Tenho a consciência de que acabo de ver uma verdadeira obra-prima. Mas tenho também a percepção de que não é para toda a gente, não é uma obra fácil – como em tudo o resto do grego. Porque o cinema de Angelopoulos é moroso, é lento, melodramático, hiper-melancólico e contemplativo com todos os seus deslumbrantes planos-sequência. Mas sobretudo, é belo. Aqui Angelopoulos quer, sobretudo, fazer um filme sobre a história Grega da primeira metade do séc. XX. A História, a queda do grego para explorar a História da Grécia (seja qual for a época) não é novidade, quase todos os seus filmes incidem na História Grega (é o caso de O Megalexandros, A Viagem dos Comediantes, Viagem a Cítera, O Passo Suspenso da Cegonha, O Olhar de Ulisses, A Eternidade e Um Dia), mas, além disso, incide também na política. Sim, são quase todos eles, além de filmes históricos, filmes políticos. Críticos na História e na Política. Mas essencialmente, o que define o cinema de Angelopoulos é a sua mise-en-scène, os seus longos e pausados planos-sequência, a sua tentativa em, visualmente, explicar aquilo que pretende transmitir ao espectador. E mais, o seu cinema (geralmente) reflecte nos refugiados gregos. Por isso, podemos dizer que o cinema de Angelopoulos se trata de um cinema neo-realista, dum neo-realismo embelezado, poético, lírico, enfim, teatral. Mas, importante referir, um neo-realismo do que foi e não do que é. O cinema de Angelopoulos é diferente de tudo o que já se viu no cinema. É particular, muito próprio. E por isso Angelopoulos é um dos melhores cineastas de sempre. Nota-se, acima de qualquer coisa que se possa (eventualmente) notar, que o grego é um apaixonado por cinema. E além do cinema, a poesia e a História Grega têm um lugar muito especial em si.
Aqui, em Trilogia: O Vale dos Lamentos, no apoio à tentativa dessa exploração da História Grega da primeira metade do séc. XX, Angelopoulos conta a história trágica duma mulher, Eleni. Mais que trágica é uma história romântica, melodramática e sofrível. É essencialmente o retracto dum amor, da luta por esse amor proibido que nasce ainda na adolescência. As repressões morais, éticas e sociais da época e daquela comunidade de exilados que chegara a Tessalónica no virar do séc. XX, retornando à pátria oriundos duma Rússia em revolução, originam a fuga destas duas almas enamoradas e desejosas de viver livremente esse amor. E esse amor vai enfrentar as contrariedades dessa primeira metade do séc. XX. Eleni e Mihalis enfrentam a pobreza, o fascismo, as guerras (mundial e civil), as repressões, a distância, a perseguição social daquela comunidade. A tragédia de Eleni é, de certa forma, uma metáfora ao sofrimento/tragédia da própria Grécia, ao povo grego. A água (mais uma vez) figura como metáfora do pranto daquela mulher/Grécia, a inundação daquela comunidade traz, além de simbolismos religiosos (não é à toa que se inunda logo após o massacre dos carneiros que vemos pendurados numa árvore, seguido do plano do chão onde Angelopoulos nos mostra o sangue dos animais – símbolo da culpa do casal pela morte do pai), como também essa alusão directa com o choro duma Grécia sofrível, duma Grécia que atravessou nessa primeira metade do século dificuldades a todos os níveis. Angelopoulos relaciona sobretudo Eleni com a pátria, com a alma ferida da Grécia.
E, como em todo o seu cinema, Angelopoulos filma magistralmente. Estão lá os planos-sequência dilatados e lentos que são já típicos do grego, planos belos que tentam imergir numa relação espaço/tempo a que aquelas personagens permanecem sempre próximas, tempo esse que Angelopoulos parece querer estender ao máximo nesses mesmos planos. E o enquadramento da câmara, a destreza daqueles travellings, a comunhão dos planos com a magnífica música de Karaindrou, a poesia esbarrada naqueles diálogos existencialistas, a liturgia daqueles movimentos de comunidade após inundação, etc. O Vale dos Lamentos é um filme absolutamente admirável, grandioso, épico. Fenomenal.
Texto do Álvaro Martins. Daqui.
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