Não há cineasta mais inclassificável do que Roberto Rossellini. Quando gozava de todo o prestígio possível e imaginável em Itália depois da trilogia da guerra, no final dos anos quarenta, recebeu uma carta de Ingrid Bergman, provavelmente a maior estrela de Hollywood dessa altura. Apaixonaram-se, tiveram um caso, choveram críticas de todos os lados e Rossellini foi perdendo estatuto dentro da indústria do seu país, mas os filmes que fizeram juntos (de Stromboli a Giovanna d'Arco al rogo) ganharam os favores da crítica francesa e mundial, que lhe caiu aos pés e gritou a plenos pulmões que ele era o mais moderno dos cineastas. Foi para a Índia e trouxe consigo um filme e duas séries de televisão, pouco tempo depois começou a trabalhar quase exclusivamente para esse novo meio e fez A Tomada do Poder por Luis XIV, que segundo Pierre Rissient foi a “traição definitiva” (Jacques Lourcelles escreveu que “a parte essencial da sua obra termina” em La Paura). Séries e mini-séries didácticas, ciência, história, os apóstolos, Sócrates, Blaise Pascal, Santo Agostinho, Cosme de Médici, Leon Battista Alberti, René Descartes, Alcide De Gasperi e Jesus Cristo. Ainda hoje não há consenso em relação a Rossellini, que além disto foi também capaz de realizar uma comédia bem insólita com Totò (Onde Está a Liberdade?) e um filme milagroso em episódios sobre São Francisco que resiste a qualquer descrição, julgamento ou categorização (Francesco, giullare di Dio). Atirava-se para o próximo projecto com uma energia que ninguém conseguia explicar, bem se marimbando para o que pensavam dele.
Concerto per Michelangelo e Beaubourg, centre d'art et de culture Georges Pompidou, ambos de 1977, pareciam iniciar ainda uma nova fase da carreira de Rossellini, que morreu sem conseguir acabar o segundo e nos deixou a adivinhar o que se seguiria, na carreira. Talvez uma expedição com a NASA ou o centro da terra, possivelmente com os zooms geográficos absolutamente cimentados destes dois belos filmes. No seu livro sobre Rossellini, Tag Gallagher despacha Concerto só com um parágrafo, dizendo que “nem a música nem as imagens de Rossellini têm muito que se recomende”. É mentira, são muito recomendáveis. Adriano Aprà pinta outro quadro, mas só o acha “interessante, tanto pelo auto-retrato talvez involuntário que Michelangelo se torna para ele, como pela experiência: o único em que Rossellini intercala cinema e vídeo, ou melhor, gravação electrónica em directo”. Em termos práticos, Concerto parece ter sido uma enorme dor de cabeça, um verdadeiro pesadelo. Havia pouco tempo (parece que foram três dias bem intensos), era uma encomenda quase imposta, e Rossellini já não tinha 20 ou 30 anos. Mas, ainda assim, trepava basílicas e filmava estátuas de telhados, planeava campos-contracampos, narrativas e raccords muitíssimo engenhosos com a grande tela e os grandes colossos da Capela Sistina e do Palácio Apostólico, num processo semelhante ao de Michelangelo Antonioni na belíssima curta Lo sguardo di Michelangelo, que também acabou por ser o penúltimo filme desse cineasta, dessa feita na igreja San Pietro in Vincoli e com a majestade de Moisés sob os seus olhos húmidos, mas quase trinta anos depois. Só que para contrariar os testamentários culturais, não foi com o grande artista que ambos se identificaram, mas com o homem católico que se auto-retratou como farrapo humano no seu fresco do Juízo Final e disse que “no mi resta a fare altro, poi, e poi tornarme a Firenze com animo di riposarme com la morte, com la quale dia e notte cierco di domesticarme, a cio che no me trati pieggio che gli altre viecchi”.
“Vimo-lo ocupado neste seu último trabalho,” escreveu Virgilio Fantuzzi sobre Rossellini, “seguimo-lo enquanto subia e descia as centenas de degraus que ligam o chão da Basílica Vaticana à Cúpula, enquanto entrava nos túneis das Grutas Sagradas e discutia nos escritórios para solidificar as licenças necessárias, renunciava à pausa do meio-dia para correr de carro até à outra parte da cidade onde o aguardavam novos compromissos, e passava a noite inteira na moviola para completar a montagem em tempo record.
“Falava da morte com frequência; sabia que viria de repente, que o iria apanhar nos planos do seu trabalho. Falámos longamente da morte no nosso último encontro; era ele a trazer a conversa para este tópico com tons diferentes, mas sempre com grande serenidade: ora brincando, como fazia frequentemente, com aquela sagacidade que nunca o abandonou, ora com um tom compreensivo e meditativo, como aconteceu connosco quando percorremos juntos alguns versos de Buonarroti:
« Giunto è già il corso della vita mia
per procelloso mar su fragil barca
al comun porto ove a render si varca
conto e ragion d'ogni opra trista e pia […].
Né pinger né scolpir fia più che quieti
l'anima volta a quell'amor divino
ch'aperse, a prender noi, 'n croce le braccia. »
Buonarroti é Michelangelo.
* texto de João Palhares.
Filme sem legendas.
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