sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Il processo di Santa Teresa del bambino Gesù (Il processo di Santa Teresa del bambino Gesù) 1967

Vittorio Cottafavi estreou-se na televisão em 1957, com o filme fabuloso que é Sette Piccole Croci, baseado em Sept petites croix dans un carnet de Georges Simenon e transmitido em directo na RAI a 25 de Março desse ano. Sempre dentro do mesmo espaço, o trabalho dos actores e da câmara confundiam-se exemplarmente com o reboliço e o pânico dessa noite fictícia na esquadra, com os “pronto” enfáticos e violentos de Ivo Garrani que pautam a banda-sonora a exprimir exasperação nas tentativas dele em encontrar o sobrinho ou então em levar a cena para a frente, sem erros, e depois com uma pausa tão silenciosa que chega a doer, depois de um telefonema e um monólogo particularmente intensos. “Como era a minha primeira transmissão,” conta Cottafavi, “só me deram duas câmaras com duas dollies: pensavam que, como eu vinha do cinema, quanto menos câmaras tivesse, mais confortável me ia sentir. Quando, na verdade, o trabalho é muito mais simples com três câmaras do que com duas. Realizei a transmissão em planos-sequência, que se usavam muito naqueles anos. Mas usei a segunda câmara para realizar planos de inserção que se intercalavam aos planos-sequência com um ritmo muito serrado.”
A partir daí, trabalha quase exclusivamente para a televisão, fazendo entre séries e filmes televisivos A Revolta dos Gladiadores (1958), Le legioni di Cleopatra (1959), Messalina Venere imperatrice (1960), A Vingança de Hércules (1960), Ercole alla conquista di Atlantide (1961) e I cento cavalieri (1964), o seu último trabalho feito para cinema. É por esta altura que é resgatado pelos franceses, sobretudo a partir do mítico nono número da Présence du Cinéma (é a partir desse número que vão chegando à revista Alfred Eibel, Michel Mourlet, Marc C. Bernard, Jacques Lourcelles, Jacques Saada e Pierre Rissient) dedicado ao cineasta em 1961. Apesar disso, continua a ser um realizador muito pouco exibido e editado, acessível apenas em gravações rudimentares disponíveis por tempo incerto no YouTube ou partilhadas em algumas comunidades de torrents secretas o suficiente para poderem continuar a fazer serviço público (como faz o Francisco Rocha neste blog), disponibilizando às vezes também legendas, além dos filmes. Era possível escrever todo um tratado sobre a importância de vários rippers, uploaders ou tradutores, entre os quais se contam críticos e historiadores bem conhecidos, para a cinefilia do século XXI, e que tornaram visíveis as filmografias de Manuel Mur Oti, Edward Ludwig, Riccardo Freda, Hugo Fregonese, Allan Dwan, Edgar G. Ulmer, Paulo Rocha, John Flynn ou Paul Newman, enquanto no chamado mundo real se discutia se a Netflix era ou não funesta para o cinema.
Cottafavi realizou mais de cinquenta séries ou telefilmes para a RAI, perdendo-se já alguns, num período de quase trinta anos em que a estação italiana recebeu Roberto Rossellini, Ermanno Olmi, Luigi Comencini, Vittorio De Seta ou Sergio Sollima para levarem a cabo projectos que, de outra forma, não se faziam. Entre encenações de Molière, Henrik Ibsen, Sófocles, Tennessee Williams, García Lorca, Luigi Pirandello, Shakespeare, Lillian Hellman, Eurípedes, Eugène Ionesc e, Ésquilo, adaptações de Dostoievski, Victor Hugo, Leo Tolstoi, Alexandre Dumas, Joseph Conrad ou Cesare Pavese, ficção científica, biografias de Napoleão, Colombo, Dante ou Oliver Cromwell, óperas e policiais, realizou Il processo di Santa Teresa del bambino Gesù, belíssima indagação sobre a fé e a santidade. O cenário austero, a grade imponente que separa os interrogadores das interrogadas e até os óculos escuros do promotor da fé permitem a Cottafavi construir jogos de escalas e peças de tensão e revelação verdadeiramente fascinantes. Através de monólogos intimistas, com uma câmara encantada pelos olhares e pelos rituais das suas personagens, começa-se a vislumbrar aos poucos essa bondade simples e enigmática descrita por Henry King em A Canção de Bernadette e Roberto Rossellini em Francesco, giullare di Dio.
Foram poucas as pessoas que se prestaram à chacota e ao ridículo sem pensar nas consequências, modas ou linhas vermelhas das respectivas épocas. Pedir desculpa por ser insultado ou estar apenas presente parece sinal de fraqueza ou idiotice, mas a simplicidade de um homem como o irmão Junípero da História e do filme de Rossellini é desarmante. O filme de Vittorio Cottafavi descreve esse efeito nos outros, nas testemunhas que viram o pior de si mesmas diante dessas pessoas sinceras e humildes que viram sempre como inferiores e de quem fizeram sempre chacota até perceberem que era o contrário que era verdade. Um plano geral com um leve contra-picado de um inquisidor atrás de uma grade imensa, pode mexer nos óculos escuros, baixar o olhar, repetir palavras com outra entoação em busca de respostas; um grande plano de uma mulher sentada e doente a expurgar os pecados com a confissão, com lágrimas nos olhos – cinema.
Legendas em inglês.
*Texto de João Palhares

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