segunda-feira, 30 de março de 2020

A partir do dia 1 Abril


Espero que estejam todos bem desse lado. Porque vivemos num tempo de incerteza, e de medo, o My Two Thousand Movies associou-se a várias organizações para participar neste mega ciclo a partir da próxima quarta-feira. Vejam os melhores filmes, em casa.


“40 dias – 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera” é o nome do ciclo de cinema que o “Jornal do Fundão” vai promover online, em colaboração e camaradagem com os “Encontros Cinematográficos do Fundão”, “Lucky Star – Cineclube de Braga” , o blogue “My Two Thousand Movies” e “A Comuna”.

Os filmes exibidos são produto da escolha de 40 personalidades convidadas, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos, que responderam ao desafio lançado de escolher uma obra da cinematografia mundial para estes tempos de “cólera” que vivemos. O cinema é também uma forma de reflexão sobre a estranha condição humana e de evasão dos dias surreais que vivemos.

As exibições online não substituem obviamente a dimensão de ver um filme projetado numa sala de cinema, como acontece habitualmente nos Encontros Cinematográficos do Fundão, que este ano tiveram de ser adiados por causa da crise do Coronavírus. Por isso este ciclo serve apenas para promover a cultura cinéfila e estimular todas as pessoas a estarem presentes nos Encontros Cinematográficos do Fundão, no final deste ano. 

Por agora resta-nos a partilha em segurança nos ecrãs dos computadores de vossas casas através do link disponibilizado diariamente pelo blogue “My Two Thousand Movies” e pelo evento criado pelo “Jornal do Fundão” no seu facebook – clicar

A partir do dia 1 de abril até ao dia 10 de maio, serão 40 filmes a ser exibidos todos os dias pelas 22.00 horas, com a “folha de sala” contendo a escolha dos convidados e a sinopse dos filmes a ser publicada diariamente no site do “Jornal do Fundão”, deixando em suspense hitchcockiano a escolha do convidado do dia seguinte. Acompanhe este ciclo de cinema e fique em casa.

Seduzida e Abandonada (Sedotta e Abbandonata) 1964

Agnese, uma adolescente siciliana, é seduzida por Peppino, noivo da sua irmã, e fica grávida. Quando seu pai Vincenzo descobre tudo, obriga o futuro genro a casar com Agnese, mas ele foge. Vincenzo então ordena que seu filho Antonio mate Peppino.
O filme anterior de Pietro Germi, "Divórcio à Italiana", tinha sido um importante sucesso comercial entre 1961 e 1962, tendo ganho um Óscar pelo seu argumento. O único lugar onde fracassou foi no Sul de Itália, porque o público não apreciou a ironia amarga de Germi em assuntos tão sérios como o chamado "delito d'onore" (crime de honra), que era tão praticado naquelas paragens. 
Três anos depois, em 1964, Germi voltaria com um tema similar, no segundo filme da que mais tarde seria chamada da trilogia da Itália Provincial (também veremos o terceiro filme neste ciclo, na segunda parte). "Seduzida e abandonada", uma locução muito popular na sociedade italiana da década de sessenta, e que na vida real selava o destino de tantas jovens, e permitia que os seus pais e irmãos "salvassem" a honra da família vingando-se das seduzidas, enquanto que o sedutor podia safar-se casando-se com as jovens raparigas. Numa entrevista, Germi disse que fez o filme para explorar as razões porque as jovens (que normalmente eram as vítimas) se viam obrigadas a casar com os seus agressores. Queria entender porque razão a reputação era tão importante para as famílias e queria mostrar que essa era uma regra tão básica e sem mérito.
Germi sempre disse que preferia, de longe, os seus filmes dramáticos antes de "Divórcio à Italiana", alguns deles compreendidos no movimento neorrealista. Mas o sucesso mundial de "Divórcio à Italiana" fê-lo continuar no mesmo registo, com este filme a conseguir novamente grande sucesso. Saro Urzi, no papel do pai ofendido era a grande alma desta película, tendo vencido o prémio de Melhor Actor em Cannes, mas "Seduzida e Abandonada" também destacava a jovem Stefania Sandrelli, então com 18 anos, e que já se havia destacado no filme anterior de Germi. 

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domingo, 29 de março de 2020

Negócio à Italiana (Il Boom) 1963

Passado durante o milagre económico italiano, período logo depois da Segunda Guerra Mundial e que ficou conhecido como “il boom”, encontramos Giovanni Alberti (Alberto Sordi), um executivo medíocre, que se vê endividado para manter o padrão de vida da sua rica esposa Silvia (Gianna Maria Canale). Quando surge uma oportunidade de negócio que acabaria com todas as dívidas, Giovanni enfrenta o seu maior dilema.
Mais um filme de Vittorio de Sica realizado em 1963, mas este com um resultado completamente diferente de "Ontem, Hoje e Amanhã". "Il Boom" foi um fracasso na altura que estreou, tanto a nível de público como a nível de crítica, e por isso manteve-se longe dos olhos do público durante muitos anos. 
Escrito por Cesare Zavattini, o habitual colaborador de De Sica que também escreveu a trilogia do neorrealismo do realizador, alguns anos antes, tinha a acção passada no mesmo ambiente desesperado da classe trabalhadora que tinham os filmes anteriores. O conceito ainda funciona num cenário burguês, porque De Sica e Zavattini definem como o dinheiro e o poder infectam quase todas as relações humanas, pintam o retrato de uma sociedade onde tudo é transacionável.  Acontece que isto não acontece apenas em sociedades devastadas pela guerra, à beira de um colapso. Mesmo num momento de prosperidade cada um está por si próprio. 
Legendas em inglês.

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sábado, 28 de março de 2020

Ontem, Hoje e Amanhã (Ieri Oggi Domani) 1963

Três histórias sobre três mulheres diferentes e o homem que elas amam. Em Nápoles, Adelina (Sophia Loren) que é casada com Carmine (Marcello Mastroianni) um vagabundo, foi presa por contrabandear cigarros. Só que ela descobre que não pode ir para a cadeia enquanto estiver grávida. E agora, anos depois e sete filhos depois, Carmine está "ligeiramente impotente" e a cadeia parece inevitável para Adelina que tenta "incentivá-lo" de todas as maneiras. Em Milão, Anna (Sophia Loren) dirige um Rolls Royce e está aborrecida ao lado do seu amante (Marcello Mastroianni). O casal discute e troca palavras hilariantes passando por uma série de contratempos engraçados. Mara (Sophia Loren) é uma rapariga de programa cujo encontro com o "ansioso" Augusto (Marcello Mastroianni) a todos os momentos é "interrompido" pelo vizinho, um seminarista cujo compromisso com a castidade está estremecido desde o momento em que a conheceu.
Comédia satírica que revela muito sobre os escalões superiores e inferiores da sociedade italiana da década de sessenta. Ao longo de 3 partes, que são como anedotas animadas, sexys e engraçadas, Vittorio de Sica aborda questões como o absurdo sistema judicial (prisões lotadas de mulheres presas por ofensas que agora criam filhos atrás das grades), hipocrisia burguesa, culpa católica e camaradagem da classe trabalhadora perante o rosto da diferença burocrática.
Para Vittorio de Sica fazer um filme com este tom, era como uma traição aos princípios do neorrealismo italiano, no entanto acabou por ser bem recebido pelo público de todo mundo, acabando por ser um sucesso comercial um pouco por todo o lado, e ganhando o Óscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira de 1965, algo que muitos criticaram por não ter qualidade para tal. Mas De Sica era um realizador bem visto em Hollywood, e os seus filmes já tinham valido, por exemplo, o primeiro Óscar de Melhor Actriz num filme em língua estrangeira (Sophia Loren em "La Ciociara"), e nomeações para Melhores Argumentos em filmes como "Humberto D.", "Ladrões de Biciletas" e "Sciuscià", sempre com Cesare Zavattini envolvido, que também escreveu este argumento. 
Legendas em inglês.

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sexta-feira, 27 de março de 2020

Os Monstros (I Mostri) 1963

"Os Monstros" é uma compilação de 20 histórias, nas quais alternam Vittorio Gassman e Ugo Tognazzi para satirizar os mitos e as contradições tipicas do ser humano e em parte representativa da sociedade italiana dos anos 60.
"Os Monstros" confirmava o valor transcendental de muitos trabalhos rotulados genericamente de "commedia all’italiana", mas, na verdade, apropriava-se dos instrumentos mais sofisticados para dar outro ponto de vista, mais desencantado. É uma comédia de derrota e sobrevivência, juntando as espirais existenciais à surpresa dos índices económicos. Dino Risi transforma a matéria-prima da comédia social numa jornada transcendental de individualização nacional, criando sem esforço um mundo coeso e "monstruoso" da Itália emergente.
Vittorio Gassman e Ugo Tognazzi, a dupla de "La Marcia Su Roma" volta a funcionar muito bem, e um argumento onde trabalharam várias caras conhecidas, ou futuramente conhecidas, como era o caso de Elio Petri, em inicio de carreira, Ettore Scola, na quarta colaboração com Risi como argumentista, e o habitual Ruggero Maccari.

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quinta-feira, 26 de março de 2020

Os Anos Felizes (Gli Anni Ruggenti) 1962

1937, XV ano fascista. Salvatore Acquamano (Gino Cervi) é o presidente de uma pequena cidade a poucos kms de Alberobello. Um primo empregado no ministério adverte-o da chegada eminente de uma hierarquia anónima encarregue de fazer uma inspecção ao território. Convocado todo o conselho da cidade, o pânico espalha-se rapidamente, dadas as inúmeras falhas que correm o risco de ser expostas. O temido inspector é identificado na figura de um jovem estrangeiro que acaba de chegar de Roma, Omero Battifiori (Nino Manfredi), que trabalha para uma seguradora a procurar novos clientes. Começa aqui o jogo de mal entendidos que já se esperava.
Luigi Zampa, realizou este filmes em 1962, um belo exemplo de uma tragicomédia italiana, cheio de ironia e divertido, sobre um período histórico muito particular, e cujos ecos e lembranças ainda se faziam sentir naquela altura - o fascismo. 
Argumento escrito a seis mãos, em que Zampa faz uso da colaboração inestimável de Ruggero Maccari, e, principalmente, de Ettore Scola. Scola nesta altura tinha 31 anos, e ainda estava dedicado apenas a escrever argumentos, contando já com alguns trabalhos notáveis, principalmente com Dino Risi. É Scola quem impõe ao filme uma enorme carga irónica /satírica que viria a ser típica do seu cinema, poucos anos depois. 
O filme não é apenas uma comédia de que rimos graças à sucessão de situações ridículas e divertidas, tornadas ainda mais emocionantes por actores excepcionais, como é o caso de Nino Manfredi, mas é, acima de tudo, um filme que se propõe lidar com questões e problemas relativos aos 20 anos de fascismo que tinham acabado. 
Legendas em inglês.

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quarta-feira, 25 de março de 2020

Marcha Sobre Roma (La Marcia su Roma) 1962

Depois da Primeira Guerra Mundial, Domenico Rocchetti é um jovem que, em Milão, usa diferentes e engenhosos truques para extorquir dinheiro das pessoas. É obrigado a portar-se como um vagabundo, pois não tem dinheiro suficiente para comer. É neste momento que, por pura sorte, conhece Capitano Paolinelli, que recrutava membros para o partido fascista. Junto com Umberto Gavazza vai juntar-te ao partido fascista, onde ambos terão comida, mas também vão ter de matar. Esta situação irá causar uma série de momentos tragicómicos.
O fascismo foi perigoso não só para Itália, mas para toda a Europa. "La Marcia Su Roma" foi realizado em 1962, altura em que o cinema era uma parte bastante importante na cultura dos países, e o cinema italiano vivia de enorme popularidade, tanto a nível crítico como comercial. Dino Risi era já um expoente na comédia, e a escolha de um filme sobre o "fascismo" acabou por surpreender muitos espectadores. Mas o filme mostrava o que tinha acontecido 40 anos antes, quando os fascistas faziam planos elaborados para obter controle político através da persuasão e de meios violentos.
Para quem não sabe, a Marcha Sobre Roma foi uma grande manifestação fascista com características de golpe de estado, realizada a 29 de Outubro de 1922.  O evento representou a chegada ao poder do Partido Nacional Fascista (PNF) e o fim da democracia liberal. Mas de forma nenhuma o filme apoia este evento, apenas se serve da situação para contar uma história com humor.
Vittorio Gassman e Ugo Tognazzi brilham nos principais papéis.

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segunda-feira, 23 de março de 2020

Boccaccio 70 (Boccaccio '70) 1962

Quatro adaptações modernas de contos para adultos de Giovanni Boccaccio com 4 realizadores de luxo.
1-Renzo e Luciana. Luciana, a secretária, e Renzo, o jovem paquete, amam-se; mas as regras da sociedade na qual trabalham proíbem-nos de se casarem e terem filhos.
2-A Tentação do dr. António. Um puritano lança-se numa cruzada contra um cartaz publicitário, onde uma sensual mulher faz publicidade ao leite.
3-O Emprego. Um aristocrata é protagonista de um escândalo e a sua mulher vinga-se obrigando-o a pagar-lhe os seus deveres conjugais.
4-As Rifas. Uma bela mulher sujeita-se a um sorteio de rifas numa feira, mas recusa-se a acompanhar o vencedor, um sacristão, pelo facto de estar apaixonada por outro homem. 
´Boccaccio 70´ é um dos mais marcantes exemplos dos filmes em sketches, um tipo de cinema que floresceu na Europa, sobretudo em França e Itália, nas décadas de 60 e 70. A fórmula consistia em reunir um punhado de importantes realizadores, um grande elenco e um tema recorrente que cada segmento trataria segundo o estilo e a sensibilidade de cada cineasta. Aqui, sob o espírito e a livre evocação de Boccaccio, embora nenhum dos episódios seja adaptado de qualquer das suas obras, 4 grandes cineastas italianos, Fellini, De Sica, Monicelli e Visconti, abordam situações de pura ironia acerca do sexo, do desejo e das fantasias eróticas. Fellini é exuberante e fantasioso no sketch com Anita Ekberg a publicitar leite e a incendiar a libido de um puritano. Visconti adopta um realismo amargo na história da condessa que obriga o marido a tratá-la como se fosse uma prostituta. De Sica constrói um quadro de sabor revisteiro e colorido sobre a rapariga das rifas que recusa os clientes. Monicelli fala do amor proibido entre uma secretária e um paquete. 
São 4 estilos, 4 cineastas e 4 abordagens distintas do tema do sexo e das suas implicações, num filme que conta com um admirável elenco, dominado pela presença de três grandes actrizes: Anita Ekberg, Romy Schneider e Sophia Loren. 
* Texto RTP

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domingo, 22 de março de 2020

A Ultrapassagem (Il Sorpasso) 1962

Roberto, um tímido estudante de Direito em Roma, conhece Bruno, um exuberante e caprichoso homem de quarenta anos de idade, que o leva para um passeio pelas terras romanas e da Toscânia, no verão de 1962. Eles vão passar dois dias juntos, conhecer tanto a família de Roberto como a de Bruno. O tempo que Roberto passa com Bruno é hilariante, mas por vezes torna-se num emocional e impiedoso processo de maturização. 
Il sorpasso (1962) soa como qualquer velha buddy comedy, mas o talentoso elenco e realização fazem dele mais do que isso. Roberto é interpretado por Jean Louis Trintignant no seu mais romanticamente reprimido papel. Vittorio Gassman brilha com um lampejo de desespero no papel cheio de fanfarronice de Bruno, com um grande sorriso na cara. E o realizador é Dino Risi, que preparava a familiarizada Commedia all'italiana, onde ele foi um dos principais artesãs. 
"Il Sorpasso" é a definitiva combinação de comédia e road movie. Ao longo de toda a viagem (digo novamente que é um road movie, e é para ser classificado entre os melhores do género), os dois personagens mudam e temos a estranha sensação de que quanto mais os vemos menos os conhecemos. Roberto é uma jovem muito tímido, ao contrário do desconcertante Bruno, que serve como contraponto com outra personalidade. A personalidade de Bruno é especial, é um veterano que falhou em tudo, e passa todo o tempo a viajar no seu carro desportivo. Todo o argumento desenvolve um humor suave, mas constante, o que nos faz manter o sorriso durante todo o filme, enquanto mostra o retrato de uma maravilhosa Itália dos anos 60, que inclui a banda sonora sensacional de Riz Ortolani. Além disso, temos a fotografia num branco e preto evocativo de Alfio Contini. 

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O Último Julgamento (Il giudizio universale) 1961

Uma voz poderosa e misteriosa ecoa nos céus de Nápoles: anuncia o dia do julgamento final, às seis da tarde. Então, uma multidão de pessoas empolgadas move-se sob a influência daquela voz implacável. Depois do início do grande julgamento, o qual todos podem sentir presente através da televisão, o Juízo Final é abruptamente interrompido por uma chuva torrencial. Será que a tempestade dramática e definitivamente o juízo, apagando a Terra e todos os seus males?
Bem fresco do sucesso internacional de "La Ciociara" (1960), a dupla Vittorio de Sica e Cesare Zavattini, realizador e argumentista do filme anterior, receberam carta branca de De Laurentiis para fazerem o que quisessem, com um elenco internacional de estrelas na folha de pagamento, saindo um filme sobre o fim do mundo, no qual a sua forma episódica é levada ao extremo, dividido em 40 sketches, instantâneos ou mais elaborados. Surrealismo, fantasia, sátira, são alguns dos componentes, também com um certo moralismo à mistura.
Hoje em dia é um filme muito esquecido, mesmo na carreira de De Sica, mas vale a pena referir aqui uma parte do elenco de estrelas: Fernandel, Anouk Aimee, Melina Mercouri, Nino Manfredi, Vittorio Gassman, Silvana Mangano, Jack Palance, Eleanora Brown, Lino Ventura, Alberto Sordi, Ernest Borgnine, Akim Tamiroff, Jimmy Durante, e o próprio De Sica.

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sábado, 21 de março de 2020

Divórcio à Italiana (Divorzio all'italiana) 1961

Ferdinando Cefalù está desesperado para casar com a prima, Angela, mas é casado com Rosália e o divórcio é ilegal em Itália. Para conseguir contornar a lei ele vai tentar com que a esposa tenha um caso, para que possa apanhá-la e assassiná-la, pois sabe que apanharia uma sentença leve por assassinar uma mulher adúltera. Ferdinando consegue convencer um pintor a ter um caso com a sua esposa, mas Rosália prova ser mais fiel do que ele pensava.
"Divorzio all'italiana" foi um grande êxito internacional logo desde a estreia, e é fácil de perceber porquê. O realizador Pietro Germi, que no início tinha proposto fazer um filme sério, consegue captar o chamado "código de honra" da Sicilia, que estipula que o assassinato pode ser desculpável, o adultério nunca, um paradoxo que facilmente seria satirizável. Marcello Mastroianni, recém saído de "La Dolce Vita", de Fellini, é maravilhoso no papel principal, interpretando um homem que queremos desprezar, mas do qual não conseguimos deixar de rir: a sua expressão perante a impotência e ocasionais espasmos faciais são realmente hilariantes. O argumento nunca é previsível, há voltas e reviravoltas inesperadas, que nos mantém o interesse até ao fim.
Pietro Germi, um realizador que vinha do neorrealismo, com uma carreira que vinha desde os anos 40, era na altura um desconhecido fora de Itália, no entanto acabaria por vencer o Óscar de Melhor Argumento Original em 1963, em conjunto com Ennio de Concini e Alfredo Giannetti. Um ano em que esta categoria contaria com outros dois filmes em língua estranheira: "Em Busca da Verdade" de Ingmar Bergman, e "O Último Ano em Marienbad", de Alain Resnais. Outra curiosidade, é que Mastroianni também seria nomeado para o Óscar de Melhor Actor. Seria o primeiro actor a ser nomeado por um filme em língua estrangeira, e a sua primeira de três nomeações.

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Uma Vida Difícil (Una Vita Difficil) 1961

No Dongo, durante a Segunda Guerra Mundial, Silvio Magnozzi, um partigiani em fuga, conhece Elena que lhe salva a vida e o esconde dos alemães durante 3 meses. Silvio volta depois a juntar-se à Resistência Italiana e acabada a guerra regressa a Roma para trabalhar num jornal de esquerda. É então que volta a encontrar Elena que foge para a capital para viver com ele. Atravessando juntos as várias fases do pós-guerra italiano, a vida a dois será plena de dificuldades. 
Ao lermos a sinopse de "Una Vita Difficil", de Dino Risi, ficamos com a ideia de ser um filme trágico e bastante triste. E enquanto a história de um combatente da resistência comunista que volta para casa depois da Guerra tem raízes no neorrealismo, a abordagem do realizador é diferente da geração anterior de cineastas.  Risi mantém tudo muito mais leve e divertido, mesmo quando o personagem de Alberto Sordi está a passar dificuldades maiores. Esta qualidade de resolver problemas sérios com humor é uma característica do cinema italiano, mais especificamente da commedia all'ittaliana.
"Una Vita Difficil" também nos dá uma boa imagem do boom depois da guerra e das diferenças de mentalidade entre o Norte rico e o Sul pobre, de Itália, que levaram ao problema de Mezzogiorno. De repente houve oportunidades para aqueles que estavam dispostos a seguir as regras. Muitos estavam esperançosos de fazer riqueza, enquanto que os que não estavam dispostos a seguir as massas eram simplesmente deixados de lado. 
Alberto Sordi e Lea Massari são os protagonistas.

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sexta-feira, 20 de março de 2020

O Ladrão Apaixonado (Risate di Gioia) 1960

Na véspera de Ano Novo, em Roma, uma actriz interpretada por Anna Magnani está cheia de esperança para a noite. Ela anseia por romance, aventura e emoção, e encontra os três, mas não da forma como tinha previsto. Encontra um empresário americano de meia-idade, bêbado, interpretado por Fred Clark. Encontra outro actor da Cinecittá, interpretado por Totò, então com 62 anos de idade. E finalmente conhece Ben Gazzara, então com 30 anos, o personagem do título. 
"Risate de gioia" foi o filme que Mário Monicelli realizou logo depois dos mega êxitos de "I Soliti Ignoti" e "La Grande Guerre", duas obras que foram triunfos absolutos, tanto da crítica como do público, mas no entanto acabou por passar muito ao lado de uma boa carreira, sendo hoje um dos segredos mais bem escondidos da carreira do realizador. Monicelli captura toda a tensão que tradicionalmente acompanha a véspera do Ano Novo. uma noite em que pensamos no nosso progresso como seres humanos, e na nossa capacidade de atrair e sustentar amor na nossa própria mortalidade. 
Não houve artista que igualasse a energia vibrante da actriz italiana Anna Magnani, estrela furiosa que enfeitou algumas das melhores obras de realizadores como Rossellini, Visconti, Pasolini e Renoir, com uma perninha no cinema americano, tendo conseguido ganhar um Óscar por "The Rose Tatoo" de Daniel Mann. Aqui muito bem acompanhada por Totò, um colaborador habitual e um jovem Ben Gazarra em início de carreira, dobrado em italiano. Uma das joias perdidas a ver neste ciclo.

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O Herói da Cidade (Il Vigile) 1960

Otello Celletti (Alberto Sordi) é um ex-soldado desempregado de uma pequena cidade italiana. Desde o final da guerra que ele vive com o pai e a família às custas do cunhado, Nando. Um dia recebe uma carta a dizer que tem um emprego como transportador no mercado da cidade, apesar do seu pedido para ir para a polícia. Não querendo aceitar este emprego, procura o presidente da cidade (Vittorio de Sica) que lhe consegue o emprego que ele procurava. Como polícia, Otello pode finalmente vingar-se de todos os que o provocavam no período pós-guerra, quando ele não tinha emprego, mas logo coneça a ter problemas com os seus deveres...
Comédia sobre o povo italiano que se atreve a subir na sociedade e desafiar os poderosos. Feito de uma forma cómica mas numa veia mais realista, uma típica comédia neorrealista que era tão popular no início da década de sessenta, e como já era habitual, com Alberto Sordi numa grande interpretação. Atrás das câmaras tínhamos Luigi Zampa, que por esta altura fazia comédias grotescas que criticavam a sociedade italiana, mesmo sem ter um alvo fixo, concentrando-se sobretudo na piada. 
Apesar de ter estreado com a célebre frase "qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência", na realidade o filme foi inspirado numa notícia que foi publicada em Julho de 1959. Deixava claro o quanto irrealista era a rebelião de uma pessoa fraca, e como as más práticas e a corrupção são aceites pelas pessoas como coisas normais. 
É um filme bastante raro. Legendas em inglês.

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quinta-feira, 19 de março de 2020

Tutti a Casa (Tutti a Casa) 1960

Surpreso com o armistício de 8 de Setembro de 1943, um segundo tenente une-se com pouca convicção aos retardatários que tentam voltar para casa. Leal ao dever, ele não entende o que está a acontecer:  a luta partidária, a violência dos alemães, as deportações. A morte de um amigo, morto a poucos passos de casa, leva-o a juntar-se à revolta popular de Nápoles.
Luigi Comencini foi um dos realizadores mais activos no período da Commedia all’italiana, com uma carreira que se prolongou pelas décadas de 60 e 70, além de já ter realizado algumas comédias anteriormente. E "Tutti a Casa" é talvez a sua melhor comédia, com Sordi de volta a uma comédia passada em tempo de guerra, como já tinha acontecido em "La Grande Guerre". "Tutti a Casa" faz também parte de um conjunto de filmes que, no início da década de sessenta, tentava desculpar-se dos erros que o país havia cometido no passado, alcançando não a vitória, mas a dignidade.  
Um elenco de luxo a acompanhar Alberto Sordi, onde constavam os nomes de Serge Reggiani, Varla Gravina, e Martin Balsam, na altura um ilustre desconhecido das séries norte-americanas, mas que teria uma perninha em "Psico" de Alfred Hitchcock, neste mesmo ano.

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quarta-feira, 18 de março de 2020

O Castigador (Il Mattatore) 1960

Gerardo Latini (Vittorio Gassman) é um ex-vigarista, agora casado e trabalhador honesto, mas ansiando pela vida que levava antes. Um dia o casal recebe a visita de um jovem vigarista que quer vender um castiçal de prata a um peço muito baixo. Gerardo, depois de perceber as suas verdadeiras intenções, sente-se identificado e percebe o jovem e, por esse motivo, contará a sua história e toda a sua carreira na arte da vigarice e do disfarce.
Comédia episódica maravilhosamente agradável realizada por Dino Risi, interpretada por Vittorio Gassman como um actor camaleónico que disfarça a sua paixão pelo roubo e Peppino de Fillipo como o seu cúmplice, foi filmada em Roma e nos seus subúrbios recém-erguidos, reflectindo uma cidade num crescimento desenfreado. Segundo Risi, foi uma fase de transformação para Gassman, que ainda não tinha uma cara reconhecível no cinema, mas o actor exibia já vários rostos diferentes em filme.
Uma nota para o argumento de Ettore Scola, então com 29 anos e ainda longe de realizar o seu primeiro filme. Antes de se iniciar na realização ele escreveu várias comédias de sucesso para Risi, como por exemplo, e além desta, "Il Sorpaso", "La Marcia su Roma" e "I Mostri". Mais tarde, Scola viria a ser um dos grandes nomes da "Commedia all’italiana".
Nota: as legendas não estão muito boas, mas tiveram mesmo de ser estas.

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terça-feira, 17 de março de 2020

O Viúvo Alegre (Il Vedovo) 1959

Alberto Nardi é um homem de negócios à beira da falência. Casado por interesse com uma empresária de Milão, dona de uma grande fortuna, Alberto não cabe em si de contente quando o comboio que a transportava cai de uma ponte e não deixa sobreviventes. Convencido que a mulher está morta, o empresário começa a sonhar com a vida que levará depois de herdar toda a sua fortuna. No entanto, em breve descobrirá que afinal ela está viva. A frustração dessa notícia leva-o a engendrar um plano maléfico para garantir que desta vez ela morre mesmo!
Primeira grande colaboração entre Dino Risi e Alberto Sordi, com um papel não muito diferente do que o actor interpretaria em "Il Boom", de Vittorio de Sica. Um dos argumentistas, Rudolfo Sonego, baseou-se num caso famoso para escrever o argumento, o caso Fenaroli de 1958, no qual um industrial supostamente assassinou a esposa para ficar com o dinheiro do seguro. Foi um caso muito falado na altura, com cerca de 20 mil pessoas a esperarem do lado de fora para ouvir o veredicto. 
O personagem de Sordi fica em êxtase quando descobre que a sua esposa morreu num acidente de comboio, mas para o seu horror ela sobrevive, o que o leva a completar o serviço pelas suas próprias mãos. A situação causa bastantes gargalhadas, mas tal como muitos outros filmes deste movimento, também existe um lado negro. Sordi nunca perde o ritmo, e Franca Valeri como a sua esposa também está muito bem.

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segunda-feira, 16 de março de 2020

A Grande Guerra (La Grande Guerra) 1959

Itália, 1916. Oreste Jacovacci e Giovanni Busacca são recrutados, como todos os jovens italianos, para servir o exército na Primeira Guerra Mundial. Eles encontram-se no recrutamento, onde Giovanni suborna Oreste, na esperança de conseguir um adiamento médico. Oreste aceita o dinheiro, mas não cumpre com o prometido. Os dois estão destinados a servir como camaradas na mesma unidade, e encontram-se no comboio para a frente de batalha. Não é o ambiente mãos favorável para se tornarem amigos, mas vão ter de colocar as diferenças de parte.
Já tinha deixado algumas palavras sobre este filme na introdução do ciclo. Nasceu do grande sucesso de "I Soliti Ignoti", realizado pelo mesmo Mario Monicelli. Foi um projecto arrojado, uma comédia dramática de grande orçamento, que não era habitual nos tempos que corriam. "La Grande Guerre" vive, sobretudo, da grande química que existe entre o duo de protagonistas, interpretados por Alberto Sordi e Vittorio Gassman. Duas interpretações incríveis, que iriam tornar esta dupla de actores as principais faces deste género de cinema. Dois soldados que são covardes, e que em situações difíceis se tornam heróis.
Uma menção especial para Silvana Mangano, à data casada com o produtor Dino de Laurentiis, como a prostituta Constatina, que se apaixona por Giovanni. O elenco de apoio também é muito bom, como nomes como Folco Lulli , Bernard Blier , Romolo Valli , Carlo A'Angelo , Livio Lorenzon e Gerard Herter, e a fotografia evocativa de Giuseppe Rotunno, um habitual colaborador de Fellini e Visconti. A banda sonora é do grande Nino Rota.
Foi nomeado para o Óscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira, e ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza.

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domingo, 15 de março de 2020

Gangsters Falhados (I Soliti Ignoti) 1958

Cosimo (Memmo Carotenuto) é um pequeno ladrão que é preso por tentar roubar um carro.  Depois de ser condenado, pede à namorada (Rossana Rory) e ao advogado que encontrem alguém que, por 100.000 liras, ocupe o seu lugar na cadeia para que ele possa fazer o assalto perfeito a uma loja de penhores. O boxeur Peppe (Vittorio Gassman) concorda trocar de lugar com Cosimo, mas o juiz não acredita na sua história, e acabam os dois presos. Na prisão, Peppe fica a saber sobre o assalto, e como sai antes de Cosimo da cadeia, resolve recrutar o gang de Cosimo para fazer o assalto.
Embora o ritmo do filme seja bastante lento, é interessante observar estes pequenos criminosos enquanto planeiam o assalto. Como previsto, como se trata de uma "Commedia all'italiana", nada corre conforme o planeado. O apartamento ao lado da loja de penhores parecia estar vazio, e de repente duas senhoras de idade mudam-se para lá, mal saindo de casa. Pelo caminho encontram uma série de situações que complicará ainda mais os seus planos.
No início "I Soliti Ignoti" funcionava como uma espécie de remake, ou paródia, de "Rififi" (1955), de Jules Dassin, visto como o pai de todos os filmes de assaltos, mas o filme italiano acaba por alcançar um lugar na história do cinema, por mérito próprio, e dar início a este novo género do cinema italiano. Personagens maravilhosas, argumento fantástico, fotografia perfeita. Um sentido de humor incrível, embora muitas das piadas não sejam percetíveis por audiências fora de Itália, porque têm a ver com trocadilhos da linguagem italiana, e também um elenco maravilhoso como podem ver a seguir. 
Vittorio Gassman era uma revelação no papel que mudaria a sua carreira. Até então era conhecido mais por papéis dramáticos, mas como verão neste ciclo tudo mudaria a partir daqui. O restante elenco inclui nomes como Marcello Mastroianni, Renato Salvatori, Claudia Cardinale (num dos seus primeiros papéis), e Totò, que é uma espécie de consultor do gang. 
Foi nomeado para o Óscar de Melhor Filme em Língua estrangeira, mas acabaria por perder para outra comédia: "O Meu Tio", de Jacques Tati.

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sábado, 14 de março de 2020

Viagem pela Commedia all’italiana

No início dos anos 50 do século XX um género de comédia chamado "neorealismo rosa" tornou-se no género de maior sucesso em Itália, até ao final dessa década. Como o próprio nome sugere, o neoralismo rosa apresentava-nos retratos neorrealistas da miséria do pós guerra como pano de fundo para as histórias de romance tradicionais. Nessa mesma altura, no entanto, outros e muito menos populares filmes interpretados pelo jovem Alberto Sordi introduziram um tipo completamente diferente de comédia. Entre eles, também com Sordi como protagonista, contavam-se os primeiros filmes de Federico Fellini, "Lo Sceicco Bianco" (1952) e o seu sucessor "I Vitelloni" (1953). Numa breve cena, mas inesquecível, no final deste último, Sordi, que interpreta um jovem ocioso que ainda mora com a mãe e a filha mais velha segue no banco de trás de volta para casa, com os seus amigos desempregados, e ao passarem por um grupo de trabalhadores na estrada, grita "Lavoratori!" (trabalhadores) enquanto lhes mostra o dedo do meio (na verdade todo o antebraço, como é comum em Itália. A diferença entre os personagens de classe média, como era Sordi, e a ética da classe trabalhadora do "neorealismo rosa" não podia ser marcada de uma forma mais brutal, como nesta sequência. Apesar da reacção violenta, mas compreensível, dos trabalhadores, esta curta sequência marcaria uma o inicio de uma nova era do cinema italiano, um inovador género que teria um grande futuro, a  Commedia all’italiana.
Commedia all’italiana é um dos géneros italianos mais populares, ou talvez o mais popular de todos os tempos, que se espalhou por quase 3 décadas, desde meados dos anos 50 até ao início dos anos 80. Na verdade, críticos e estudiosos de cinema atribuem o seu nascimento oficial alguns anos depois dos filmes de Fellini, em 1958, devido ao enorme sucesso do filme de Mario Monicelli "I Soliti Ignoti", que supostamente estabeleceu os padrões para todo o género. É impossível negar que este filme funcionou como um divisor no território da comédia italiana. Depois do seu grande sucesso comercial e crítico, recebeu uma nomeação para o Óscar, e o produtor Dino de Laurentiis decidiu apoiar o novo projecto do realizador Mário Monicelli, um projecto controverso e ambicioso de grande orçamento, cómico-dramático passado durante a Primeira Guerra Mundial, "La Grande Guerre" (1959), com Alberto Sordi e Vittorio Gassman.
Este segundo filme foi novamente um triunfo, e partilhou o prestigioso prémio Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1959 com "General Della Rovere" de Roberto Rosselini. Nesta altura produtores e distribuidores estavam já convencidos que estes filmes com uma mistura de comédia e drama, mesmo com uma abordagem cómica invulgar como "La Grande Guerre", ou uma comédia com elementos trágicos, tinham grande potencial artístico, e, acima de tudo, comercial.
O festival de Veneza de 1959 foi assim visto como um momento de transição, de Rosellini para Monicelli, em que o legado neorrealista será assumido pela Commedia all’italiana.

Posto isto, vamos assim dar inicio a esta viagem, que iniciará com os filmes do Monicelli, e se prolongará até ao inicio dos anos 80.  Uma boa oportunidade para rirem um pouco, numa altura em que o mundo não está propício para tal. Boa viagem a todos.


sexta-feira, 13 de março de 2020

Europa 2005, 27 de Outubro (Europa 2005 - 27 Octobre) 2006

Em 27 de Outubro de 2005 num subúrbio pobre de Paris, Clichy-sous-Bois, Zyed Benna (17 anos) e Bouna Traoré (15 anos), morreram electrocutados quando fugiam à polícia que tinha efectuado uma rusga nesse local. Os jovens que tinham estado a jogar futebol com amigos, entraram em pânico e fugiram para o local errado, ou seja, a central eléctrica onde acabaram por ser vítimas do fatal acidente. Esta tragédia levantou uma enorme onda de indignação não só junto da comunidade muçulmana da localidade, mas também entre a população em geral, questionando-se fortemente a actuação das forças policiais na periferia das grandes cidades. Mais do que isso, a actuação da polícia, frequentemente acusada de brutalidade racista, apenas é a parte mais grotesca de uma situação mais profunda: a marginalização das comunidades imigrantes das grandes cidades, acantonadas em subúrbios, com péssimas condições de vida, frequentemente sem emprego, ou com empregos precários e mal pagos e sem quaisquer perspectivas de ver as suas situações poderem melhorar.
Europa 2005, 27 de Outubro é um pequeno filme de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet com cerca de dez minutos e meio de duração. O filme partiu de uma encomenda da RAI 3 por ocasião do centésimo aniversário do nascimento de Roberto Rossellini. Foi pedido a vários realizadores, entre os quais Manoel de Oliveira, David Lynch e Hou Hsiao-hsien) que realizassem curtas metragens inspiradas na personagem Irene, representada por Ingrid Bergman, do filme do mestre italiano Europa 51. O contributo de Straub e de Huillet excede um pouco os sete minutos solicitados e procura da forma original e radical que lhes é comum, transportar o cinema empenhado e militante de Rossellini para o início do século XXI. Por isso Europa 2005, 27 de Outubro, o dia em que os dois adolescentes morreram electrocutados, aborda esse acontecimento de uma forma simples, directa e crua, quase panfletária. O filme consiste em cinco reproduções com cerca de dois minutos cada, do local onde se situa a central eléctrica onde os dois jovens morreram. Uma rua anónima, com casas rodeando a referida central, iniciando-se com o aviso STOP NE RISQUE PAS TA VIE colocada junto às instalações e a câmara a filmá-la, assim como as imediações. Isto é todo o conteúdo do filme. No final em letras brancas surge a frase Chambre à gaz, Chaise electrique. Não há pessoas nem palavras, apenas ruídos naturais, entre os quais um cão que ladra. As quatro repetições têm apenas pequenas diferenças de enquadramento de imagens e de som. 
Três aspectos afiguram-se-me absolutamente centrais nesta curta metragem: o local, a repetição e a mensagem implícita. Sabe-se que Straub e Huillet sempre privilegiaram os locais onde filmavam fossem eles, na Sicília, em França ou no Egipto. Aquela rua feia junto à central eléctrica não tem qualquer tipo de atracção, mas foi lá que os jovens perderam a vida, logo deve ser lá que o filme deve ser feito. A repetição tem um efeito de consolidação da mensagem, como se a monstruosidade do que se passou nesse dia, deva ser recordada tantas vezes quantas as necessárias. Finalmente a mensagem implícita não precisa de proclamações. Bastam as imagens secas e aparentemente não emotivas do local onde tudo se passou e a frase final que associa as câmaras de gás à cadeira eléctrica. Associamos a câmara de gás e a cadeira eléctrica a duas formas de executar os condenados à morte. Mas também associamos a câmara de gás ao horror nazi como supremo acto de barbaridade racista. É o mesmo racismo, corporizado na polícia, que mata um jovem árabe e um jovem negro. Afinal, e essa é uma das ideias mais fortes de todo o seu cinema, a história vai-se repetindo não exactamente da mesma forma, mas mantendo as suas características essenciais. Trinta e três anos depois do seminal Lições de História, aqui está uma exemplar comprovação de uma desordem injusta que se perpetua no mundo. 
É o primeiro filme de Straub e Huillet filmado em tecnologia digital. Paradoxal e infelizmente, é também o último em que Huillet participa, antes do seu falecimento em 9 de Outubro de 2006. O que fica destes dez minutos e meios é um dos panfletos mais inteligentes e eficazes que alguma vez vi em cinema. Não são precisos grandes meios, nem grandes proclamações. Basta encontrar o sentido justo e a forma adequada para a seta encontrar o alvo.
Não precisa de legendas
* texto de Jorge Saraiva 

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quinta-feira, 12 de março de 2020

Estes Encontros Com Eles (Quei Loro Incontri) 2006

«Numa carta, Pavese (1908-1950) escreveu: “Não sei se encontrarei o tesouro de Montezuma, mas sei que sobre o planalto de Tenochtitlan fazem-se sacrifícios humanos. Após muitos anos, não pensava mais nessas coisas, eu escrevia. Agora nem escrevo mais! Com a mesma obstinação, com a mesma vontade estoica de Langhe, farei minha viagem ao reino dos mortos. Se queres saber o que sou no presente, releia ‘a besta selvagem’ nos ‘Diálogos com Leucò’: como sempre, tudo previ há cinco anos. Quanto menos falares desta história com as ‘gentes’, mais te serei agradecido. Mas o poderei ainda?”.
Na mesa do quarto onde foi encontrado morto o autor que escreveu que “o estoicismo é o suicídio”, estavam caixas de soníferos e um exemplar do referido livro aberto na primeira página, com a frase visível: “Eu perdoo todo o mundo e peço perdão a todo o mundo. Está bem? Sem tagarelices demais por favor”. Pouco antes de morrer, anotou numa carta: “Ninguém lê os ‘Diálogos com Leucò’, embora seja meu único livro que vale alguma coisa”.» (blog Trópico)
Esses Encontros Com Eles marca o regresso de Straub e Huillet aos livros de Cesare Pavese que já tinham sido objecto da sua atenção em Das Nuvens à Resistência. Regresso a os Diálogos com Leucò, o livro favorito do escritor. Seria também a última longa metragem realizada por ambos, uma vez que Danièle Huillet morreria em 9 de outubro de 2006. Do ponto de vista formal representa o final de uma trilogia com dois filmes anteriores (Operários Camponeses e Humilhados/O Regresso do Filho Pródigo) já que os actores são os mesmos e foi rodado nos mesmos locais. O filme adapta os cinco últimos diálogos do total de vinte e sete da referida obra de Pavese. É provavelmente o mais filosófico filme dos realizadores. Os cinco diálogos apresentam-nos sempre duas personagens diferentes, ora humanos, ora divinos, representados por actores imóveis e captados em planos fixos de forma a dar primazia absoluta às palavras, evitando qualquer tipo de distração. Estes deuses mitológicos estão longe da tradição perfecionista das grandes religiões monoteístas, sobretudo da tradição judaico-cristã. A sua relação com os humanos não deve se vista na perspectiva de Kierkegaard de uma «relação sem relação» Se no filósofo dinamarquês a transcendência divina reduz o ser humano a uma inferioridade desesperada, nas mitologias clássicas, os deuses sem deixarem de o ser, surgem despidos dessa irredutível transcendência. São deuses quase humanos com as suas fraquezas e vacilações. Diria, citando de cor o filósofo alemão Ludwig Feuerbach, a expressão da criação humana à sua imagem e semelhança. E por isso, surgem naturalmente os diálogos possíveis, quase entre iguais, travados por seres humanos e deuses. É a morte, o amor, o significado da vida e a relação que se estabelece entre seres tão próximos, mas ontologicamente distintos. O sentido da procura da compreensão e dos projectos que os deuses têm para os seres humanos, sempre alvo de um misto de admiração e reserva, atravessam estruturalmente estes diálogos. 
No fundo, o que pode levar um escritor conotado com o neo-realismo a escrever um livro deste tipo e a considerá-lo o seu favorito? Pavese foi um resistente antifascista que sofreu as agruras das prisões de Mussolini e que participou nas guerrilhas de libertação. Foi membro do Partido Comunista Italiano e redactor do Unitá, o jornal oficial do partido. Era assumidamente agnóstico. A generalidade da sua obra enquadra-o nos escritores italianos com forte consciência social. Face ao conjunto da sua obra, Diálogos com Leucò é considerado um livro bizarro, extremamente bem escrito, mas dissonante da sua obra. Pelo menos à primeira vista. Nem sequer é a sua obra final, uma espécie de testamento de alguém que quer seguir outro caminho. Antes do seu suicídio em 1950, Pavese publicaria ainda mais quatro livros, com destaque para a sua obra mais conhecida dentro e fora de Itália, A Lua e as Fogueiras. Esta manifestação de heterodoxia, ou mesmo de heresia face a uma ideologia normalmente pouco permeável a este tipo de dissonâncias, terá fascinado Straub e Huillet que sempre gostaram de heterodoxias, apesar das suas firmes convicções. O resultado é um filme extremamente belo, marcado pelo ritmo das palavras e que seria, infelizmente, o último de grande fôlego em que Danièle Huillet participou.
* texto de Jorge Saraiva

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quarta-feira, 11 de março de 2020

Uma Visita ao Louvre (Une visite au Louvre) 2004

Uma Visita ao Louvre é o regresso a um filme feito quinze anos por Straub e Huillet: Cézanne. Voltam a estar presentes os diálogos entre o pintor e o seu amigo, poeta e crítico de arte Joachim Gasquet conforme foram recolhidos no seu livro sobre o pintor. Straub e Huillet mantêm a forma de abordagem das palavras com Huillet a ler em voz off todas as partes respeitantes a Cézanne, interrompidas muito esparsamente por pequenas perguntas que são lidas por Straub. Continuamos a ter um formato de média metragem desta vez com cerca de quarenta e cinco minutos de duração.
Se aparentemente estamos em presença de filmes semelhantes, na realidade são duas obras absolutamente distintas, embora complementares. Em Cézanne o pintor falava da pintura em geral e da sua pintura em particular. Aqui o autor analisa criticamente e numa linguagem profundamente expressiva as impressões que lhe causam as obras (pintura e escultura) de outros autores, nomeadamente alguns dos que estão expostos no Museu do Louvre, ou seja, praticamente de épocas anteriores à vaga surrealista da segunda metade do século XIX. Num tom sereno e sem vacilações, Danièle Huillet vai transmitindo a opinião, frequentemente heterodoxa, de Cézanne sobre um conjunto de quadros e de pintores. Os quadros são filmados em panos fixos e na sua íntegra, sem zooms para pormenores, para o espectador poder ter uma visão de conjunto dos mesmos. Mas o que é particularmente saboroso (perdoem-me a utilização deste adjectivo, mas é aquele que se me afigura mais adequado) são as reflexões de Cézanne sobre estes quadros. Tomo a liberdade de citar aqui algumas das suas reflexões:

«Eu não compreendo verdadeiramente Giotto. Gostava de tê-lo visto, mas já estou muito velho para voltar a Itália»

«A verdadeira pintura só começaria com os venezianos»

«Holbein, Clouet ou Ingres não têm nada além da linha. Ora isso é muito belo, mas não basta»

«David matou a pintura»

«O que marca o grande pintor é a personalidade que ele empresta a tudo o que toca, impulsiona, movimenta, apaixona, pois é possível ser apaixonado e sereno»

«Para amar uma pintura é preciso primeiro sorvê-la em grandes goles. É preciso perder a consciência»

«Nós perdemos este conhecimento da preparação, esta liberdade e vigor adquiridos sob a pintura»

As referências continuam sempre de forma polémica e apaixonada denegrindo os quadros de que o pintor não gosta e transparecendo uma intensa emoção sobre obras de Tintoretto e Delacroix que estão entre os seus favoritos. Mas o que mais fascina é este constante opinar, este «tomar partido» sem ambiguidades nem hesitações. Straub e Huillet mostram-nos os quadros em planos fixos, intervalados por breves separadores em que o ecrã fica negro, deixando-os respirar e terem vida própria. O que é deveras interessante, sobretudo para quem não é particularmente versado em pintura (como é o meu caso) é que as reflexões que acompanham os quadros, ajudam a interpretá-los e a avaliá-los, independentemente da concordância com as opiniões do crítico Cézanne. 
Cada plano do filme acaba por se tornar, ele próprio, um quadro, ou, pelo menos uma relação entre a imagem do cinema e o objecto em si mesmo. Sempre feito de forma seca, no sentido em que não existem quaisquer artifícios para além dos quadros que se observam e a opinião crítica sobre eles. Exceptuando as imagens iniciais nas imediações do museu, um breve plano sobre o Sena e as imagens finais de uma floresta intensamente verde que evoca a mesma Sicília dos filmes imediatamente anteriores, tudo o mais é filmado dentro do museu, mas apenas dos quadros analisados. É esta demanda que transforma Uma Visita ao Louvre num filme belíssimo. Tudo pode ser simplesmente sintetizado no texto da Cinemateca: «O resultado é nada menos do que “um filme fabuloso, uma das mais entusiasmantes experiências cinematográficas dos últimos tempos. Começar por onde, destacar o quê, explicar o quê?” (Luís Miguel Oliveira»
Legendas em Inglês
* texto de Jorge Saraiva

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segunda-feira, 9 de março de 2020

Humilhados / O Regresso do Filho Pródigo (Umiliati) 2003

A descoberta da obra de Elio Vittorini feita com Sicília (1999) possibilitou num curto espaço de tempo a realização de vários filmes por parte de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, nalguns casos surgidos como variações de obras anteriores. É o caso de L`arrotino (2001) de sete minutos com takes alternativos da cena final de Sicília, ou seja, do diálogo entre o protagonista e o amolador. Igualmente de Sicília é Il Viandante (cinco minutos) que retoma o diálogo entre o filho e a mãe. Finalmente de Operários Camponeses há ainda Dolando, com apenas sete minutos.
Humilhados e o Regresso do Filho Pródigo são igualmente duas variações sobre Operários Camponeses. Mas, desta vez não se trata de retrabalhar o material fílmico, mas de buscar outro excerto da obra de Gente de Messina de Vittorini. Embora se trate do mesmo contexto, este filme não é uma variação daquele. Voltamos à mesma comunidade siciliana e à floresta onde os actores leem ou recitam excertos do referido livro. Estamos na presença da mesma comunidade de trabalhadores que cria uma cooperativa na Itália recém-libertada do fascismo. Na primeira parte recebem um emissário do governo que tem a função de cadastrar as propriedades existentes no sentido de as devolver aos seus anteriores donos. O filme é, todo ele, defensor de uma concepção marxista da economia. Está aqui implícita uma infindável discussão entre legalidade e legitimidade a propósito da questão da propriedade. Pela lei, as terras e as casas devem pertencer aos seus antigos proprietários em nome da ordem burguesa de aquisições e heranças. Mas se são os trabalhadores que trabalham a terra, esta deve legitimamente pertencer-lhes a partir do princípio marxista de que deve pertencer aos trabalhadores o controlo dos meios de produção. Esta discussão transportou-me para o período subsequente ao 25 de Abril em Portugal quando havia uma acesa polémica sobre a posse da terra na zona da Reforma Agrária. A terra que estava seca e inculta foi irrigada e cultivada pelos trabalhadores que a ocuparam, tornando-a fértil. A pseudo generosidade do proprietário consiste em arrendar a terra o que só fará aumentar os seus lucros e reforçar a exploração. Em vez de ter uma terra inculta, receberá o lucro do trabalho feito pelos outros. Na segunda parte do filme alguns membros da cooperativa são confrontados com três homens armados e discutem sobre a rentabilidade económica do trabalho que arduamente desenvolveram de reconstruir a propriedade ocupada. O trabalho torna-se pouco rentável face à energia despendida, sobretudo se se tiver em conta que produzindo de forma industrializada, as grandes potências conseguem colocar os mesmos produtos a metade do preço. A partir daí desenvolve-se com uma análise da relação possível entre as grandes empresas capitalistas multinacionais e as pequenas empresas de aldeia. O filme termina com uma das imagens mais icónicas de toda a extensa filmografia de Straub e Huillet: uma mulher descalça, sentada à porta da sua casa, com o rosto ocultado pelas mãos. 
Paradoxalmente, este filme acaba por ter uma dimensão muito mais explicitamente ideológica do que Operários Camponeses. Se na primeira adaptação de Mulheres de Messina, o texto demora-se muito nas memórias e nos conflitos entre os membros da comunidade, nesta curta metragem são as questões da posse da terra e do funcionamento da economia capitalista que são abordados. Pese embora as décadas que nos separam da obra de Vittorini, a essência dos problemas mantém-se. E por isso a sua actualidade é inatacável.
Legendas em francês.
* texto de Jorge Saraiva

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domingo, 8 de março de 2020

Operários, Camponeses (Operai, Contadini) 2001

Operários Camponeses é o segundo de três filmes consecutivos de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet de encontro com a obra do escritor italiano Elio Vittorini. Após Sicília, desta vez inspiraram-se no livro As Mulheres de Messina que também seria fonte para o Regresso do Filho Pródigo de 2003.
Tal como seria de esperar, não se trata de nenhuma adaptação ao cinema de uma obra literária, propósito que nunca fez pare dos objectivos dos realizadores. Um grupo de actores/leitores lê excertos do livro de forma pausada e sem quaisquer tipos de entoações teatrais, interpoladas por momentos em que os actores recitam sem ler. O cenário conjuga o tom espartano dos seus filmes, onde todos os aspectos acessórios são meticulosamente removidos, com uma luxuriante floresta siciliana, de um verde brilhante e encantatório. Os actores raramente fixam a câmara, com os olhos nas folhas de papel e estão vestidos de forma comum sem quaisquer adereços ou trajes evocativos dos anos 40 do século passado, época em que o livro foi escrito. Para além da voz dos actores, que na maioria dos casos estão de pé, embora por vezes se sentem nos troncos de árvores derrubadas, ouvem-se os sons dos animais na floresta, designadamente de pássaros. O filme apresenta-se assim de forma totalmente depurada nas suas duas horas de duração. Para além do genérico inicial completamente a negro e com excertos de uma cantata de Bach, apenas na fase final há uma visão panorâmica da floresta que dura cerca de três minutos e que já é habitual nos seus filmes. Estamos assim em presença de um dos filmes mais radicais da dupla e um dos que mais privilegia a palavra do escritor. Nesse sentido, aplica-se talvez como a poucos outros filmes feitos por eles as palavras de Ruy Gardnier no blog Contracampo: «Sabemos desde A Crônica de Anna Magdalena Bach que o cinema dos Straub era claro. O que não sabíamos, provavelmente, é que o fato desse filme inaugural (mesmo que o primeiro tenha sido Machorka-Muff) levar para a frente da tela todas as fontes de iluminação tinha antes de tudo um valor de manifesto: jamais esconder ou fingir qualquer coisa em sua relação com o espectador. Projecto louco, de um fôlego absurdo – afinal, fazem isso há 40 anos – e de uma dimensão mais louca ainda, a se julgar pelos caminhos que a arte audiovisual tomou logo cedo e que hoje mais do que nunca segue: acabar com a sedução como modo de relação que entretém o espectador na cadeira com o filme que vê. Dessa forma, os Straub são os únicos no mundo (com exceção talvez de Guy Debord e dos filmes de Godard realizados pelo grupo Dziga Vertov) que fazem um cinema estritamente marxista na relação com o espectador: não há aqui nenhum privilégio dos meios de produção estética e a arte não se constrói por esse privilégio (esse saber-fazer).»
Esta ausência de truques e de filtros entre o que se faz e o que se vê, estende-se igualmente às palavras de Vittorini. Os excertos lidos e recitados surgem como depoimentos o que levou Straub a declarar que tem uma estrutura de quase filme policial e onde a imagem é mais densa e as cores mais intensas, mas sempre naturais e sem estarem sujeitas aos tratamentos artificiais da química moderna. O argumento acompanha a vida de um grupo de sicilianos e as suas memórias. Não se limita à descrição da vida dura nos campos, sobretudo no Inverno e à exploração constante a que foram sujeitos. Muitos deles de origem camponesa acabam por emigrar e tornar-se operários das grandes cidades do norte de Itália, embora nunca percam as suas raízes. Embora fosse um homem de esquerda, Vittorini foi sempre um heterodoxo quer na escrita, quer na ideologia. Apesar do título fazer pressupor grandes ambições revolucionárias, essa revolução surge aqui de forma mais subliminar. Não há a descrição de lutas revolucionárias, feitos heroicos típicos de certa literatura. Há descrições de histórias comuns de gente simples, de amores e conflitos, da descrição do trabalho e da forma com as estações do ano o influenciam e até sobre as virtudes do louro e as formas de fazer requeijão. 
Talvez seja desta forma, nesta materialidade da fala (mais do que da língua escrita) nestas doces palavras entoadas numa torrente serena e ritmada, neste redescobrir de uma simplicidade que se vai perdendo quer no cinema, quer na vida, que conseguimos descobrir uma nova revolução por fazer. 
Legendas em inglês.
* texto de Jorge Saraiva

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sexta-feira, 6 de março de 2020

Brevemente

Sicília (Sicilia! ) 1999

Sicília! marca o encontro entre o cinema de Straub e Huillet e o escritor italiano Elio Vittorini, uma das mais importantes vozes da literatura de todo o século XX. O escritor é contemporâneo de Cesare Pavese (outro autor adaptado pelos cineastas) e participou fortemente na luta antifascista e que após a guerra teve posições destacadas no Partido Comunista Italiano, chegando a ser editor do jornal Unitá, O órgão central do Partido. Abandoná-lo-ia após a invasão soviética da Hungria em 1956. 
O filme baseia-se na obra Conversas na Sicília, uma das mais destacadas do escritor e que tem um cunho fortemente autobiográfico. Vittorini nasceu em Siracusa na Sicília, filho de um ferroviário e tal como o protagonista, emigrou para o Norte de Itália após a adolescência. O filme marca o regresso do protagonista a uma Sicília forçosamente muito mudada relativamente ao período em que ele lá vivia. Basicamente é composto por quatro diálogos distintos: o primeiro em que se faz passar por um regressado da América, com um vendedor de laranjas que se queixa da fraqueza do negócio; o segundo num comboio com outro regressado (e que possui uma profissão suspeita nunca especificada) sobre regressos e itinerários de viagem na ilha; o terceiro e mais extenso com a mãe (antiga guarda de passagem de nível) onde é evocado o passado da família; o último com um amolador sobre o declínio da profissão. Embora o livro de Vittorini tenha sido escrito em 1941, não há, como é costume na obra dos realizadores, nenhuma tentativa de fazer um filme situado na época em que o livro foi escrito. As imagens da Sicília são as do final do século XX, o que nos permite fazer uma reflexão interessante, aliás recorrente na obra dos realizadores: o que é que mudou e o que é que se mantém. A Sicília foi historicamente uma das terras mais pobres de Itália, a mesma Sicília de gente explorada que no cinema foi imortalizada pela obra prima de Visconti, A Terra Treme A mesma Sicília que no primeiro diálogo apresenta um vendedor de laranjas a queixar-se de que os patrões lhes pagam com esse fruto, mas que depois não as conseguem vender. Neste fresco sobre a ilha, evoca-se a emigração em massa para o continente e para a América como aliás já o tinha sido em filmes anteriores e no regresso, onde o protagonista se transforma em espectador das mudanças, quantas vezes mais aparentes do que reais. No diálogo mais longo, entre a mãe e o filho, são os mesmos fantasmas do passado que provavelmente nunca deixaram de estar presentes: evocam-se episódios de infância, sobretudo aquilo que comiam e o que o protagonista, então criança, calcorreava para ir de casa para a escola, mas numa sociedade aparentemente tão puritana, torna-se quase surpreendente o relato do amor da mãe por um quase desconhecido com quem teve um relacionamento que ela assume sem quaisquer remorsos ou problemas de consciência. Afinal parece que nem tudo mudou por aí além, para além da aparência. A motivação para a realização deste filme remonta a 1972: numa viagem pela Sicília, Straub e Huillet viram o leito de um rio repleto de laranjas que tinham sido para lá lançadas para que o mercado não fosse inundado e os preços se pudessem manter artificialmente mais altos. Como é afirmado por Luiz Soares Júnior no blog Cinética: «Todo o filme é estruturado segundo uma lógica da recitação, onde presenças - lugares, comidas, gestos, hábitos - são enfileiradas umas após as outras e, por intermédio da palavra, advêm a uma plenitude material inigualável. Mas não qualquer palavra, dramática ou expositiva; a palavra straubiana é epifânica: ela mostra a coisa em seu espaço-tempo único, infinitivamente presente; o saboroso canto, o sotaque, as pausas e precipitações que emanam da emissão dos atores, fruto de muito ensaio e judicioso treino, servem justamente para isso: não se trata de mera evocação ou descrição naturalistas, mas de presentificação. Como bem diz um texto de Fitoussi sobre as filmagens do filme, "o prazer de filmar dos Straub vem de um trabalho de reencontro, reencontro com uma realidade que preexistia ao texto, e que o texto conserva em estado latente - assim, eis o prazer dos nomes em Vittorini, todos intensificados em sua enumeração pela alegria de saber que a coisa nomeada existe ou existiu». Afinal, tudo se resume no diálogo final com o amolador que gostava que todas as facas só tivessem lâminas e onde mais do que a auto-descoberta do protagonista, ou um regresso nostálgico à infância, se encontra pelo mais essencial acto da existência, ou seja, a contemplação do mundo e, provavelmente, da necessidade da sua transformação.» 
Sicília! Foi estreado em Portugal e teve edição em dvd, coisa rara na sua obra. Foi na laboriosa montagem que Pedro Costa se baseou para realizar Onde Jaz O Teu Sorriso, testemunhando a sua imensa admiração pela obra dos cineastas. Neste filme a preto e branco, tão sóbrio e incisivo como a generalidade das suas obras, mas provavelmente mais acessível a um público mais vasto, onde as paisagens não são paisagens, mas diálogos silenciosos, parecem condensar- se todos os predicados da obra de Straub e Huillet. Para quem não quiser seguir a ordem cronológica do visionamento da sua obra, Sicília! Poderá ser uma porta de entrada. Seco, telúrico e certeiro como sempre.
* Texto de Jorge Saraiva

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De Hoje para Amanhã (Von Heute auf Morgen) 1997

De Hoje Para Amanhã é a terceira incursão de Straub e Huillet na obra do compositor austríaco Arnold Schoenberg de quem já tinham adaptado Introdução a «Música de Acompanhamento Para Uma Cena de Cinema (1972) e Moisés e Aarão (1975). As razões para esta insistência, como já notei em texto anterior prendem-se menos com razões políticas e mais com a radical independência e o grande sentido de renovação estética que Schoenberg trouxe à música do século XX.
De Hoje Para Amanhã é uma ópera num único acto composta no final de 1928 e com um libretto de Max Blonda que é o pseudónimo de Gertrud Schoenberg, a esposa do compositor. Musicalmente segue a orientação da livre dissonância e do dodecafonismo que também estão presentes em Moisés e Aarão. Mas ao contrário da ópera filmada em 1975, De Hoje Para Amanhã é uma comédia moderna sobre as relações entre um casal de meia idade. Aparentemente a sua relação é estável, mas já marcada pelo tédio de uma vida em comum sem sobressaltos nem grandes excitações. Numa noite em que ambos saem, o marido sente-se atraído por uma amiga da esposa e comunica-lhe a vontade de ter uma relação extra-conjugal. Esta responde que também conheceu um cantor de ópera por quem se sentiu atraída. O que é particularmente interessante em todo o libretto é que este se desenvolve numa perspectiva puramente feminina a que não deve ser estranho a sua autoria. Tomando a iniciativa ela acha-se ainda atraente e capaz de ser sedutora e resolve mudar a sua vida. O ponto forte do filme reside na relação dialéctica que se estabelece entre o casal. Numa primeira fase parecemos estar presentes uma situação clássica: o marido domina a situação e nem por sombras pensará que a mulher poderá ter outra reacção para além da submissão. Mas a resposta e o desafio desta, altera todas as premissas. Ela vai assumir declaradamente o comando e será ele que terá que se submeter. A possibilidade de ela materializar as suas ameaças torna-o ciumento e despeitado e fragiliza-o de imediato. O que parece ser um drama familiar transforma-se numa comédia de costumes o que só lhe dá uma acutilância reforçada. O que é mais interessante é o desafio ao estereótipo do poder masculino intocável e inatacável. Se pensarmos que a ópera foi criada no final da década de 20 do século passado, percebemos o cariz pioneiro da mesma que merece figurar no cânone das mais destacadas obras feministas. 
É o primeiro filme de Straub e Huillet inteiramente rodado em interiores, neste caso num teatro transformado em estúdio de filmagens. Começa com imagens do ensaio da orquestra o que faz pressupor que o live sound tão característico dos seus filmes se mantém. Depois vemos algumas imagens panorâmicas do teatro e em particular das cadeiras vazias. Finalmente a única incursão no exterior é a imagem de um muro onde está escrito à mão em letras maiúsculas a frase Onde Jaz O Teu Sorriso Escondido. Será este (com excepção da palavra escondido) o título do célebre documentário de Pedro Costa que acompanha a montagem de Sicília, o filme seguinte dos cineastas. Toda a encenação e as imagens a preto e branco (marcando mais um contraste com Moisés e Aarão) são meticulosamente estabelecidas para servir a música e as palavras. E isto porque não é em vão que se transporta para cinema a primeira ópera dodecafónica da história da música.
Legendas em inglês
* Texto de Jorge Saraiva

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quinta-feira, 5 de março de 2020

Lothringen! (Lothringen! ) 1994

A Lorena é uma região do leste da França que fica junto à Alemanha, fazendo igualmente fronteira com a Bélgica e o Luxemburgo. Juntamente com a Alsácia foi tardiamente integrada em França e a sua cultura reflecte a proximidade com o seu vizinho germânico. As relações entre a França e a Alemanha foram sempre particularmente complicadas com os alemães a reivindicarem (nem sempre de forma pacífica) a posse daquela região. Em 1870 e 1940 os alemães passaram mesmo a vias de facto invadindo militarmente a região. No período de ocupação nazi (1940-1944) era proibido falar francês na região e só com o fim da II Guerra Mundial é que a região foi plena e decisivamente integrada em França. 
Lothringen! É uma curta metragem com cerca de 22 minutos feita por uma encomenda da Canal Arte numa sessão especial dedicada à região da Lorena. Jean-Marie Straub é natural de Metz e, portanto, sabe do que está a falar. O que é curioso é que para esta sua evocação da Lorena se tenha socorrido da obra de Maurice Barrès, um reputado escritor alsaciano conhecido pelas suas posições nacionalistas de direita, antissemita e que no célebre caso Dreyfus se colocou do lado das forças conservadoras. Mas foi igualmente um grande apologista da presença francesa em terras da Alsácia e da Lorena e, por esse motivo, as suas obras foram proibidas durante a ocupação alemã. Curiosamente, Jean-Marie Straub afirmou que durante a sua juventude, Barrès tinha sido «um bocado anarquista». Straub terá igualmente afirmado que gostava particularmente dos alsacianos que eram os únicos habitantes da França que conseguiam ser tão irónicos como Corneille. O filme evoca o início da invasão da Lorena (e em particular de Metz) por parte dos alemães em 1870 a que se seguiu um longo período de ocupação que duraria até 1918. A opção de Straub e de Huillet foi por um misto de ficção e de documentário, seguindo as palavras de Barrès. Trata-se de um relato da resistência e do êxodo dos habitantes de Metz da sua cidade, ao mesmo tempo que apresenta de forma breve um caso particular de uma mulher que desfaz o noivado com um alemão. As imagens, porém, estabelecem um contraste com a narrativa. Tirando uma pequena passagem em que a mulher aparece vestida com roupas da época, as restantes imagens exalam uma profunda tranquilidade. São as de Metz, uma pacata cidade de província, não como ela existia no final do ´seculo XIX, mas da actualidade, de uma urbe dos anos 90 do século XX com a vida normal das pessoas, os monumentos, o trânsito automóvel e outros retratos do quotidiano. A estas imagens, acrescentam-se outras de paisagens rurais próximas da cidade, com longos planos fixos como é habitual na obra desta dupla de cineastas. A relação entre as palavras e as imagens continua a ser aparentemente aleatória: o texto é apresentado quase todo em voz off, mas apesar da curta duração do filme existem momentos largos em que somos exclusivamente entregues à contemplação das imagens. 
Afinal, após 1944 Metz e toda a região da Alsácia e da Lorena são francesas e as aspirações alemãs a anexá-las desapareceram. Apesar de o título do filme ser alemão (e não Lorraine como se designa em francês a Lorena) o filme é uma apologia ao cariz gaulês da região e utiliza a língua francesa. A Lorena é francesa e as pessoas estão tranquilas e vivem as suas vidas. As coisas estão como devem estar. As ideias de anexação alemã estão devidamente sepultadas e a ocupação nazi é um pesadelo distante.
Legendas em inglês.
Texto de Jorge Saraiva

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