quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Os Contos de Hoffmann (The Tales of Hoffmann) 1951

Os Contos de Hoffman ocupam um lugar muito particular na obra de Michael Powell e de Emeric Pressburger. Poderá ter alguns pontos de contacto com Red Shoes pelo peso que a música e a dança nele desempenham. Mas a estrutura e a intenção deste Contos de Hoffmann são completamente distintos.
Não sei se na história do cinema anterior a 1951 houve muitos exemplos de adaptação de óperas ao cinema, mas estou convencido que não. O projecto era arriscado. Jacques Offenbach o francês nascido na Alemanha em 1819 e que era um violoncelista virtuoso e um compositor emérito, dedicou grande parte da sua actividade à criação de operetas. Os Contos de Hoffman foram a sua única ópera, que aliás ficou incompleta e que só foi estreada um ano após a sua morte em 1880. A ópera tinha um libreto de Jules Barbier e baseava-se em três histórias curtas de E.T.A. Hoffmann. de pendor romântico e fantástico. A adaptação ao cinema feita por Powell e Pressburger com o apoio de Dennis Arundell, mantém-se bastante fiel ao libreto original, embora com algumas alterações de pormenor. Não sou entendido em ópera, logo não tenho condições para fazer para uma crítica de tipo musical, nem penso que seja essa a intenção deste texto. Os The Archers não tinham a intenção de filmar uma ópera no sentido clássico do termo. O seu objectivo era fundir a ópera onde existem inúmeros elementos de ballet com o cinema, isto é conjugar as três artes, tirando partido das vantagens tecnológicas desta última. Portanto o que vemos é um filme com um libreto de ópera, mas onde a marca dos realizadores é absolutamente inconfundível. E aquilo que vemos é absolutamente esmagador. Presenciamos, muitas vezes atónitos, a algumas das imagens mais belas que a dupla nos ofereceu, o que não é fácil, tendo em conta a maravilhosa quantidade de filmes que os The Archers nos legaram. O argumento segue o libreto original constando de um prólogo, três contos e um epílogo. Comum às três histórias é a personagem do próprio Hoffmann representada por Robert Rounseville, um actor e cantor lírico americano que juntamente com Ann Ayars são os únicos que representam e cantam. Todos os restantes actores, incluindo a bailarina Moira Shearer (a protagonista de Red Shoes) não cantam, apenas dançam e representam. As três histórias giram em torno dos três amores de Hoffmann e os três logros em que caiu: a paixão por Olympia, cantora e bailarina que afinal não passa de um autómato que se vai desarticulando; a paixão por Giulietta (Ludmilla Tchérina) que se desfaz porque a sua imagem deixa de aparecer reflectida num espelho o que provoca a perda da sua identidade; finalmente na terceira, a paixão por Antonia (Ann Ayars) que é uma cantora que sofre de uma doença incurável e que se continuar a cantar fatalmente morrerá. Todas as paixões serão um malogro e que conduzem a um epílogo ambíguo onde alguma esperança floresce no meio do desalento. O lado fantástico é proporcionado pela presença diabólica de um mágico (três personagens sempre representadas por Robert Helpmann) que tudo faz para afastar Hoffmann dos seus amores, utilizando ardis que vão para lá do mundo físico. O que é absolutamente espantoso é que tudo é filmado num palco, sem o recurso a takes exteriores. Trata-se de reproduzir em estúdio todos os envolvimentos do mundo exterior, nomeadamente das paisagens naturais. Desta intenção deliberada, resulta um filme tão artificial quanto maravilhoso, que seria seguido por muitos cineastas posteriormente, de Alain Resnais (Mélo e Coeurs) até Coppola (One from the Heart), passando por Syberberg. Tudo é extremamente cuidado: o trabalho de actores, particularmente difícil num filme deste tipo, a interacção com a música (cantada em inglês, ao contrário do original que utilizava a língua francesa), os cenários, a montagem e todos os adereços. Nada é deixado ao acaso. Este trabalho de um meticuloso primor contém algumas cenas absolutamente inesquecíveis: a desarticulação de Olympia, a canção que inicia a história de Giulietta (Moon of Love) e as vozes que Antonia ouve por parte da sua mãe, são apenas três exemplos. 
É o último grande filme de Powell e de Pressburger enquanto dupla. Não foi, nem nunca poderia ter sido, um grande sucesso de bilheteira, embora não tenha sido um desastre, o que significa que mesmo no início da década de 50, havia público para projectos tão arrojados como este. Embora a dupla continuasse a filmar, há um fim de ciclo que se anuncia em Os Contos de Hoffman. O tempo em que podíamos alimentar todas as nossas ilusões numa sala escura a olhar para uma tela. Um sonho a cores. 
* texto de Jorge Saraiva

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