Os segredos da infância são insondáveis. Sem filtros, as crianças são capazes da maior inocência e das maiores safadezas, quase sempre com uma piada tão desarmante que os adultos não sabem que lhes fazer. Podem arrastar os pais até às montras de uma pastelaria, gritar “ó mãe, dá m'um booolo”, pôr a boca no vidro e começar a chuchar ao desbarato. Atravessar uma passadeira de mão dada a uma tia ou à avó e fazer sinal de paragem aos carros, com a mão direita bem esticada e decidida. Fazer os dias a quem passa e os vê com gestos simples destes. Para além disso, dizem ter amigos imaginários que os convencem a fazer asneiras, para o que se arranjaram as mais variadas explicações, e que vão desde a hipótese da matreirice pura à da maior abertura deles em comunicar com fantasmas e com o mundo dos mortos. E há também poucas coisas tão belas e tão comoventes como o laço que uma criança consegue criar com um animal, por si só um filão literário e cinematográfico e que nos eleva às alturas do Livro da Selva (1894) de Rudyard Kipling, Banjo (1947) de Richard Fleischer ou Good-bye, My Lady (1956) de William Wellman.
Também é uma idade impressionável e de transição, e por isso se tentam impor os limites e as linhas vermelhas que os hão-de preparar para a vida em sociedade, embora haja ainda muito desacordo entre pais, educadores e psicólogos sobre as melhores formas de o fazer, que mudam constantemente e consoante as modas e os tempos. Agostinho da Silva não esteve com meias medidas quando disse a Manuel António Pina que “o ideal era que morrêssemos jovens, que morrêssemos crianças...”, “mas são raros aqueles que conseguem”, “eu costumo brincar com a palavra 'adulto' com uma etimologia falsa, dizendo que o que acontece com as crianças quando chegam aos catorze, quinze anos, cortam-nas, fazem-nas parar e juntam-lhe outro bocado de um adulto. De onde vem o verbo 'adulterar'. Quer dizer, toda a criança é adulterada por um adulto.” Finalmente, foi através da ilustração destas tensões que apareceram Lewis Carroll com o seu Alice no País das Maravilhas (1865), James Matthew Barrie com Peter Pan (1904), ou Carlo Collodi com As Aventuras de Pinóquio (1883), transformando-as quase inadvertidamente (e sobretudo no caso do italiano) em mitos fundadores, questões eternas.
Luigi Comencini sempre se interessou muito pela infância como terreno para a ficção, basta citar títulos de alguns filmes e séries de televisão que realizou, como Bambini in città (1947), Heidi (1952), Infanzia, vocazione e prime esperienze di Giacomo Casanova, veneziano (1969), “I bambini e noi” (1970) “Cuore” (1984) ou O Rapaz da Calábria (1987), e lembrar a sua fabulosa primeira longa-metragem, Proibito rubare (1948), interpretada maioritariamente por crianças napolitanas que não viviam em melhores condições do que as personagens que encarnavam – miúdos abandonados pela cidade e pelos próprios pais. Sem conhecerem outra realidade que não a delinquência, e transformando os bandidos e os marginais para quem faziam uns biscates nas suas figuras paternas, reagiam de forma insolente e desconfiada à bondade e ingenuidade extremas do padre que os queria receber e re-introduzir na sociedade, Don Pietro. O que é surpreendente no filme, personificado pela presença discreta e silenciosa de Peppinello, um dos miúdos acolhidos pelo clérigo, é a transição suave que se dá dentro das crianças e nos seus termos à medida que se vão habituando a Don Pietro. O lar que ele queria criar para elas não cresce como o esperado, têm dívidas espalhadas por toda a cidade. E a razão por que a maior parte delas se tinha lá metido era para esconder e vigiar um saque de relógios de ouro, que um dos delinquentes lhes tinha confiado até sair da prisão. Peppinello decide então vender os relógios e meter o dinheiro na caixa de esmolas de Don Pietro – às prestações, para não levantar muitas suspeitas – sem querer nada para si próprio. Que isto nos pareça a única solução possível, independentemente do que pessoalmente achemos certo ou errado, deve-se ao talento extraordinário de Comencini em nos fazer entrar naquele mundo sem reservas, despertar a criança que já fomos e que lutava contra a injustiça da forma mais desconcertante possível, em dirigir miúdos não profissionais com a crença de que “as crianças brincam enquanto rodam um filme. Aqueles americanos que contratam psicólogos para os fazer representar ou para reparar eventuais danos causados pelo trabalho no cinema são loucos. É só preciso deixá-las brincar, e não é verdade que falhem quando estão a representar. (...) Um realizador deve saber que uma criança não é um bom actor: uma criança existe, e chega.”
“Le avventure di Pinocchio” é outro tratado. Feito depois da série documental “I bambini e noi”, em que Comencini teve a oportunidade de viajar por Itália a entrevistar mães, pais, filhos e filhas de todas as classes sociais sobre as suas situações e as suas vidas, subverte admiravelmente a moral pesada do livro de Collodi. Se a versão de Walt Disney e dos seus artesãos talentosos modifica consideravelmente a história (no livro, por exemplo, o Grilo Falante faz apenas duas pequenas aparições, não é personagem de relevo mas um dos muitos membros do séquito de animais da Fada, que tem uma importância muito maior do que na versão animada), mantendo-se fiel ao espírito (se as crianças se portarem bem e forem bem-educadas, são recompensadas), a série de Comencini percorre praticamente todos os episódios (mantendo todas as personagens, do Mestre Cereja à Caracoleta, mas alterando a condição de marioneta da personagem principal, que se vai transformando em menino verdadeiro ou marioneta dependendo de como se porta e em que apuros se encontra), invertendo consideravelmente o espírito do livro de Collodi ao eliminar o epílogo (em que se revêem o Gato, a Raposa, o Grilo Falante e Palito, e em que Pinóquio se redime socialmente acordando cedo todos os dias e acreditando piamente que há pessoas que merecem ser pobres), tomando o ponto de vista e o lado de Pinóquio e transformando as suas aventuras numa meditação comoventíssima sobre a miséria e a solidão. Aqui não há “adulteração” e as crianças podem acrescentar algo ao mundo sem deixarem de ser crianças, sem deixarem de ser impulsivas e teimosas, por quererem mais do que comida na mesa ou rotinas e regras para seguir religiosamente em troca de salários miseráveis e noites mal dormidas. Mas não é um equilíbrio fácil, e dói ver Pinóquio a usar as ferramentas e a cadeira de Gepeto como lenha para a lareira, no primeiro episódio, ou Gepeto a descascar pêras ao filho depois de vir da prisão sem que este deixe ao pai o que quer que seja, no segundo episódio. Mas como em Proibito rubare, a transformação é bem suave e modular, porque Pinóquio aprende a fazer o bem sem ter de abdicar dos seus impulsos, passando os restantes episódios a procurar o pai depois de se separarem, tal como Gepeto o procura a ele. E aceitam-se um ao outro dentro do estômago de uma baleia por fazerem esse percurso. Um aprende que as aventuras também fazem parte da vida, o outro que pai há só um. E nós, que podendo não haver remédio imediato para a miséria, há pelo menos para a solidão.
* Texto do João Palhares
Legendas em inglês.
Parte 1
Parte 2
Imdb
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