Foi há trinta e nove anos que Paul Newman realizou este filme para a televisão que resiste pacientemente a cada nova visualização, com personagens que nos parecem olhar nos olhos e perguntar uma e duas vezes “como é que estás?” ou “o que é que fizeste este último ano?” com a mesma candura e a mesma implacabilidade. Com vinte, trinta, cinquenta, ou sessenta anos. Setenta. Este mês de Agosto, Louis Skorecki parece ter visitado o website letterboxd numa noite de embriaguez cinéfila para qualificar The Shadow Box de “great film” e “best film ever”. Não houve mais actividade. Talvez não seja mentira, permanece um poço sem fundo de emoções, implicações complexas e problemas indecifráveis. É sobre a morte e, portanto, sobre a vida – o que não quer dizer grande coisa nem diz o que quer que seja sobre o filme. Mostra-nos três pacientes terminais interpretados por James Broderick, Christopher Plummer e Sylvia Sidney, rodeados pelas mulheres e ex-mulheres, os amantes que encontraram e os filhos, interpretados por Valerie Harper, Joanne Woodward, Ben Masters, Melinda Dillon e Curtiss Marlowe. Há um médico enquadrado sempre de costas que os entrevista para manter uma espécie de diário de bordo e dar conselhos.
Somos avisados ao princípio de que as gravações são uma experiência televisiva, câmaras ligadas em circuito fechado para um hospital, onde médicos, enfermeiros e alunos assistem às entrevistas. Nós vemos o mesmo. Em 1980, quando não se sabia demais e passavam Paul Newman cineasta na televisão, a coisa podia passar mesmo como a verdadeira experiência, transmitida em directo pela American Broadcasting Company (ABC). A personagem de James Broderick diz que a família vem ter com ele, porque agora já têm dinheiro para o fazer. Nem uma palavra sobre a morte, só uma menção à crença passada de uma melhoria, o que visto pela primeira vez pode passar ao lado como dado insignificante, tal como as palavras sobre o mar e as montanhas. Mais para a frente chegam as perguntas. Porque é que a mulher interpretada por Valerie Harper não consegue entrar em casa com o filho e com o marido? Porque é que dá uma bofetada ao filho quando este a tenta fazer entrar de forma inocente? Não há razão que o explique, naquela família não se fala tão abertamente como no chalé de Christopher Plummer e Sylvia Sidney. Pode-se adivinhar, mas vão ser precisas mais bofetadas, muitas bebedeiras e muita negação até se ter a certeza. Só que quando a revelação chega, com o “I'm going to die, Maggie” de Broderick (um delírio de simplicidade, um delírio puro e simples), não há certezas que nos amparem. Estamos todos em negação.
Pode-se voltar ao início outra vez, somos avisados da experiência, corta para duas televisões, uma enfermeira vai encher a chávena de café e volta, corta outra vez para Broderick. É um beco sem saída. Podemos pensar que é Ben Masters, com a sua seriedade assertiva e bem informada, quem tem as respostas. Uma garrafa de vodka, dez bofetadas, um abraço e uma masterclass de interpretação depois é Joanne Woodward quem dá a volta por cima, mas voltamos ao mesmo. “He always cared about the wrong people”. Uma mulher de setenta anos agarrada à vida por uma mentira da filha, que só quer a morte. A certeza da morte no abstracto não é o mesmo que a notícia, confirmada por médicos e aceite como irreversível pelo paciente, os segundos e os minutos distendem-se só com a aflição e a cisma no prazo de findas. Formalmente, Newman consegue o mesmo com as cenas da família de Broderick, o elo de ligação entre os outros dois residentes (faz-se tudo num plano: Ben Masters passa a correr da direita para a esquerda pela entrada desse chalé, Sylvia Sidney passa de cadeira de rodas na direcção contrária, com a filha). O tempo distende-se até à aceitação, que acelera o processo mas nos devolve a sanidade. “I'm going to die, Maggie”. Passa-se tanto tempo que quando vão dizer ao filho ele já sabe. A revelação não é informativa, mas um empurrão milagroso para a vida, uma alternativa ao limbo ou ao purgatório. Uma saída.
Outra forma de ver as coisas é aceitar essa revelação como a simples colocação do problema, numa altura em que se costumam dar as resoluções e as morais das histórias – o que por si só é extraordinário – e voltamos aos círculos. Sylvia Sidney pede à filha que lhe leia a carta (escrita por ela mas atribuída à irmã, que já morreu), o último apego da senhora à vida e à realidade. E Melinda Dillon lê a carta, uma e outra vez, já a sabe de cor. Lê-a como se tivesse encontrado um remédio para a morte da mãe à custa da própria vida, de olhos postos no céu estrelado, numa melancolia bem desanimadora. Estamos todos em negação. Não há saída. E não há-de ser por termos cinquenta, sessenta, setenta, oitenta ou noventa anos que vamos ter melhores respostas para as perguntas que este filme nos faz, enquanto olha de frente para algumas das escolhas que fizemos este ano numa tentativa de fugir da morte, mais uma vez, negando a vida. Dirão os iluminados que não são os filmes que mudam, somos nós. Mas não têm em conta as excepções, em que por apatia nossa ou grandiosidade dos filmes, ficamos na mesma enquanto os vemos a mudar.
“best film ever”.
* texto de João Palhares
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