Num país não identificado de uma era não distante da nossa, vive-se os dias seguintes ao holocausto nuclear. No meio dos escombros, a humanidade tenta reorganizar-se do caos civilizacional em que caiu através de sociedades subterrâneas, criando bunkers especiais destinados unicamente a cidadãos saudáveis, com a entrada vedada inclusive a idosos ou crianças portadoras de doenças causadas pela radiação. A superfície das cidades é um terreno irrespirável e intransitável sem o uso de máscaras de gás e equipamento protector, sendo que a circulação não autorizada pelas forças militares que a patrulham é castigada com a morte - o que não impede a existência de um imenso mercado negro onde medicação e latas de conserva são vendidas e trocadas como as mercadorias preciosas em que se tornaram.
Neste contexto, um velho professor (vulto intelectual premiado no passado com o Nobel da Física) tenta encontrar algum propósito para a sua vida numa pequena comunidade de antigos colegas que sobrevive na cave-abrigo dо museu onde antes trabalhavam. Quando não está no exterior a tentar arranjar medicamentos para a sua mulher moribunda, o professor escreve cartas ao seu filho Eric (desaparecido durante o incidente nuclear), num gesto que sabe ser muito provavelmente em vão mas que lhe serve de forma catártica de aguentar os horrores do dia-a-dia e manter alguma réstia de esperança. Quando um inspector do governo declara um grupo de crianças inapto a transitar para os bunkers devido ao estado traumático em que os miúdos se encontram, o professor vê-se impelido a tentar arranjar-lhes uma comunidade a que possam pertencer - e talvez um futuro digno desse nome.
A que nos podemos agarrar quando toda a esperança parece perdida graças ao instinto auto-destrutivo da humanidade? Poder-se-ia dizer que é esta a pergunta que perpassa pela longa-metragem de estreia do realizador Konstantin Lopushansky: uma obra de ficção científica distópica ambientada num clima de inverno nuclear impiedoso, filmado não num formato largo e expansivo mas no clássico (e, aqui, claustrofóbico) Rácio da Academia (1.37:1), com uma fotografia maioritariamente em sépia (à excepção de três pequenas sequências, onde a paleta de cores é dominada pelos tons de azul) simultaneamente bela e opressiva, fascinante e sufocante.
Se as imagens podem fazer lembrar o seminal “Stalker” (1979) de Andrei Tarkovsky, não é por acaso: Lopushansky foi assistente de realização do mestre russo nesse mesmo filme. É importante referir este antecedente não só pela clara influência que a estética do autor de “Zerkalo - O Espelho” (1975) teve na presente obra, como pelo facto do argumento ser assinado a seis mãos por Lopushansky, Vyacheslav Rybakov e Boris Strugatsky - sendo este último nada menos do que um dos irmãos Strugatsky, célebre dupla de escritores de ficção científica soviética responsável, entre outros, pelo romance “Piquenique à beira da estrada” (1971) e a sua respectiva adaptação para o grande ecrã sob o novo título de… “Stalker”.
O filme estrutura-se não tanto como uma história clássica dividida em três actos mas antes como um mosaico de pequenos acontecimentos que visam demonstrar o modo como a humanidade lida com o desastre que lhe caiu em cima. Se há um protagonista cujo percurso acompanhamos ao longo de oitenta e três minutos, não há uma construção narrativa em crescendo e, em pelo menos uma ocasião, aquilo que seria um momento dramático a explorar (um clímax, se quisermos) ocorre off-screen e só vemos as suas consequências. Isto sucede não por inabilidade da realização ou da escrita do guião mas por opção criativa: mais do que apenas uma história de uma personagem colocada numa situação extrema, é o desenho daquele mundo macabro (e a reflexão sobre as questões que esse mundo levanta) que fascina Lopushansky.
A questão da adaptação da espécie humana a qualquer tipo de situação adversa está patente em todo o filme, indo desde o registo anedótico (o caso da mulher que decide deixar de utilizar roupa na esperança de que o seu corpo se habitue mais rapidamente à radiação) até à reflexão filosófica (os longos diálogos à mesa de jantar) e passando pela parábola política (a sociedade dos bunkers elitistas). A dado momento, ficamos a saber que os livros são agora uma mercadoria de contrabando altamente apetecível não pelo seu valor literário, mas pelo seu teor altamente inflamável que lhes torna numa fonte de aquecimento preciosa. É um apontamento de humor negro que diz muito sobre o tipo de sociedade que surge quando as bases mais elementares da civilização desaparecem.
Há também uma reflexão sobre a necessidade humana de construir uma narrativa que dê algum tipo de sentido à desgraça vivida, de encontrar uma explicação para o que aconteceu. Um dos antigos colegas do professor passa o seu tempo a ditar o que parece ser um misto de ensaio/livro de história sobre os últimos anos da raça humana e do seu fatal ímpeto destrutivo, mas tais reflexões não trazem nenhuma resolução ou catarse. O certo é que nunca fica claro o que aconteceu exactamente, e as origens do desastre permanecem na esfera do mito ou da especulação mesquinha (sugere-se, por exemplo, que a bomba terá sido detonada por mera distracção de um funcionário…).
No fim, a única redenção possível neste mundo apocalíptico parece estar na contínua transmissão de valores e ideias para as novas gerações. O conceito de herança (material, cultural, afectiva, etc) está presente ao longo de todo o filme - não é por acaso que o professor escreve cartas que nunca serão entregues e vive no subterrâneo de um museu, espaço que salvaguarda a memória colectiva do oblívio: aquilo que deixamos para trás, mesmo quando aparentemente inútil, é um legado fundamental para quem nos suceder. Veja-se também a importância dada pelo professor à organização da ceia de Natal com aquele grupo de crianças abandonadas à sua sorte por adultos que se recusam a acolhê-las: até no meio do caos e do perigo, é preciso passar algo, nem que seja só a ideia de uma celebração comunitária. Daí que o final do filme, longe do tom pessimista e negro que aparenta exprimir à primeira vista, possa ser entendido como a ilustração do mote que o professor dita aos seus educandos: “Enquanto o homem estiver no seu caminho, ainda há esperança para ele”.
No que toca ao trabalho dos actores, há que dar um claro destaque ao soberbo desempenho de Rolan Bykov no papel do professor, um exemplo de contenção e de understatement que muito ajuda à força da personagem. Formalmente, para além da magnífica direcção de fotografia de Nikolai Pokoptsev, é preciso realçar o soberbo design sonoro (as rajadas de vento quase omnipresentes, o uso da reverberação e das vozes filtradas pelas máscaras de gás para a criação de uma atmosfera opressiva, etc.), o notável trabalho de cenografia e art-direction de Viktor Ivanov e Elena Amshinskaya (repare-se, por exemplo, na minúcia de detalhes incluídos no cenário da biblioteca destruída), a composição musical inquietante de Aleksandr Zhurbin e o apurado lavor de montagem de T. Poulinoi, sobretudo no que toca à articulação entre sequências ficcionais e diversas imagens de arquivo de explosões nucleares.
Concebido nos últimos anos da União Soviética, ainda sob os auspícios da censura, “Cartas do Homem Morto” não contém qualquer elemento que permita identificar o cenário como sendo russo, isto porque a equipa técnica propositadamente removeu todos os objectos que contivessem texto escrito em cirílico ou que, de alguma fora, remetessem para o quotidiano das repúblicas soviéticas. O resultado inadvertido é um filme que, sendo eminentemente russo no espírito e na forma, possui uma dimensão inequivocamente universal. Sobretudo, trata-se de uma obra criada numa época em que o fantasma da guerra nuclear pairava sobre as mentes dos habitantes de ambos os lados da Cortina de Ferro, e foi feito com a clara intenção de servir de aviso para os perigos da corrida ao armamento nuclear. Talvez o aspecto mais trágico da sua realização seja o facto de ter tido a triste coincidência de estrear no mesmo ano em que se dá o desastre de Chernobyl.
Internacionalmente, o filme marcou presença no festival de Cannes de 1987, tendo a sua primeira exibição em solo português no Festival de Cinema de Tróia de 1986 e arrecadando o prémio FIPRESCI no 35º Festival Internacional de Cinema de Mannheim-Heidelberg. Mas não seria necessário qualquer prémio para garantir o seu estatuto como uma das obras mais marcantes do cinema de ficção científica soviética.
Filme escolhido pelo Ricardo Gonçalves, que também escreveu o texto.
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