terça-feira, 17 de setembro de 2019

The Twilight Zone - Night Call (Night Call) 1964

Há quem acredite em Deus, nos anjos e no Paraíso, como há quem os substitua por outras coisas, concedendo-lhes a mesma santidade e o mesmo relevo. Há quem diga que pensou todo o dia em nós quando aparecemos por acaso e depois de muito tempo sem dar notícias, como se o universo os estivesse a tentar avisar do acontecimento antes da ocasião. Há quem confie mais nas energias do que na ciência, que às vezes dá pessoas como mortas e não consegue processar em termos lógicos a persistência delas em sobreviver. Há quem se pacifique com a morte de quem lhe era próximo com sonhos estranhos em que o inconsciente, por mais misterioso e profundo que seja, não parece ser o único agente em acção. Há coincidências ou sinais inexplicáveis que nos compelem a tomar certas acções, fazendo-nos duvidar do livre-arbítrio envolvido mesmo no processo.
Jacques Tourneur podia ser uma figura muito elíptica e elusiva dentro de Hollywood, mas não tão elíptica e elusiva que não nos tenha deixado algumas pistas sobre as suas filosofias de trabalho e de vida. “Eu faço filmes sobre o sobrenatural,” disse ele a Bertrand Tavernier em 1970, “e faço-os porque acredito nele. Acredito no poder dos mortos, em feiticeiros. Conheci de resto alguns quando estava a preparar A Noite do Demónio. Discuti com a mais velha feiticeira inglesa. Falámos muito tempo sobre o mundo dos espíritos, do poder dos gatos. Também visitei casas assombradas... Eu próprio possuo certos poderes. Acontece-me sentir que vou ver em breve um amigo que perdi de vista há muito tempo. Rabisco o nome dele num pedaço de papel. Umas horas depois tocam à porta e é ele. E eu mostro-lhe o papel onde coloquei o nome dele diante de uma testemunha... Também sei que existem universos paralelos ao nosso. Escrevi todo um argumento depois disso que se chama Whispers in a Distant Corridor. É sobre a luta entre todos os dispositivos técnicos mais avançados, os computadores mais modernos e o mundo dos mortos que tenta entrar em contacto connosco. Esse mundo que é muito mais poderoso do que o nosso. Fala-se sempre do problema das minorias. Nós, os vivos, somos uma verdadeira minoria face aos mortos... Mas é exasperante que se apresentem sempre estes poderes sobrenaturais como forças maléficas. Porquê este racismo? Se elas existissem e fossem maléficas, há muito que tínhamos sido varridos...”
Night Call, centésimo trigésimo nono episódio da fabulosa série criada por Rod Serling no final dos anos 50, “The Twilight Zone” (“A Quinta Dimensão” em Portugal), parece ser a representação perfeita desse tal mal-entendido dos “poderes sobrenaturais como forças maléficas” e uma das concretizações possíveis de Whispers in a Distant Corridor. Nele, Gladys Cooper interpreta Elva Keene, uma mulher que é assediada por telefonemas constantes de origem desconhecida. Houve uma tempestade eléctrica, o fio telefónico foi cortado, e as chamadas nocturnas não têm explicação aparente. É esse o ponto de partida, mas a câmara de Tourneur e os toques de telefone que rasgam como punhais o silêncio da noite (controlados sem dúvida alguma pelo realizador, que confessou seguir “sempre de muito perto a sincronização e a montagem sonora dos meus filmes”), conduzem a coisa muito gradualmente para os domínios do extraordinário.
Nos tempos da RKO, desligavam-se os projectores entre cenas nas rodagens do realizador francês, permanecendo ligados candeeiros ou fontes luminosas menos intensas e agressivas para os intérpretes. Os actores eram convidados a ensaiar os diálogos e moviam-se assim de forma diferente, na direcção da luz, falavam mais baixo por estarem quase às escuras, tornando a cena muito mais interessante. Tourneur anotava-lhes os movimentos e os discursos e tentava preservar tudo isso quando depois filmava. Em Night Call, quando a personagem de Gladys Cooper segue o conselho da criada e tira o auscultador do descanso, o sinal de interrompido não a deixa dormir. Põe roupa à volta do auscultador e consegue abafar o som, mas a noite silenciosa deixa-se invadir pela nota constante do sinal, que volta a encher as sombras do quarto apagado e a testar-lhe a paciência. Quando decide voltar a pousar o auscultador, a violência do toque de telefone parece voltar redobrada, não se sabe se por estar mesmo mais alto se pela modulação exemplar da cena. 
Depois de se descobrir a verdadeira natureza destas chamadas, passados os muitos “hello” ora sinistros ora inocentes de quem telefona, dadas respostas vagas e reacções incrédulas às queixas e receios da Sra. Keene, recebidos toques e sinais, avanços e recuos que demonstram concisamente o processo telefónico e as pessoas que o operam, dá-se a grande revelação e já se quer acreditar. Mas é tarde demais. Pode-se terminar aceitando como Pascal (e como Tourneur) que “se submetermos tudo à razão a nossa religião fica sem nada de misterioso ou sobrenatural. Se ofendermos os princípios da razão a nossa religião será absurda e ridícula. Há dois extremos igualmente perigosos: excluir a razão e não admitir nada senão a razão.” 
Texto do João Palhares

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