domingo, 3 de julho de 2016

Hiroshima Meu Amor (Hiroshima Mon Amour) 1959

Provavelmente ninguém estava preparado para uma coisa destas. Não que Alain Resnais fosse um debutante. Em 1959, já tinha uma carreira sólida como documentarista de mais de uma década, com uma série de curtas metragens, entre as quais a incontornável Noite e Nevoeiro. Mas a sua estreia nas longas metragens e na ficção, provocou um sismo de tal intensidade, que o mundo do cinema nunca mais foi o mesmo.
Hiroshima Meu Amor parte de una ideia original de Marguerite Duras, mas parece que a adaptação cinematográfica não deixou a escritora e também cineasta, particularmente satisfeita. Resnais não queria repetir-se relativamente a Noite e Nevoeiro e por isso, a abordagem da segunda guerra mundial, é substancialmente diferente, funcionando mais como um pano de fundo do que como o centro da própria acção. O argumento reporta-se à breve relação entre uma actriz francesa que está em Hiroshima a rodar um filme e um arquitecto japonês natural da cidade. Numa altura em que a separação é inevitável (as filmagens estão a terminar e ela vai regressar a França), todo o filme gira obsessivamente nas longas conversas entre ambos. Se cada ser humano é ele e as suas circunstâncias como afirmou Ortega Y Gasset, as circunstâncias de cada uma das personagens, são as suas memórias. O peso da memória atravessa os diálogos e simultaneamente aproxima e afasta os dois. As palavras vão-se repetindo («tu não viste nada em Hiroshima»), lacerando ainda mais os traumas. Nenhum amor é possível, nenhuma eternidade poderá ser ambicionada. A desmesura das recordações domina todo o presente dos protagonistas. Uma memória viva do dia em que a bomba caiu, catorze anos antes, atravessa o espaço dele. Toda a gente pode representar Hiroshima em 6 de Agosto de 1945, mas ninguém o pode viver, porque só os que sentiram o horror têm acesso ao interior da memória. Mas também ela tem a sua própria história de horror e dor, que pode ser partilhada, mas nunca vivenciada: a sua paixão proibida por um soldado alemão inimigo, na cidade de Nevers, cuja morte arrasta a partida do sofrimento e do opróbrio dos seus conterrâneos escandalizados com semelhante paixão. O peso da memória implica a impossibilidade de comunicação, uma solidão do tamanho do mundo e da dor. Resnais utiliza recursos rara, ou mesmo nunca vistos na história do cinema: uma narrativa fragmentada e por vezes esparsa. repleta de flashbacks, de diálogos aparentemente incoerentes e de frases repetidas. Uma abordagem que partindo dos horrores da guerra e da destruição e da forma como eles se incrustam na memória, ultrapassa essa circunstância, para se afirmar como um filme sobre os caminhos transviados, sobre o silêncio no meio de muitas palavras. Há uma marca de resignação. E desta solidão que de forma nenhuma pode ser redimida, emerge um sereno desespero. Hiroshima Meu Amor é de uma beleza triste, quase sem paralelo na história do cinema.
O acolhimento de Hiroshima Meu Amor foi melhor por parte da crítica e dos seus pares franceses (Godard, Truffaut, Rohmer) do que propriamente por parte do público. Para alguns é a pedra angular da nouvelle vague, embora Resnais nunca se tivesse integrado no movimento. Foi excluído da selecção oficial do festival de Cannes de 1960, para não desagradar ao governo norte-americano, mas isso não o impediu de ter ganho prémios em secções paralelas e de ser nomeado para o Óscar de melhor argumento. Retrospectivamente, existe um relativo consenso em torno do filme: é talvez a obra de Resnais mais amada por todos os cinéfilos, aquela que figura em todas as listas dos melhores filmes de sempre. Uma obra prima, embora não seja o meu Resnais favorito.
*Texto de Jorge Saraiva

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