sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Parada de Malucos (Hellzapoppin') 1941

Olsen e Johnson são dois comediantes de palco que querem transformar a sua peça num filme, mas o realizador não está satisfeito. Têm o apoio de um casal apaixonado, enquanto quebram todas as regras possíveis e imaginárias.
"Hellzapoppin’ é uma das comédias mais tresloucadas do cinema americano e o título mais conhecido dos vários que envolveram a dupla Olson & Johnson, uma das mais bem sucedidas das décadas de 30 e 40 no showbiz norte-americano. Uma comédia cheia de momentos meta-cinematográficos, em que a quarta parede está a ser constantemente deitada abaixo sem dó nem piedade, onde uma história de amor não serve mais do que um pretexto para uma série de piadas, servidas ao ritmo de uma metralhadora em funcionamento. Estamos a rir-nos de uma, e entretanto já se nos escaparam duas ou três! Entre as mais inusitadas punchlines até aos mais suculentos números de humor físico, Hellzapoppin’ é um festim de espetáculo que merece ser descoberto - o que continuará a ser difícil, até que as questões de direitos que têm feito o filme permanecer na semi-obscuridade, nas últimas décadas, sejam resolvidos para conseguirmos ter acesso a cópias mais decentes. É uma jóia que poderá conviver muito bem entre as comédias dos irmãos Marx, e onde percebemos que o nonsense que, mais tarde, seria característico dos Monty Python, teve em Olsen & Johnson um dos seus melhores exemplos."
Filmes escolhido pelo Rui Alves de Sousa, que também escreveu o comentário.

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quinta-feira, 30 de agosto de 2018

As Crianças (Les Enfants) 1985

As Crianças foi o último filme realizado por Marguerite Duras (1914-1996), uma das escritoras e intelectuais mais influentes do século XX. Tratando-se de cinema, ela é frequentemente lembrada pela escrita de Hiroshima, Meu Amor (1959), clássico de Alain Resnais, pelo qual recebeu indicação ao Oscar de melhor roteiro original. Sua própria obra cinematográfica, iniciada uma década depois, é constituída de filmes ousados, radicais, originais, dentre os quais têm destaque: Nathalie Granger (1972), A Mulher do Ganges (1974), India Song (1975), O Caminhão (1977) e Agatha e as Leituras Ilimitadas (1981). Nathalie Granger é o filme de Duras já presente aqui no blog My Two Thousand Movies. Discorre sobre tema muito semelhante ao de As Crianças: a inadaptação de uma criança à escola regular e a reação da família à situação. 
 O roteiro de As Crianças é de Duras, Jean Mascolo e Jean-Marc Turine. Foi baseado no conto Ah! Ernesto, escrito por ela e já previamente adaptado no curta-metragem En Rachâchant, de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. Inicia com um diálogo entre Ernesto (Axel Bougousslavski) e sua mãe (Tatiana Moukhine), onde ele lhe comunica que não vai voltar para a escola porque na escola lhe ensinam coisas que não sabe. Decisão tomada pela criança em um bosque para o qual se dirige ao sair de um colégio retratado deserto. Sob uma árvore, ele tem uma visão da criação do universo e conclui que neste mundo em que tudo se criou de uma só vez, “nada vale a pena” — frase muito presente na obra de Duras, cujo primeiro filme solo, filmado após o maio de 68, foi sintomaticamente chamado de Destruir, Disse Ela (1969). A mãe lhe pergunta se a escola não vale a pena. Ele responde que não, ela saberia disso melhor do que ninguém. Jeanne (Martine Chevallier), a irmã (que logo depois também desistirá da escola), lhe questiona: “nem a música vale a pena?” Após breve hesitação, Ernesto responde que a música também não vale a pena. A mãe e o pai (Daniel Gélin, ator que já havia trabalhado com Duras justamente em Destruir, Disse Ela) respeitam e acatam a decisão do filho e vão à escola para comunicar ao professor a resolução tomada pela criança. Revelo aqui o inusitado: Ernesto e Jeanne têm aparência de adultos e são interpretados por atores com idade superior a 30 anos. A mãe explica ao professor que o filho tem sete anos, mas é muito grande, parece um bispo, um professor de filosofia, alguém que não se pode forçar a nada. As Crianças tem um tom cômico incomum na obra de Duras, tão marcada pela dor. As reações do professor e de um jornalista que tentam compreender as motivações de Ernesto reforçam esse traço divertido da obra. Os pais — estrangeiros, à margem, habitantes do subúrbio — são os cúmplices dos filhos. O cotidiano doméstico é singular. Grande parte do filme se passa na cozinha, onde a mãe se dedica a tarefas rotineiras, como descascar batatas. Esse ambiente, contudo, é de subversão: um refúgio, um espaço de resistência ao Estado e à sociedade organizada. As crianças confrontam tais instituições, questionando o papel educativo da escola formal. Cabe dizer aqui que em dois de seus livros com fortes matizes autobiográficas — O Amante (1984) e O Amante da China do Norte (1991) — a personagem que corresponde a Duras não tem nome, é apenas “a criança”. Nessas obras literárias, violência e sentimentos incestuosos também permeiam o espaço íntimo. Em Chuva de Verão (1990), livro escrito por Duras baseado no filme As Crianças (ela diz que o fez por não conseguir abandonar esses personagens), o erotismo entre os irmãos é explícito. No filme, se de fato presentes, as insinuações sexuais são muito tênues. Nesse formato, no plano sentimental, Duras nos fala mais de medo de abandono, tema igualmente caro a ela. As Crianças é um de seus filmes mais compreensíveis, sem nenhum radicalismo na estruturação da narrativa. As típicas disjunções entre imagens sonoras e visuais presentes em A Mulher do Ganges e India Song inexistem aqui. Quase todas as vozes ouvidas fora de cena correspondem aos personagens, com exceção da característica voz de Duras narrando justamente a partida de Ernesto, já um sábio, para a América. 
 A mãe de Duras foi professora primária. Seu pai, professor de matemática. Ambos franceses, decididos a viver a aventura colonial na Indochina. Duras e seus irmãos nasceram próximo a Saigon e o pai morreu quando ela tinha 4 anos. A mãe foi enganada por funcionários da administração colonial na compra de uma terra incultivável, inúmeras vezes alagada pelas águas do Pacífico. Viveram — Duras, a mãe e os irmãos — em situação de extrema pobreza e sofrimento familiar. Para incrementar os proventos financeiros, a mãe tocava piano em um cinema e com muita dificuldade garantiu a escolaridade de seus filhos. Duras se mudou para Paris aos 17 anos para estudar Matemática, Direito e Ciências Políticas. Foi membro da Resistência Francesa durante a Segunda Guerra, filiada ao Partido Comunista Francês e ativa nos movimentos de maio de 68. Todos esses episódios foram refletidos em sua obra. Em Nathalie Granger, Moderato Cantabile e Agatha e as Leituras Ilimitadas existe uma certa obstinação das mães com a educação de seus filhos, particularmente com a necessidade de aprendizado do piano. A mãe de Nathalie Granger diz que se a filha não se dedicar à música estará perdida, visto que na escola convencional a menina apresentava comportamento violento. Anne Desbaresdes, a mãe de Moderato Cantabile (livro que foi adaptado em roteiro por Duras e filmado por Peter Brooks), diz a seu filho: “É preciso aprender piano, é preciso”. Em Agatha e As Leituras Ilimitadas, obra que aborda o amor incestuoso entre irmãos, Agatha pede ao irmão para que comunique à mãe sua vontade de não estudar mais o piano e a mãe a liberta dessa obrigação. Em As Crianças, vê-se situação semelhante: o filho não quer mais ir a escola, a irmã o segue na mesma decisão, os pais compreendem. 
A trilha sonora de As Crianças é do argentino Carlos d’Alessio, compositor do inesquecível tema de India Song. O filme recebeu Menção Honrosa do Júri Internacional na Berlinale. Após 1985, Duras voltou a se dedicar apenas à literatura.
O filme foi escolhido pela Carla Oliveira, que também escreveu este texto. 

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segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Throw Away Your Books, Rally in the Streets (Sho o suteyo machi e deyou) 1971


Seguimos um jovem sem nome, a quem o realizador chama Watashi ("Eu") e cuja família é um desastre disfuncional completo. A irmã tem uma relação doentia com o coelho de estimação, a avó é uma ladra, e o pai um frustrado que leva o filho ao bordel. A história é completamente não linear, misturando estranhas colagens fantasmagóricas, vídeos de musica e imagens surreais.

"Throw Away Your Books, Rally in the Streets" é o primeiro filme experimental de Shuji Terayama, um poeta, dramaturgo, realizador "avant-garde" que também era um ávido seguidor de boxe (o seu amor pelo boxe é mencionado várias vezes neste filme, por exemplo.
A mensagem do filme é apresentada sem rodeios no título. Terayama diz aos académicos que a sua abordagem a este filme não é necessária, e o filme deve ser vivido como uma experiência e não analisado, e as pessoas devem passar mais tempo nas ruas e não gastá-lo num cinema ou a ler livros. Esta visão é sustentada por todo o filme, citações de famosos pensadores grafiteiros nas paredes, um intelectual que chateia a sua companheira até à morte num restaurante, entre outras coisas, que nos levam a pensar que a resposta a tudo isto é algo muito simples.
O filme começa com um tela preta desconfortavelmente longa, quando de repente o protagonista aparece a perguntar o que estamos a fazer em frente a uma tela preta, e depois goza com o público porque eles estão escondidos num cine-teatro enquanto ele pode fazer o que quiser, como acender um cigarro. No final voltamos a esse ecrã preto, mas antes disso, o protagonista, rodeado de toda a equipa, faz um discurso sobre as fronteiras do cinema: Polanski, Oshima, Antonioni...tudo isto é apenas um mundo que desaparece quando a luz é ligada.
Filme escolhido pelo Julio Costa.

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domingo, 26 de agosto de 2018

A Ilha Nua (Hadaka no Shima) 1960

A vida dura e intolerável de uma família de quatro pessoas, os únicos habitantes de uma pequena ilha japonesa no arquipélago de Setonaikai. Eles cultivam uma colheita de batatas e trigo para comer e vender, mas a cruel ironia é que na ilha em que vivem não têm água potável para beber e irrigar os campos.
"A Ilha Nua" foi o improvável primeiro sucesso internacional do prolífico autor japonês Kaneto Shindô, que já tinha dirigido 14 longas metragens na década anterior, incluindo o provocador "Children of Hiroshima" (1952), que disputou a sexta edição do Festival de Cannes. Esta 15ª longa-metragem de Shindô é apresentada no formato de documentário sobre a luta diária de uma pequena família para cultivar um terreno árido numa ilha isolada, que tornou essa ilha conhecida para o mundo, depois de ter ganho o Grand Prix do Festival de Moscovo, e tornar-se um sucesso de bilheteira imprevisto, que acabou por salvar a produtora de Shindô, a Kindai Eiga Kyokai. Mesmo assim o filme ainda teve algumas críticas de japoneses, que estavam preocupados com o retrato de uma família camponesa isolada, que dava uma imagem primitiva do Japão.
"Hadaka no Shima" é a verdadeira essência do cinema minimalista. Não existem realmente diálogos no filme, e é pouco preciso na história. Shindô pretendia que o filme fosse uma espécie de experiência, uma tentativa de fazer um poema cinematográfico que transmitisse a vida camponesa rural, sem recorrer ao diálogo, e nesse aspecto é realmente bem sucedido. 
Shindô viria mais tarde a ser conhecido por "Onibaba" e "Kuroneko", dois filmes que já passaram por aqui.
Filme escolhido pela Joelle Ghazar.

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sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Warm Water Under the Red Bridge (Akai Hashi no Shita no Nurui Mizu) 2001

Um conto impossível. Taro, um idoso que morre sem abrigo em Tóquio, contou a Yosuke, um desempregado, sobre uma estátua de ouro que deixou anos atrás, numa casa perto do mar, em Noto. Yosuke vai até lá, e conhece Saeko, uma mulher que vive na casa onde Taro deixou a estátua. Ela tem um estranho problema: a água acumula-se nela, e só consegue livrar-se de duas formas: ou cometendo actos perversos, como furtar numa loja, ou atingindo o orgasmo no acto sexual.
Realizado em 2001, adaptando o livro de Yo Henmi,  “Warm Water Under a Red Bridge” foi a última longa metragem do japonês Shohei Imamura. Depois deste ele apenas dirigiu mais um projecto antes da sua morte, em 2006, um segmento do projecto “11’09”01 – September 11.”No entanto, no que refere apenas a longas metragens, “Warm Water” era uma comovente despedida do realizador, combinando a comédia romântica com o seu original estilo, para fazer uma fábula moderna imaginativa.
"Warm Water Under a Red Bridge" é um retrato cativante da excentricidade provinciana, e uma generosa homenagem à fecundidade feminina, incorporando várias sub-tramas peculiares, e personagens secundárias, como o treino de um estudante africano para uma maratona, ou a competição de Yosuke pelo tesouro. O filme também consegue voltar a reunir o casal de "Unagi", Kôji Yakusho e Misa Shimizu, que foi um dos filmes com que Imamura conseguiu ganhar a Palma de Ouro. Concorrendo de novo para este galardão, não conseguiu ganhar graças a uma concorrência fortissima: "O Quarto do Filho", "A Pianista", "O Elogio do Amor", "Mullholand Drive", entre outros.
Foi um filme escolhido pelo Kinta Jarreto.

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quinta-feira, 23 de agosto de 2018

10 Anos de Thousand Movies


Faz hoje exactamente 10 anos que tudo começou. Um blog que comecei na brincadeira, para partilhar uns filmes com os meus amigos, e que com o tempo se tornou em...Para falar a verdade, não sei bem no que se tornou, mas uma coisa é certa: cá continuamos, e o mais importante é fazermos aquilo em que acreditamos. Eu acredito neste projecto dos thousand movies, e é por isso que aqui continuo.
Como diz a música do vídeo que vou colocar a seguir:

Vamos em frente, olho por olho, dente por dente, ó capitão!
Vamos em frente, olho por olho, dente por dente, ó capitão!
Vamos em frente, olho por olho, dente por dente, ó capitão!
Vamos em frente, olho por olho, dente por dente, ó capitão!


quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Iluminação (Iluminacja) 1973

Acompanhamos a educação de um jovem adulto, desde a sua entrada na universidade até ao doutoramento, ao mesmo tempo que acompanhamos a sua formação interior e a entrada na vida adulta, a sua aprendizagem sobre a vida, família, sexualidade e valores morais e espirituais.
Os anos do pós-guerra foram um período de enorme criatividade para todo o cinema Europeu, e Krzysztof Zanussi destacava-se de entre os grandes cineastas polacos da altura. "Iluminação" era uma viagem profunda e cerebral através da vida de Franciszek Retman (Stanislaw Latallo) na sua incessante busca pela iluminação, com tremenda destreza formal. Era o início de um período particularmente inventivo na carreira de Zanussi, o filme é uma obra-prima idiossincrática, explorando a humanidade ao estilo "cinema verité".
Em "Iluminação", em vez de simplesmente contar a história da vida de uma personagem, Krzysztof Zanussi queria apresentar os estados mentais de desenvolvimento dessa personagem. Para fazer isso, teve de fugir à forma de narrativa tradicional, em vez de moldar o seu filme num ensaio. O filme apresenta eventos cruciais e cenas quotidianas da vida de Franciszek, mas essas passagens narrativas padrões são reduzidas ao mínimo. Preenche as lacunas com esse "cinema verité", filmagens de discussões académicas e experiências, e imagens de diagramas médicos, gráficos científicos e close-ups do corpo humano. 
Zanussi admirava os físicos porque a disciplina deles permitia que fossem pensadores livres numa época em que a doutrina marxista se infiltrara na maioria das outras áreas académicas, incluindo a Biologia. O realizador tinha originalmente incluído uma cena em que Franciszek participa nas manifestações estudantis de 1968, na Universidade de Varsóvia, mas os censores forçaram a cortá-la. Depois perdido, este material não pode ser incluído na versão restaurada.
Filme escolhido pela Rita Mota.

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terça-feira, 21 de agosto de 2018

O Pão Nosso de Cada Dia (City Girl) 1930

Filme produzido logo após o desaparecido Os quatro diabos e o fabuloso Aurora, O pão nosso de cada dia demonstra a maturidade de um cineasta em acensão. As imagens deste filme de 1930 nos mostra toda a riqueza da construção fílmica de um diretor que aprendeu a fazer um cinema clássico e universal. Desde os primeiros momentos de O pão nosso de cada dia fica claro ao espectador a simplicidade da trama de Murnau, assim como a complexidade emocional que se desenvolve por trás dela. Mais uma vez o diretor alemão nos presenteia com um filme sobre amor, sobre a relação entre pessoas. O trato que devemos ter uns com os outros.
 O filme abre com a imagem de um trem cortando uma paisagem rural. Dentro dele está um homem jovem que logo descobrimos ir para a cidade a pedido de seu pai para fazer um negócio. A moça sentada no banco ao lado vê o garoto tirar de dentro do paletó uma quantidade considerável de dinheiro e tenta flertar com ele, que não nota e deixa a moça de lado. Desde estes primeiros momentos, O pão nosso... fará o desenvolvimento da simplicidade do comportamento deste personagem vindo da e criado na fazenda e que não se ilude nem busca as maravilhas da cidade. Ao invés de ir ao vagão restaurante, ele prefere comer os sanduíches que sua mãe lhe preparou. O que irrita a mulher que tentava flertar com ele é, na verdade, a afirmação de que aquele personagem se contenta com a sua origem - o contrário do que o amontoado de dinheiro que ele carrega poderia sugerir.
Na cidade, o jovem vai almoçar num restaurante cheio. São sempre muito curiosas as composições de cenário na cidade. Os quadros são sempre cheios de pessoas fora de foco que passeiam de um lado para outro, ao fundo. Dentro do restaurante, elas ficam de pé atrás de quem está comendo junto ao balcão, à espera de seu momento para sentar e poder comer também. Estas composições de imagem concedem ao filme certa energia. A cidade é envolvente, é agitada, chama para si a alegria (é o que primeiro acreditamos). Mas todo este envolvimento se perde quando começamos a notar o comportamento daquelas pessoas que se sentam ao lado no balcão do restaurante. Os fregueses constantemente flertam com a garçonete, pegam em sua mão, fazem-lhe propostas. O cenário da cidade, aparentemente cheio de vida, torna-se impessoal. A garçonete, Kate, sente calor por toda aquela agitação e aquela aglomeração de pessoas ao seu redor. Mas o ventilador é para espantar as moscas da comida, não para ela.
 Seduzida por um ideal do que seria a vida no interior, longe da agitação de Chicago, Kate se encanta por Lem, o jovem vindo da fazenda para fazer negócios em nome da família: vender a colheita de trigo. Ela é simpática a ele, e ele demonstra à ela tudo aquilo que ela sonha. Desenvolvem uma paixão imediata, que vira chacota dos demais que escutam a conversa no restaurante. A compreensão da humanidade individual perante à turba se esvai. O amor vira piada, e o apaixonar-se, uma infantilidade. Assim, esta movimentação logo ganhará seus reais contornos. As casas de valores, as bolsas, entrarão em crise e o valor do trigo despencará rapidamente. Lem vende a colheita muito abaixo do preço que seu pai havia estipulado com medo de perder mais dinheiro do que já havia perdido. - E esta é uma das cenas mais fabulosas do filme: Lem sai do restaurante em que Kate trabalha com um jornal em mãos. A notícia é filmada em primeiro plano por Murnau. Lem está devastado com as informações. A câmera recua. A movimentação das pessoas na rua deixa de ser o simples ir e vir urbano para se transformar no caos dos sentimentos do personagem, na confusão que é a vida em comunidade: o trabalho da colheita é reduzido a números que representam a miséria financeira.
Kate e Lem se casam ainda naquela mesma semana e se mudam para a fazenda dos pais dele. Se ela acreditava que o comportamento dos homens hostis em relação a uma mulher se dava somente pela cidade, ela passa a testemunhar a mesma atitude no campo. Não em relação a seu marido, mas em relação ao pai de Lem e aos seus empregados. Kate é um belo pedaço de carne cobiçado por uns e rejeitado por outros. Tudo o que ela quer é a vida em paz com Lem. Mas descobre da pior maneira possível que o problema do homem (ou da humanidade) não é a localização, mas o seu próprio comportamento. - seria uma indireta do cineasta alemão (homossexual) filmando em Hollywood?
 Por fim, Murnau nos mostra que não é Kate quem deve se redimir e mostrar aos outros quem ela é e como deve ser e merece ser tratada, mas os outros perceberem que ela deve ser tratada com a dignidade devida. Se na primeira parte na cidade o protagonismo do filme ficava a cargo de Lem, neste segundo fica a cargo de Kate. Sempre a visão do estrangeiro, do estranho. Mas se na cidade Lem fora bem recebido, na fazenda Kate não é. Lem demonstra-se impotente frente ao autoritarismo de seu pai, e Kate não consegue de seu amado as promessas que lhe foram feitas.
Em mais um de seus filmes humanistas, Murnau nos mostra que o homem pode ser incivilizado em qualquer ambiente. O que o torna civilizado é seu comportamento, não sua localização. Se na cidade esta pessoalidade das relações humanas se esvai com as grandes quantidades de gente - os homens enquanto gado -, na zona rural ela se esvai por um senso de pertencimento. De objetificação do outro. Mas no fim, são todos humanos buscando sua cota de respeito e paz para suas vidas, e querem encontrá-la independente de onde estiverem. Texto, daqui
O filme foi escolhido pelo Yves Marcel, que também é o autor do texto.

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domingo, 19 de agosto de 2018

Atracção Básica (Hexed) 1993

"From deep within the realms of absurdism comes a rather unserious take on modern love. Alan Spencer's Hexed is unquestionably one of the funniest films I have seen in years.
 Claudia Christian – whose face may be familiar even if her name is not – has had a truly bizarre career playing a string of characters clearly considered by filmmakers to be sexually deviant: lesbians, transsexuals and the like. 
 Here, as the exotic supermodel Hexina, Christian portrays a full-out female grotesque – and she is absolutely magnificent. 
 The plot starts with a sad-sack porter (Arye Gross) in a rundown hotel. He is a compulsive fantasist and liar. In walks Hexina, the object of his desire, hiding out in America while she deals with some shady blackmail business. 
 Once these two become entangled in an outlandish web of criminal activity, the film gears up to its furiously funny set-pieces – including a riotous sex scene where Christian gives the comic performance of her life. 
 This is a highly original and inventive film, unafraid to go out on the limb of its own wild excesses. Not since the great days of Jerry Lewis as The Bellboy (1960) has a comedy been so determined to milk every possible visual and verbal gag out of a set, a situation or a plot premise. 
 Not every joke works, of course, but the several hundred laughs remaining make this a treat not to be missed." Daqui.
Filme escolhido pelo crítico Adrian Martin, com o seu próprio texto. Legendas em inglês, em anexo.

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Legendas em inglês
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sábado, 18 de agosto de 2018

O Barão Aventureiro (Baron Prásil) 1962

Quando um jovem astronauta aterra na Lua, descobre-a habitado por várias figuras literárias, incluindo o grande mentiroso Baron Munchausen. Acreditando que este visitando céptico precisa de aprender e aproveitar a vida, o Barão leva-o numa viagem ao que parece ser a Terra do Século XVIII. Lá, os dois visitam a corte Otomana, resgatam uma nobre em cativeiro, escapam da frota turca, são engolidos por um grande peixe, entre muitas outras aventuras.
"Baron Prásil", lançado em 1962, é mais identificado com o seu título alternativo, "The Fabulous World of Baron Munchausen". Entre os fãs da aventura sensacional, Munchausen talvez apenas tenha paralelo com o próprio Capitão Nemo. Muito vagamente baseado na história real do nobre Hieronymus Carl Friedrich Baron von Munchausen, as histórias das suas façanhas fantásticas tornaram-se folclore quando ele apareceu por volta de 1780, como personagem central de vários contos de aventuras de um livro chamado "Vademecum fur lustige Leute". Como as histórias foram traduzidas de uma língua para outra, a grandiosidade e a natureza absurda das façanhas de Munchausen cresceram, como costuma acontecer com os heróis de folclore, e em pouco tempo ele visitava a lua e passeava pelos campos de batalha montado numa bala de canhão.
Embora Karel Zeman realmente nunca evoque qualquer percepção de que Munchausen seja um herói, ele preenche o filme com uma sensação de deleite do Barão com a vida, a sua imaginação maravilhosa, e o seu tremendo senso de diversão. Além disso, todos os vários dispositivos com que o realizador anima o seu filme ajudam a despertar no espectador uma apreciação absolutamente maravilhosa das coisas pelo simples prazer que despertam.
Karel Zeman foi um dos maiores mestres do stop-motion, misturando muitas vezes live-action com animação, que é o que acontece neste filme. "Baron Prásil" é talvez o seu melhor filme. 
Filme escolhido pelo Lino Ramos. 

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sexta-feira, 17 de agosto de 2018

O Assassínio de Jesse James Pelo Cobarde Robert Ford (The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford) 2007

"Tenho de agradecer ao Chico muito do que sei sobre cinema “a sério”. Corria o ano de 2009 e o meu conhecimento de cinema ainda era muito curto. Lia a Empire e a Totalfilm e já gostava de alguns realizadores como Scorsese ou Woody Allen, mas gostava sobretudo de fantasia, sci-fi e filmes para miúdos dos anos 80. Via tudo, desde Krull a Beastmaster passando por Excalibur e Legend. Também, muito devido aos meus pais, era fã de Westerns e quanto a este género já tinha um conhecimento que se podia considerar acima da média (mas nada que atinja os níveis alcançados graças ao thousandmovies). Estava um dia a fazer uma lista de filmes para ver e eis que me deparo com a lista de filmes preferidos do Scorsese e, no topo dessa lista, ou perto dela, estava um filme chamado Red Shoes. Não sei bem porquê mas decidi que tinha de ver aquele filme de ballet. Ora, toca a procurar nas fontes habituais e nada… Tenho de então agradecer à RealNetworks. Estes senhores tinham criado um tipo de ficheiro que ficava “pequeno” mas não perdia assim tanta qualidade comparado com os gigantescos avi (ainda por cima em Inglaterra, onde estava na altura, o limite de downloads era muito curto). Já tendo procurado em tudo o que é sítio decido colocar no google as palavras mágicas: “Red Shoes rmvb” e após uns cliques encontro o myonethousandmovies. Fiquei entusiasmado, estavam ali todos aqueles filmes antigos que apareciam nos tops das revistas e muito, muito, mais. Vi o Red Shoes e tal como Scorsese adorei. Comecei a explorar o blog e vi muito daquele cinema que, infelizmente, pouca gente conhece. Entretanto passaram 9 anos e, com a vida de trabalho, o tempo é curto para tanto cinema mas, com a ajuda do Chico, e com uma regularidade ainda razoável, continuo a aprender e a introduzir as pessoas próximas à sétima arte. 
Ora, sendo o Chico uns dos grandes arquivistas de cinema, foi com grande alegria que recebi o convite para escolher um filme para celebrar os 10 anos do mythousandmovies. E escolher um filme? Não é fácil. Quase todos os meus filmes preferidos já passaram… Quase todos os bons Westerns (o meu género preferido) já passaram. Pensei no Heaven’s Gate, um dos filmes mais injustiçados de sempre mas já passou. Mas houve um que ainda não passou e que talvez haja alguns cinéfilos que ainda não conheçam, o que é uma pena. 
O género Western quase desapareceu. Ainda vão aparecendo alguns, a maioria com pouca qualidade, mas é algo que o público já não gosta e que, por isso, Hollywood já não produz. No entanto, em 2007, surge, inesperadamente, um dos melhores Westerns de sempre. Trata-se de “The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford”. Baseado no livro de Ron Hansen e realizado por Andrew Dominik retrata a conhecida história da relação dos irmãos Ford com Jesse James (Brad Pitt), particularmente do mais novo Robert (Casey Affleck) que, tal como o próprio título indica, o mata. O mais interessante não é a conclusão mas a forma como o filme retrata as suas personagens. Jesse James ficou na história como uma espécie de anti-herói mas James aqui não é a personagem das histórias (que Robert Ford também pensava que era) mas sim um homem paranoico e humano nas suas fraquezas e, Robert Ford, apesar de algo cobarde, não é uma pessoa que merecedora do odio da America. Nenhum é bom, nenhum é mau, nenhum é herói, nenhum é vilão, são os dois humanos. 
É, talvez, o melhor papel de Brad Pitt e, o de Casey Affleck é, na minha opinião, uma das melhores performances de sempre. Complexo, contido, trágico, irritante, os adjectivos faltam-me. O que não me falta é a memória daquela cena, que todos esperam, em que o assassinato ocorre. É uma masterclass em realização e actuação. Fica também na memória a beleza da banda sonora e da cinematografia de Roger Deakins que prova aqui, mais uma vez, que é um dos melhores. Uma das suas ideias de génio foi usar lentes antigas (montadas sobre camaras modernas) para criar imagens com a periferia desfocada o que aumenta a autenticidade do filme e torna qualquer frame uma obra digna de exposição. 
Muitas vezes se diz “they don’t make them like they used to” na verdade ainda o fazem, é raro, demasiado raro, mas ainda o fazem. Espero que seja uma boa descoberta para alguns. Quando o thousandmovies fizer 20 anos espero cá estar para a tarefa hercúlea de descobrir um filme que ainda não tenha lá passado. Parabéns Chico e mais uma vez obrigado por tudo!"
A escolha, e o texto, são da autoria do Frederico Martins. Muito obrigado pelas tuas palavras, Frederico.

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quinta-feira, 16 de agosto de 2018

King & Country (King & Country) 1964

Durante a Primeira Guerra Mundial as tropas britânicas são entrincheiradas em Passchendaele, na Bélgica. Entre os voluntários há um jovem soldado britânico, Arthur Hamp, que é o único sobrevivente da sua companhia original. Hamp passou três anos nas trincheiras, e isso fez dele um veterano. Nunca foi acusado de cobardia, mas um dia resolve deixar a guerra para trás e regressar a casa. Em Calais, na França, é apanhado por uma patrulha da Policia Militar que prontamente o prende por sair sem permissão.  Os comandantes de Hamp decidem convocar uma Corte Marcial e acusá-lo de deserção. Se for considerado culpado pode ser fuzilado, e vai ser defendido pelo Capitão Hargreaves, que parece céptico sobre as suas hipóteses de absolvição. 
O norte-americano expatriado Joseph Losey baseia este tenso drama anti-guerra, pessimista e consciente das classes, na semi-autobiografia de J.L. Hodson, "Return to the Wood", e também na peça "Hamp" de John Wilson. J.L. Hodson baseava-se na sua própria experiência como advogado durante a Primeira Guerra Mundial, onde não conseguiu salvar um soldado da Corte Marcial.
O filme emocionante de Losey, filmado a preto e branco, foca o seu argumento na hipocrisia da sociedade, em questões militares, e usa o debate académico sobre a moralidade da guerra numa tentativa de ver através dos véus da sociedade, que envia os seus jovens para a guerra, e falha em assumir as responsabilidades pelas consequências das suas acções. 
Ganhou o British Academy Award de Melhor filme em 1964, enquanto Tom Courteney, na pele do jovem soldado, ganhava o de melhor actor em Veneza. Já o advogado de defesa é interpretado por Dirk Bogarde, habitual colaborador de Losey, com o papel de advogado de acusação a ir para Leo McKern.
Filme escolhido pelo Sérgio Alpendre. 

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Tudo em Jogo (He Got Game) 1998

“He Got Game” é o grande filme de Spike Lee nos anos noventa, e o filme americano que melhor representa esse tempo. Em Portugal foi largado como uma foleirada para nerds directamente para as prateleiras dos videoclubes no saudoso porque vivo, orgânico, palpável, de autoimolação, formato VHS. Ainda hoje permanece um segredo a desvendar na sua plenitude universal que condensa feliz Michael Jordan e William Shakespeare, os Public Enemy, a Bíblia Sagrada e um movimento operático de rua que possibilita a aceitação de todas as formas cinematográficas revestidas pelo movimento da emoção – infinitas velocidades e ritmos e somente a velocidade e o ritmo únicos da emoção. Congrega, devorante, o esventramento de Jackson Pollock e um ressuscitar agora da arte contemplativa, contrastada e clínica de Andrew Wyeth; a alucinante realidade em primeiro grau de Auguste e Louis Lumière e o speed MTV redimido.
 A narrativa começa básica e antiga como a sede de poder. Um pai que é libertado provisoriamente da prisão para tentar convencer o seu filho a assinar um contracto de atleta com a universidade que pertence ao governador que lhe pode reduzir a pena caso siga os seus intentos. Para deste modo a história se tornar trágica e complexa na aproximação do pai, do filho, e das várias santíssimas trindades que chegam do passado e escancaram o futuro. A nostalgia, os cacos do presente, a edificação e a luz – tudo em alta rotação. Num dos grandes momentos do filme o Pai revela ao Filho que o seu nome é Jesus não por causa de Jesus da Galileia mas antes porque muito depois desse existiu um Jesus das quadras de basquetebol que era a verdade, um Jesus da Filadélfia do Norte, um Jesus dos parques de diversão, dos recantos mais inóspitos do planeta. Um Jesus preto, mas um Jesus sem sombras para dúvidas. Um Jesus que também tiveram de abafar, mas isso já são outros quinhentos... o que Spike nos diz, bruto e carinhoso como o ser que educa, e já nos tinha feito ver isso no genérico fresco e bonito como uma primavera inaugural, é que o brilho precioso, o tesouro de qualquer progenitor, de qualquer pai de qualquer raça ou credo ou classe, a redenção de uma humanidade, pode acontecer nos berços de ouro de Nova Iorque ou de Lisboa ou num meio fétido plantado no cú do mundo que mesmo assim possa permitir a uma criança desenvolver o talento e a paixão. Trabalhando todas as horas como Jordan... sofrendo as chagas seculares... as humilhações... justificado. 
 “He Got Game” está ao lado de “The Pride of the Yankees”, de “Bull Durham” ou de “Forget Paris” numa lista dos melhores filmes alguma vez feitos sobre desporto, mas acima de tudo dos que transcendem essa categoria para serem primeiramente sobre o respeito próprio (o self respect acatado e transmitido por Stallone na saga “Rocky”, outro dos melhores filmes de sempre). O Jesus Shuttlesworth de HGG, o recordista das divisões secundárias que não o conta a ninguém encarnado por Kevin Costner em BD ou o árbitro a morrer de amores de Billy Cristal vão com certeza cair nas mais diversas tentações para se manterem firmes na noção também mitológica de que se seguires o teu coração não trabalharás um único dia na vida. Obviamente a única via para o sagrado que não permitirá que se queira tomar banho mais cedo para ir dar uma queca ou snifar uma linha, largar o escritório antes das cinco da tarde, conseguir um atestado de baixa médica pelo amigo da amiga, contar os dias para as férias, querer ter férias... Em “He Got Game”, o filme que escolho para homenagear Francisco Rocha e o seu projecto de mãos vazias agora chamado My Two Thousand Movies, ninguém que aparece ali por inteiro tem um trabalho mas antes uma vida plena à Jack Kerouac ou à Huckleberry Finn, e quem levou a premissa original para lá dos limites acabou por matar a sua paixão e passar a penar nos infernos dos que demais amaram nesta terra das regras. Parabéns, Francisco do Sobral de Monte Agraço, you got game!"
Filme escolhido pelo José Oliveira, com texto dele próprio. Obrigado Zé.

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quarta-feira, 15 de agosto de 2018

As Cartas do Homem Morto (Pis’ma Miortvogo Cheloveka ) 1986

Num país não identificado de uma era não distante da nossa, vive-se os dias seguintes ao holocausto nuclear. No meio dos escombros, a humanidade tenta reorganizar-se do caos civilizacional em que caiu através de sociedades subterrâneas, criando bunkers especiais destinados unicamente a cidadãos saudáveis, com a entrada vedada inclusive a idosos ou crianças portadoras de doenças causadas pela radiação. A superfície das cidades é um terreno irrespirável e intransitável sem o uso de máscaras de gás e equipamento protector, sendo que a circulação não autorizada pelas forças militares que a patrulham é castigada com a morte - o que não impede a existência de um imenso mercado negro onde medicação e latas de conserva são vendidas e trocadas como as mercadorias preciosas em que se tornaram. 
Neste contexto, um velho professor (vulto intelectual premiado no passado com o Nobel da Física) tenta encontrar algum propósito para a sua vida numa pequena comunidade de antigos colegas que sobrevive na cave-abrigo dо museu onde antes trabalhavam. Quando não está no exterior a tentar arranjar medicamentos para a sua mulher moribunda, o professor escreve cartas ao seu filho Eric (desaparecido durante o incidente nuclear), num gesto que sabe ser muito provavelmente em vão mas que lhe serve de forma catártica de aguentar os horrores do dia-a-dia e manter alguma réstia de esperança. Quando um inspector do governo declara um grupo de crianças inapto a transitar para os bunkers devido ao estado traumático em que os miúdos se encontram, o professor vê-se impelido a tentar arranjar-lhes uma comunidade a que possam pertencer - e talvez um futuro digno desse nome. 
A que nos podemos agarrar quando toda a esperança parece perdida graças ao instinto auto-destrutivo da humanidade? Poder-se-ia dizer que é esta a pergunta que perpassa pela longa-metragem de estreia do realizador Konstantin Lopushansky: uma obra de ficção científica distópica ambientada num clima de inverno nuclear impiedoso, filmado não num formato largo e expansivo mas no clássico (e, aqui, claustrofóbico) Rácio da Academia (1.37:1), com uma fotografia maioritariamente em sépia (à excepção de três pequenas sequências, onde a paleta de cores é dominada pelos tons de azul) simultaneamente bela e opressiva, fascinante e sufocante. 
Se as imagens podem fazer lembrar o seminal “Stalker” (1979) de Andrei Tarkovsky, não é por acaso: Lopushansky foi assistente de realização do mestre russo nesse mesmo filme. É importante referir este antecedente não só pela clara influência que a estética do autor de “Zerkalo - O Espelho” (1975) teve na presente obra, como pelo facto do argumento ser assinado a seis mãos por Lopushansky, Vyacheslav Rybakov e Boris Strugatsky - sendo este último nada menos do que um dos irmãos Strugatsky, célebre dupla de escritores de ficção científica soviética responsável, entre outros, pelo romance “Piquenique à beira da estrada” (1971) e a sua respectiva adaptação para o grande ecrã sob o novo título de… “Stalker”. 
 O filme estrutura-se não tanto como uma história clássica dividida em três actos mas antes como um mosaico de pequenos acontecimentos que visam demonstrar o modo como a humanidade lida com o desastre que lhe caiu em cima. Se há um protagonista cujo percurso acompanhamos ao longo de oitenta e três minutos, não há uma construção narrativa em crescendo e, em pelo menos uma ocasião, aquilo que seria um momento dramático a explorar (um clímax, se quisermos) ocorre off-screen e só vemos as suas consequências. Isto sucede não por inabilidade da realização ou da escrita do guião mas por opção criativa: mais do que apenas uma história de uma personagem colocada numa situação extrema, é o desenho daquele mundo macabro (e a reflexão sobre as questões que esse mundo levanta) que fascina Lopushansky. 
A questão da adaptação da espécie humana a qualquer tipo de situação adversa está patente em todo o filme, indo desde o registo anedótico (o caso da mulher que decide deixar de utilizar roupa na esperança de que o seu corpo se habitue mais rapidamente à radiação) até à reflexão filosófica (os longos diálogos à mesa de jantar) e passando pela parábola política (a sociedade dos bunkers elitistas). A dado momento, ficamos a saber que os livros são agora uma mercadoria de contrabando altamente apetecível não pelo seu valor literário, mas pelo seu teor altamente inflamável que lhes torna numa fonte de aquecimento preciosa. É um apontamento de humor negro que diz muito sobre o tipo de sociedade que surge quando as bases mais elementares da civilização desaparecem. 
Há também uma reflexão sobre a necessidade humana de construir uma narrativa que dê algum tipo de sentido à desgraça vivida, de encontrar uma explicação para o que aconteceu. Um dos antigos colegas do professor passa o seu tempo a ditar o que parece ser um misto de ensaio/livro de história sobre os últimos anos da raça humana e do seu fatal ímpeto destrutivo, mas tais reflexões não trazem nenhuma resolução ou catarse. O certo é que nunca fica claro o que aconteceu exactamente, e as origens do desastre permanecem na esfera do mito ou da especulação mesquinha (sugere-se, por exemplo, que a bomba terá sido detonada por mera distracção de um funcionário…). 
 No fim, a única redenção possível neste mundo apocalíptico parece estar na contínua transmissão de valores e ideias para as novas gerações. O conceito de herança (material, cultural, afectiva, etc) está presente ao longo de todo o filme - não é por acaso que o professor escreve cartas que nunca serão entregues e vive no subterrâneo de um museu, espaço que salvaguarda a memória colectiva do oblívio: aquilo que deixamos para trás, mesmo quando aparentemente inútil, é um legado fundamental para quem nos suceder. Veja-se também a importância dada pelo professor à organização da ceia de Natal com aquele grupo de crianças abandonadas à sua sorte por adultos que se recusam a acolhê-las: até no meio do caos e do perigo, é preciso passar algo, nem que seja só a ideia de uma celebração comunitária. Daí que o final do filme, longe do tom pessimista e negro que aparenta exprimir à primeira vista, possa ser entendido como a ilustração do mote que o professor dita aos seus educandos: “Enquanto o homem estiver no seu caminho, ainda há esperança para ele”. 
 No que toca ao trabalho dos actores, há que dar um claro destaque ao soberbo desempenho de Rolan Bykov no papel do professor, um exemplo de contenção e de understatement que muito ajuda à força da personagem. Formalmente, para além da magnífica direcção de fotografia de Nikolai Pokoptsev, é preciso realçar o soberbo design sonoro (as rajadas de vento quase omnipresentes, o uso da reverberação e das vozes filtradas pelas máscaras de gás para a criação de uma atmosfera opressiva, etc.), o notável trabalho de cenografia e art-direction de Viktor Ivanov e Elena Amshinskaya (repare-se, por exemplo, na minúcia de detalhes incluídos no cenário da biblioteca destruída), a composição musical inquietante de Aleksandr Zhurbin e o apurado lavor de montagem de T. Poulinoi, sobretudo no que toca à articulação entre sequências ficcionais e diversas imagens de arquivo de explosões nucleares. 
Concebido nos últimos anos da União Soviética, ainda sob os auspícios da censura, “Cartas do Homem Morto” não contém qualquer elemento que permita identificar o cenário como sendo russo, isto porque a equipa técnica propositadamente removeu todos os objectos que contivessem texto escrito em cirílico ou que, de alguma fora, remetessem para o quotidiano das repúblicas soviéticas. O resultado inadvertido é um filme que, sendo eminentemente russo no espírito e na forma, possui uma dimensão inequivocamente universal. Sobretudo, trata-se de uma obra criada numa época em que o fantasma da guerra nuclear pairava sobre as mentes dos habitantes de ambos os lados da Cortina de Ferro, e foi feito com a clara intenção de servir de aviso para os perigos da corrida ao armamento nuclear. Talvez o aspecto mais trágico da sua realização seja o facto de ter tido a triste coincidência de estrear no mesmo ano em que se dá o desastre de Chernobyl. 
Internacionalmente, o filme marcou presença no festival de Cannes de 1987, tendo a sua primeira exibição em solo português no Festival de Cinema de Tróia de 1986 e arrecadando o prémio FIPRESCI no 35º Festival Internacional de Cinema de Mannheim-Heidelberg. Mas não seria necessário qualquer prémio para garantir o seu estatuto como uma das obras mais marcantes do cinema de ficção científica soviética.
Filme escolhido pelo Ricardo Gonçalves, que também escreveu o texto. 

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terça-feira, 14 de agosto de 2018

Fantasma (Phantasm) 1979

Mike, um jovem adolescente, acaba de perder os pais, e com medo de perder o irmão segue-o a um funeral, onde testemunha um estranho homem a quem chama de "Tall Man" levantar um caixão sozinho. Resolve investigar por conta própria, e descobre que este individuo tem poderes sobrenaturais e está a reduzir os corpos mortos a metade do seu tamanho e a transformá-los em escravos. Agora, Mike, só tem de convencer o seu irmão de que esta história é verdadeira, e impedir o Tall Man de conquistar o mundo.
Um sucesso modesto nos cinemas em 1979, "Phantasm" de Don Coscarelli, é um híbrido de terror / ficção cientifica inteligente, embora ligeiramente incoerente, e com um orçamento bastante reduzido, tornando-se num fenómeno de culto com o aparecimento dos vídeos caseiros e da televisão por cabo no início dos anos oitenta. O filme tem um charme incontestável que não era muito vulgar num trabalho de tão baixo orçamento, sendo em alguns pontos arrepiante e assustador da melhor forma possível.
Don Coscarelli tinha 24 anos quando o escreveu, fotografou, montou, realizou, embora já tivesse dois filmes no seu currículo, "Jim the World’s Greatest" (1976) e "Kenny & Co." (1976), dois filmes virados para o público juvenil, que viam o mundo através dos olhos dos seus jovens protagonistas. Coscarelli adaptou a mesma abordagem narrativa para "Phantasm", usando os dois irmão jovens como personagens centrais. O núcleo dramático do filme é surpreendentemente forte, com o vínculo fraternal entre Mike e Jody, os dois irmãos, a darem ressonância emocional a partir do momento em que começam a descer ao mundo do sobrenatural. Deu posteriormente origem a várias sequelas.
Filme escolhido pelo Carlos Alberto Carrilho.

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The Hourglass Sanatorium (Sanatorium pod Klepsydra) 1973

"Józef (Jan Nowicki), viaja de comboio até ao sanatório onde o seu pai está internado, na Polónia antes da II Guerra Mundial. Ao chegar, sente estar num mundo diferente, onde o tempo pode voltar para trás. Józef é assim levado numa viagem interior, onde memórias e fantasias se misturam. Desse modo redescobre os seus pais, com quem conversa de novo, vê imagens da história com soldados coloniais, convive com judeus da sua cultura, nos ghettos onde cresceu, assiste a discussões teóricas, observa a política do seu tempo através de bonecos de cera, e revive episódios do seu passado, envolvendo as raparigas que amou.
Wojciech Jerzy Has foi um prolífico realizador polaco, que escapou à tradição de filmes políticos do seu período, preferindo dedicar-se a temas psicológicos e abstractos. Exemplo são os seus filmes de cariz surrealista como “Sanatorium pod Klepsydra”, que em Portugal passou apenas na televisão como “Sanatório Clepsidra”. 
 No sanatório que dá nome ao filme, como nos é explicado logo no início pelo médico residente, o tempo não passa como lá fora. De facto, pode retroceder sempre que queiramos, o que é testemunhado pelo personagem principal Józef (Jan Nowicki), quando após a sua chegada, pode, através de uma janela, ver-se no exterior ainda a chegar. Essa peculiaridade temporal é o mote para as viagens ao passado de Józef, feitas de um modo perfeitamente caótico. 
 Mais que viajar para o passado, Józef experimenta um misto de fantasia e reminiscência, que o conduz aleatoriamente de sala em sala, de pensamento em pensamento, de episódio em episódio. Sem o controlar Józef vê-se interpelado pelas mais estranhas personagens, que surgem e desaparecem como fantasmas da sua imaginação. Do mesmo modo, vê-se transportado de um para outro cenário sem qualquer explicação lógica, e pelos meios mais insólitos, como seja passar por de baixo de uma cama, e surgir num jardim do sanatório. 
 Se no início Józef tem como único objectivo inteirar-se do estado de saúde do seu pai, estranhando a decadência do edifício, logo passa a aceitar aquela realidade fantasiosa, interagindo com os restantes personagens de modo natural. É assim que encontra o seu pai, de boa saúde, em diferentes contextos, redescobre a sua mãe, participa em discussões com o médico e um ornitólogo, tenta fazer sentido do seu mundo através de um livro de selos de uma criança, assiste a batalhas coloniais e participa em discussões de política, onde os personagens são bonecos de cera. Józef redescobre ainda pessoas do seu passado, como os judeus do ghetto onde cresceu, as raparigas que amou, amigos de infância. 
 Tudo isto acontece numa mansão onde o tempo e o espaço não têm relevância. Cada porta pode, de cada vez que aberta, levar a um local diferente, exteriores e interiores confundem-se, e para passar de um local a outro, tanto se pode passar por debaixo de uma cama, subindo uma escada, ou afastando umas cortinas. 
 O principal trunfo de “Sanatorium pod Klepsydra” é, no entanto, a sua mise-en-scène, resultado de uma excelente produção. Através de cenários elaboradíssimos, o sanatório ganha uma vida incrível, onde cada cenário é ricamente detalhado, e cada espaço uma surpresa de extrema beleza. 
 Não é difícil imaginar o filme como um sonho, onde tempo e espaço pouco significam, a lógica fantasiosa é naturalmente aceite pelo protagonista, e os personagens e as conversas surgem fora de lugar, num ritmo caótico sem qualquer lógica aparente. A história é por isso uma viagem interior de alguém a contas com o seu passado, num momento em que a perda do seu pai o torna emocionalmente mais frágil. 
 “Sanatorium pod Klepsydra” venceu o Prémio do Juri do Festival de Cannes em 1973. mesmo contra a vontade das autoridades polacas, que viam no filme um ataque às condições dos hospitais do país, e um enaltecimento da cultura judaica, reprimida na Polónia."
Filme escolhido pelo José Carlos Maltez. O Texto também é seu, do seu blog.

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segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Blue Collar (Blue Collar) 1978

Três trabalhadores, Zeke (Richard Pryor), Jerry (Harvey Keitel), e Smokey (Yaphet Kotto), trabalham juntos numa fábrica de carros. Uma noite, quando conseguem separar-se das suas mulheres para se divertirem têm a ideia de roubar o sindicato local. Colocam a ideia em prática mas só conseguem roubar 600 dólares, embora Zeke perceba que também conseguiram algum material "quente". Resolvem chantagear o próprio sindicato, mas ficam surpreendidos pelo facto do sindicato revelar que perdeu 10 mil dólares no roubo, e as coisas começam a complicar-se...
Obra de estreia de Paul Schrader, é um filme muito seguro para quem está a realizar pela primeira vez. Tendo observado de perto a realização do seu argumento em "Taxi Driver",  Schrader emergia assim no grupo dos chamados de "Nova Hollywood", da qual faziam já parte realizadores como Scorsese, De Palma (com quem ele já tinha trabalhado), Coppola, Cimino, entre outros. "Blue Collar" era o tipo de filme duro e realista, uma espécie cada vez mais difícil de encontrar no cinema americano, com uma forte mensagem social que permanecia relevante numa altura em que as grandes empresas ainda controlavam a política e mantinham as classes mais baixas dóceis, através de preconceitos.
Os três principais actores têm alguns dos seus papéis mais fortes. Keitel prova mais uma vez que está à altura de De Niro ou Pacino, embora nunca tenha tido a sorte de entrar em filmes tão marcantes como "Taxi Driver" ou "The Goodfather". Yaphet Kotto bastante intenso, enquanto que Richard Pryor, um nome forte na comédia, mostra que também pode brilhar em papéis dramáticos. 
Embora um pouco esquecido, é um filme que deve ser visto por todos os fãs da Nova Hollywood".
Filme escolhido pelo Miguel Meira. 

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Pontypool (Pontypool) 2008

Desde 2011, que tenho um blogue – esse sítio em vias de extinção – no qual escrevo sobretudo sobre cinema de terror do sudeste asiático. Suponho que O Homem dos 2.000 filmes, na altura ainda numa contagem modesta (cof cof) de 1.000 filmes, albergasse a expectativa de que a minha selecção recaísse nesse âmbito, mas penso que para uma homenagem nada melhor do que sair da zona de conforto. Por outro lado, quando explorámos diversas possibilidades de filmes a apresentar nestes prolíficos 10 anos de blogue fiquei espantada com o facto de ter acertado com tanta facilidade num filme que o dono deste blogue não tinha visto. Ora, se o cinema é vastíssimo, não é de menosprezar quem a Ele se dedica há, pelo menos, dez anos. Era uma oportunidade que simplesmente não podia deixar passar.
 “Pontypool” (2008) é um filme canadiano independente, baseado numa obra de Tony Burgess “Pontypool Changes Everything”, sobre o advento de uma praga que transforma todos os seres humanos afectados em algo similar a zombies. Nunca fui grande fã de filmes de zombies. Reconheço o seu papel no imaginário popular e, em particular dos filmes de terror de que Romero continua ainda a ser o expoente máximo, mas nunca foi o subgénero que mais me atraísse. Em tantos e tantos anos de representações na literatura, cinemáticas, teatrais, etc, os zombies subsistem como seres vazios, aterradores pela brutalidade e incapacidade crítica na aproximação às suas vítimas, mas nada mais há a motivá-los além da capacidade de respiração humana. Diria até gosto por drenar uma vida mas eles são acéfalos por isso, ceifar uma vida nem sequer lhes poderá dar prazer – pelo menos não no sentido tradicional do termo. Por contraste, temos bestas e criaturas míticas, assassinos em série com mommy e daddy issues, com sérios problemas sexuais e outros tantos traumas que os formatam em toda a sua bestialidade; alienígenas com toda a vantagem de se poder imaginar qualquer coisa pois que não está provada a sua existência em termos científicos, entre muitos outros… E um zombie, continua ainda a ser… um zombie. Pouco mudou neste papel (extraindo talvez a caracterização), desde Romero, pois que as regras na sua abordagem são essencialmente as mesmas – a fixação da carne, ataque indiscriminado, infecção por sangue -, as únicas mudanças a que tenho assistido com poucas variações no universo cinemático, são o contexto psico-social, o início da infecção/incidente despoletador (esta palavra existe?) e o grupo de sobreviventes.
 Então, porquê “Pontypool”? Aborrecimento. A sério. Algumas das escolhas mais fascinantes e que não me canso de repetir e insistir para que os meus amigos cinéfilos assistam advieram do mais puro aborrecimento. O caminho foi simples: estava num daqueles dias em que tinha tempo e não me apetecia assistir ao blockbuster do costume, à rom-com sem piada e a lista de escolhas pessoais a visionar não me convencia particularmente. O motor de pesquisa foi meu amigo e encontrei algumas pérolas indie que papei logo de seguida, até chegar a este “Pontypool”. O autor do artigo vendia o filme como um exercício d’ “A Guerra dos Mundos” de Welles mas num contexto de apocalipse zombie com crash course em semiótica. Estava numa de experienciar algo diferente pelo que a ser verdade estava disposta a comprar daquilo que queriam vender. 

Sinopse: Grant Mazzy é um locutor de rádio mais interessado em entreter do que em assumir um papel informativo. É apologista de “quanto mais sangue melhor” – estaria perfeito no Correio da Manhã – e isso valeu-lhe o despedimento de uma grande estação e o recambiamento para a rádio de uma pequena localidade com pequenos meios e pouca capacidade para albergar um ego tão grande. Lá é acompanhado pela produtora Sydney Briar (Lisa Houle), uma profissional a toda a prova determinada a impedir que Mazzy desafie a linha editorial da estação e Laurel-Ann (Georgina Riley) que terminou recentemente uma comissão no Afeganistão. Aquele que seria mais um dia típico de uma cidadezinha aborrecida – o desaparecimento de Honey o gato da Sra. French é o tema quente da jornada – é virado do avesso após o repórter Ken Loney relatar acontecimentos bizarros e aterradores no consultório do Dr. Mendez que se espalham um pouco por toda a cidade. 

Já foram produzidos imensos, demasiados filmes em que um vírus zombie é transmitido pelo ar. Não existe nada tão essencial, tão premente, tão absolutamente necessário quanto o acto de respirar. Ao efetuar esse acto e estando o ar que se respira contaminado a infecção é certa. Agora imaginem um outro algo que seja tão natural e imprescindível ao ser humano quanto respirar, a linguagem por exemplo. Imaginem a perversidade, uma ideia tão insidiosa quanto a possibilidade de um vírus ser transportado numa língua e transmitido enquanto se comunica. Mais do que fazer, o Homem quer comunicar o que faz. É uma faculdade primordial e no entanto desvalorizada porque inata. O que Mazzy descobre enquanto descreve um circo de horrores é que o puro acto de comunicar – na língua inglesa – e a sua mensagem ser difundida e compreendida, pode estar a transformar outros seres humanos em zombies. O que eles fazem é… bem, não é muito diferente do zombie normal, sendo que se tornam irracionais a partir da acepção de palavras-chave que repetem depois vezes em conta e cujo significado perdem, tentando ir buscá-lo à boca da sua próxima vítima ou acabando por se devorar a si próprios. Em todo o caso o resultado é sangrento. Existem por isso, duas asserções muito interessantes: por um lado, o vírus não é indiscriminado pois apenas afecta quem compreende a mensagem e por outro, quem o transmite pode nem sequer estar infectado, tendo portanto, uma enorme responsabilidade sobre os seus pares. Surge então uma escolha a fazer como Mazzy diz a certa altura: “Should we be talking at all?” Enquanto um “A Quiet Place” exige o silêncio, no mundo radiofónico de “Pontypool” a escolha parece um pouco mais penosa. Informar é em simultâneo um perigo e um dever. Pelas conversas mantidas os habitantes naquela rádio tornada entretanto santuário, apercebem-se que nem todas as palavras estarão infectadas. Se não, eles próprios já se teriam transformado naquilo que mais temem. Embarcam numa encenação delirante que envolve a manutenção de conversas bizarras com alteração de palavras-chave de modo a não perder o sentido da conversa e em simultâneo não ativar o vírus assassino ou, quando têm oportunidade e conseguem, falam noutras línguas. Felizes dos canadianos francófonos. Outro pormenor divertido foi o facto de a língua afectada ser a inglesa – predominante no século XXI e a língua a que se poderão agarrar como bóia de salvação ser a francesa, que dominou o panorama mundial até meados do século XX com o poderio global dos EUA, bem como a desavença histórica entre os franceses e ingleses, da qual estes últimos podiam ser entendidos como “vencedores”. Num mundo ao contrário, a banal língua inglesa tornou-se tóxica, porque perigosa. Alvo de censura até. É o apocalipse da(quela) língua. Nos idos de 2018, com a brutalidade e trollagem que grassa nas redes sociais e personagens como um Presidente dos EUA que incita esse tipo de comportamentos isto é apenas irónico. 
 O campo de batalha de “Pontypool” é travado uns 80% numa estação de rádio e 20% nas mentes colectivas. O orçamento é certamente reduzido mas fica no ar – passe a piada – a ideia de que o enfoque na rádio, porque tão essencial para a transmissão dos acontecimentos e eventualmente do vírus foi deliberada. Em nenhum outro meio é tão essencial compreender o significado do que está a ser veiculado pois que não há imagem, apenas áudio. É impossível não prestar atenção a Mazzy, interpretado por um Stephen McHattie cuja voz foi feita para o meio, que embrenha a audiência nos seus delírios de ex-estrela, depois no fervor jornalístico e, por fim, no puro pânico que não quer ser transmitido mas se percebe à medida que o mundo que ele apenas consegue observar através dos sons cai em ruina. 
 É a Guerra dos Mundos se fossemos nós a ser filmados com a destruição do mundo enquanto o conhecemos a ser provocado por nós, na ponta das nossas línguas. E essa perspectiva é a mais assustadora de todas.
O filme foi escolhido pela Rita Santos, que também é a autora deste magnífico texto. 

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domingo, 12 de agosto de 2018

David e Lisa (David and Lisa) 1962

David é um jovem adolescente que sofre de distúrbios mentais e emocionais, e é internado numa instituição psiquiátrica. Aos poucos ele vai compreendendo o seu estado psicológico e como lidar com isso no meio ambiente em que vive. As coisas tornam-se ainda mais claras quando ele começa a ter mais intimidade com uma jovem também internada que sofre de esquizofrenia.
"Este pequeno filme sobre adolescentes numa casa de saúde custou apenas 200 000$ e marcou a estreia de Frank Perry na realização, pela qual recebeu a sua primeira e única nomeação para um Óscar. Como é que o tio da Katy Perry (sim, a cantora pop) pode ter caído em esquecimento nos dias de hoje é algo bizarro, até porque (facto mais importante, digo eu) filmou personagens e histórias com muita originalidade e franqueza. David And Lisa aborda a saúde mental e o amor juvenil com uma honestidade quase brutal, que cai como um balde de água fria, mas comove indelevelmente. É um filme que nos expõe a vulnerabilidades, e nos aproxima nesse processo. Descobrir o percurso de Frank Perry nos anos 60, em especial, é uma obrigação para qualquer cinéfilo."
Filme escolhido pelo David Lourenço, que também foi o autor deste comentário sobre o filme.

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sábado, 11 de agosto de 2018

Assa (Assa) 1987

A acção passa-se no Inverno de 1980, e conta a história de  uma jovem enfermeira (Tatyana Drubich) que está em Yalta com o seu paciente e namorado Krymov, chefe de um gang de criminosos. Ali ela conhece Bananan, um jovem roqueiro excêntrico, que a apresenta à contracultura soviética. Quando Krymov descobre a ligação dos dois, planeia matar Bananan.
Nos anos 80 da União Soviética apenas um punhado de filmes atingiu o estatuto de culto para as gerações mais novas. Um deles foi este "Assa" (1987), que viria a definir a vitalidade e as emoções nos anos anteriores ao colapso da União Soviética. 
Realizado por Sergey Solovev, para os estúdios estatais  Mosfilm, "Assa" foi filmado inteiramente no resort de Yalta, na Crimeia, num período de relativa paz para esta península disputada. Situado no auge da era de estagnação de Leonid Brezhnev, "Assa" inclui um embate entre o velho e o novo, que são representados por um chefe dominador de um gang que está a ter um caso com uma enfermeira bastante mais nova, e um músico de rock underground de espírito livre. Bananan era interpretado por Sergei “Afrika” Bugaev, um artista na vida real que incorporava os ideais de uma cultura underground que surgiu em São Petersburgo no início dos anos 80. 
O líder deste movimento foi Timur Novikov, que supervisionou a chegada de dois movimentos, os Novos Artistas e a Nova Academia. Vários membros dos Novos Artistas contribuíram para a produção de "Assa". As duas sequências de sonho de Bananan, por exemplo, foram criadas por Yevgeny “Debil” Kondratiev, que junto com outros membros como Oleg Kotelnikov, Inal Savchenkov, e Vadim Ovchinnikov desenvolveram uma série de técnicas cinematográficas inovadoras. A sequência mais icónica do filme é protagonizada por Viktor Tsoi, o cantor superstar da banda de rock Kino, que morreu num acidente de viação em 1990, com a idade de 28 anos.  
Filme escolhido pelo Paulo Soares, com legendas em inglês.

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Elena (Elena) 2012


Em Elena, a realizadora brasileira Petra Costa transparece-se para o grande ecrã com o intuito de narrar a sua tragédia de vida, por vezes essas consistirem a verdadeira matéria da nossa natureza emocional. Para a jovem, esse impulso trágico surgiu sob a forma do suicídio da sua irmã, o luto que lhe trouxe até aqui, a um dos pertinentes trabalhos de conjuntura, que chega sob a forma / pretexto de documentário. Digo pretexto, porque sob essa oferenda de conto e reconto nasce uma encenação, a da dor sentida, expressada e metaforizada pela omnipresença da lua e dos corpos flutuantes que se vão ajuntando como um comício de almas. Como primeira obra, Petra Costa levou a sua experiência a um cerco de intimidade, essa no qual sentimos estranhos invasores - os americanos empregariam o termo “home invader”, por cá solicita-se “soul invader” - a forçosa entrada numa dimensão pessoal e familiar. Elena une as façanhas da simplista competência do formato documental com o arthouse poético e por vezes dotado de umbiguismo das escolas de Nova Iorque. Petra Costa partiria deste filme para uma colaboração de dois “mundos” em Olmo e a Gaivota (este estreado em território português), onde passaria do convite ao incómodo criminador para a iniciativa ao incómodo alheio. Entre as duas obras evidencia-se uma vontade de fundir a ficção com o documentário de raiz, essa procura de narrativas em realidades vincadas. Elena, sem estreia comercial em Portugal, tendo passado no FEST de Espinho e no FESTin de Lisboa, foi ignorado pelos canónicos críticos e pela cinefilia lusa, porém, é um filme a merecer a sua descoberta e redescoberta. Quem sabe se teremos nome no Cinema do futuro.
O texto e a escolha do filme são da autoria do Hugo Gomes.

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sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Eureka (Yurîka) 2000

O filme começa com um psicopata armado a desviar um autocarro nuns subúrbios do Japão. No rescaldo de um tiroteio violento com a polícia, apenas três pessoas do autocarro sobrevivem: o motorista, uma jovem estudante, e o seu irmão mais velho. Em choque, o motorista desaparece, e as crianças retiram-se para o seu próprio mundo silencioso. Dois anos depois, o motorista regressa à cena do crime, e começa a juntar os pedaços da sua vida. Descobre que os outros dois sobreviventes agora vivem sozinhos na casa dos pais. A mãe fugiu, o pai morreu, e eles recusam-se a falar com mais alguém. Desesperado para ajudá-los a ligarem-se ao mundo, vai viver com eles.
Filmado em sepia Cinemascope, é uma filme arrebatador visualmente. Misturando a sua história do luto com elementos de suspense, a polícia acha que o motorista é um serial killer que anda a atacar pelas redondezas, "Eureka" causa uma sensação palpável de desconforto.
O realizador Shinji Aoyama, habilmente cria tensão do nada, construindo sobre a sua estrutura um pouco desequilibrada com uma série de shots longos que enfatizam os silêncios perturbadores. Esta sensação malévola poderia sugerir que o filme estivesse a mover-se para um tipo de terror como o de "The Ring", mas o verdadeiro terror deste filme vem de saber que os personagem olhavam para o abismo e voltavam vazios interiormente.
É um filme maravilhoso em todos os sentidos, um estudo quase perfeito de como o mundo continua depois da tragédia, e que as coisas nunca mais voltarão a ser as mesmas. O realizador disse que o filme foi inspirado por uma série de fontes: o incrível aumento de violência sem sentido no Japão, a música dos Sonic Youth e Jim O'Rourke, um desejo de filmar na sua terra natal de Kyushu, e o filme de John Ford, "The Searchers". Todos estes factores foram combinados com uma grande simplicidade.
Filme escolhido pelo Nuno Simões. 

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Seasons of the Year / Life (Vremena Goda/Kyanq) 1975/1993


Os filmes do arménio Artavazd Péléchian estão entre os documentários mais impressionantes da era soviética do pós-guerra.Treinado nas salas de aula da famosa escola de Moscovo, VGIK, Péléchian começou a desenvolver um estilo singular desde os seus primeiros filmes. Ao contrário de muitos dos seus pares mais políticos, Péléchian explorou temas mais humanistas numa escala universal, usando imagens de pessoas, animais e natureza lindamente fotografados para comentar sobre o tempo e a condição humana. A chave da sua obra é a teoria da montagem distante, em que as ligações temáticas são feitas ao longo do filme, e não através de cortes directos. Ele explicou o conceito desta forma: "Eisenstein’s montage was linear, like a chain. Distance montage creates a magnetic field around the film. It’s like when a light is turned on and light is generated around the lamp. In distance montage, when the two ends are excited, the whole thing glows."

Hoje temos dois filmes deste documentarista:
Seasons of the Year ( Vremena Goda, 1975) - A última colaboração entre Artavazd Péléchian e director de fotografia Mikhail Vartanov é um filme-ensaio sobre os pastores na Arménia, sobre a contradição e a harmonia entre o homem e a natureza, com "Four Seasons" de Vivaldi como banda sonora.
Life (Kyanq, 1993) - Primeiro filme de Péléchian a cores, descreve o nascimento de um ser humano e o significado deste evento. 
A escolha destas duas curtas-metragens foi do Luís Mendonça.

Seasons of the Year
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Life
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quinta-feira, 9 de agosto de 2018

A Ameaça (See No Evil) 1971

Mia Farrow é uma bonita e jovem mulher que fica cega na queda de um cavalo e é levada pelos tios a viver com eles, numa maravilhosa mansão no campo. Mas, em vez de tranquilidade, ela encontra um inferno de horror quando um assassino se coloca no encalce da família.
Um chiller-thriller a saír das mãos de Brian Clemens, "See No Evil" foi um filme bastante discreto para o realizador Richard Fleischer, conhecido por realizar épicos cinematográficos como "The Fantastic Voyage", "Doctor Doolittle", "Tora! Tora! Tora!" ou "20,000 Leagues Under the Sea".Mas isso não faz de "See No Evil" um filme menor, muito pelo contrário. Brian Clemens era mais conhecido como produtor e argumentista da famosa série de televisão "The Avengers" (não a dos super-heróis), e também era a mente que estava por detrás de uma série de excelentes chillers britânicos, como "And Soon the Darkness", "Dr Jekyll and Sister Hyde" e "Captain Kronos: Vampire Hunter", este último também viria a realizar. 
Clemens basicamente retrabalha o enredo de "Wait Until Dark" (de 1967, filme que já vimos por aqui), retirando a parte do crime e transformando-o num psycho-thriller. Não se preocupa com nada além do mínimo necessário para chegar ao tal jogo do gato e do rato. Uma vez lá, o realizador Richard Fleischer está no seu território, com a personagem de Mia Farrow, que numa sequência está inconsciente dos corpos na cama ao lado dela, ou vemos o assassino a revistar-lhe os bolsos enquanto ela toma banho.
"See No Evil" seria ofuscado por outro filme de terror protagonizado por Mia Farrow, estreado pouco tempo antes, "Rosemary´s Baby", mas definitivamente que merece ser visto.
Filme escolhido pela Sonja Rosa. 

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