Tamura (Eiji Funakoshi), o herói de "Fogo na Planície", de Kon Ichikawa, pode ser o herói mais solitário da história do cinema. Mais solitário do que os peregrinos espirituais de Bresson, Bergman ou Dreyer. É um soldado de um exército que, na derrota, lhe virou as costas.
Estamos em 1945, na ilha de Leyte, nas Filipinas. As forças do Japão foram tão derrotadas que abandonaram qualquer pretensão de solidariedade e camaradagem, da responsabilidade básica dos homens em guerra se protegerem mutuamente. Na primeira cena do filme, Tamara, um soldado com tuberculose, que foi dispensado, ainda doente, de um hospital da campanha, porque não há espaço suficiente para os doentes e a equipas de médicos, é informado pelo seu líder de esquadrão que deve regressar ao hospital, porque a sua própria unidade não tem forma de sustentá-lo naquele estado de debilidade. E mais, se o hospital não o receber de volta, ele deve se matar.
Depois desta sequência pesada, Tamura inicia uma viagem através de uma paisagem inimaginavelmente hostil. O exército americano controla as estradas, os filipinos odeiam os japoneses por terem transformado os seus terrenos num campo de batalha. E os colegas soldados de Tamura estão tão desesperados e famintos que alguns, numa total retirada de toda a sua humanidade, recuam para a linha que separa a humanidade da selvajaria, e matam outros homens por comida.
No livro de 1952, de Shohei Ooka, no qual este filme se baseia, Tamura reflecte: "Para pessoas como nós, viver o dia e a noite à beira do perigo, o instinto normal de sobrevivência parece atacar por dentro, como uma doença, distorcendo a personalidade e removendo todos os motivos que não sejam do puro interesse próprio". Tamura, consumista, faminto, e muitas vezes delirante, perambula numa espécie de atordoamento moral. Ele sabe que está no Inferno, mas não está pronto para se alistar no exército dos condenados, e enquanto luta contra o inimigo também está a lutar contra o inimigo voraz que tem dentro de si.
"Fogo na Planície" é, naturalmente, um filme antiguerra. Um dos mais persuasivos e poderosos de todos os tempos. Mas também é mais do que isso: não apenas uma série de quadros vívidos e chocantes, mas também uma investigação lúcida e estranhamente pura sobre os misteriosos trabalhos da vontade humana. Todos os homens são ilhas, e Ichikawa faz com que as distâncias entre elas pareçam incrivelmente vastas. É um visão íntima e incrivelmente clara do apocalipse.
Legendas em português.
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