinerários de viagem na ilha; o terceiro e mais extenso com a mãe (antiga guarda de passagem de nível) onde é evocado o passado da família; o último com um amolador sobre o declínio da profissão. Embora o livro de Vittorini tenha sido escrito em 1941, não há, como é costume na obra dos realizadores, nenhuma tentativa de fazer um filme situado na época em que o livro foi escrito. As imagens da Sicília são as do final do século XX, o que nos permite fazer uma reflexão interessante, aliás recorrente na obra dos realizadores: o que é que mudou e o que é que se mantém. A Sicília foi historicamente uma das terras mais pobres de Itália, a mesma Sicília de gente explorada que no cinema foi imortalizada pela obra prima de Visconti, A Terra Treme A mesma Sicília que no primeiro diálogo apresenta um vendedor de laranjas a queixar-se de que os patrões lhes pagam com esse fruto, mas que depois não as conseguem vender. Neste fresco sobre a ilha, evoca-se a emigração em massa para o continente e para a América como aliás já o tinha sido em filmes anteriores e no regresso, onde o protagonista se transforma em espectador das mudanças, quantas vezes mais aparentes do que reais. No diálogo mais longo, entre a mãe e o filho, são os mesmos fantasmas do passado que provavelmente nunca deixaram de estar presentes: evocam-se episódios de infância, sobretudo aquilo que comiam e o que o protagonista, então criança, calcorreava para ir de casa para a escola, mas numa sociedade aparentemente tão puritana, torna-se quase surpreendente o relato do amor da mãe por um quase desconhecido com quem teve um relacionamento que ela assume sem quaisquer remorsos ou problemas de consciência. Afinal parece que nem tudo mudou por aí além, para além da aparência. A motivação para a realização deste filme remonta a 1972: numa viagem pela Sicília, Straub e Huillet viram o leito de um rio repleto de laranjas que tinham sido para lá lançadas para que o mercado não fosse inundado e os preços se pudessem manter artificialmente mais altos. Como é afirmado por Luiz Soares Júnior no blog Cinética: «Todo o filme é estruturado segundo uma lógica da recitação, onde presenças - lugares, comidas, gestos, hábitos - são enfileiradas umas após as outras e, por intermédio da palavra, advêm a uma plenitude material inigualável. Mas não qualquer palavra, dramática ou expositiva; a palavra straubiana é epifânica: ela mostra a coisa em seu espaço-tempo único, infinitivamente presente; o saboroso canto, o sotaque, as pausas e precipitações que emanam da emissão dos atores, fruto de muito ensaio e judicioso treino, servem justamente para isso: não se trata de mera evocação ou descrição naturalistas, mas de presentificação. Como bem diz um texto de Fitoussi sobre as filmagens do filme, "o prazer de filmar dos Straub vem de um trabalho de reencontro, reencontro com uma realidade que preexistia ao texto, e que o texto conserva em estado latente - assim, eis o prazer dos nomes em Vittorini, todos intensificados em sua enumeração pela alegria de saber que a coisa nomeada existe ou existiu». Afinal, tudo se resume no diálogo final com o amolador que gostava que todas as facas só tivessem lâminas e onde mais do que a auto-descoberta do protagonista, ou um regresso nostálgico à infância, se encontra pelo mais essencial acto da existência, ou seja, a contemplação do mundo e, provavelmente, da necessidade da sua transformação.»
Sicília! Foi estreado em Portugal e teve edição em dvd, coisa rara na sua obra. Foi na laboriosa montagem que Pedro Costa se baseou para realizar Onde Jaz O Teu Sorriso, testemunhando a sua imensa admiração pela obra dos cineastas. Neste filme a preto e branco, tão sóbrio e incisivo como a generalidade das suas obras, mas provavelmente mais acessível a um público mais vasto, onde as paisagens não são paisagens, mas diálogos silenciosos, parecem condensar- se todos os predicados da obra de Straub e Huillet. Para quem não quiser seguir a ordem cronológica do visionamento da sua obra, Sicília! Poderá ser uma porta de entrada. Seco, telúrico e certeiro como sempre.
* Texto de Jorge Saraiva
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