"Desde a sua estreia triunfante numa França recém libertada, em 1945, "Les Enfants du Paradis" nunca deixou de ser considerado um dos maiores filmes franceses de todos os tempos. A obra é o pináculo do chamado "realismo poético" - muito embora "romantismo pessimista" fosse uma denominação mais adequada - e da parceria que aperfeiçoou esse género: a do argumentista Jacques Prévert e do realizador Marcel Carné. Juntos formaram uma dupla peculiar. Enquanto Prévert, um dos melhores poetas populares franceses do século passado, era sociável, emotivo e empenhado politicamente, Carné distinguia-se pela sua instrospecção e por um perfeccionismo frio e distante. No entanto, ao colaborarem, os dois artistas criaram magia no grande ecrã, magia essa que nenhum deles foi capaz de emular, depois de se terem separado. "Les Enfants du Paradis" foi o seu último grande êxito.
A produção do filme durou dezoito meses e envolveu a construção dos maiores cenários da história do cinema gaulês: a fachada de uma rua de quatrocentos metros, que reproduzia detalhada e escrupulosamente o Boulevard du Crime, a zona parisiense dos teatros, na década de 30 e 40 do século XIX. Mesmo em tempo de abundância, semelhante empreendimento seria arrojado. Imagine-se agora em período de guerra e durante a ocupação alemã. Tratou-se de um feito sem dúvida heróico, dado que escasseavam, entre outras coisas, materiais, transporte e guarda-roupa. Os co-produtores italianos abandonaram o projecto, quando da capitulação de Itália, e o primeiro produtor francês fez o mesmo, quando começou a ser investigado pelos alemães. Um dos actores principais, apoiante Nazi confesso, fugiu para a Alemanha, após o dia D, e foi substituído à última hora. O cenógrafo Alexandre Trauner e o compositor Joseph Kosma, ambos judeus, foram obrigados a trabalhar clandestinamente, transmitindo as suas ideias ao cineasta, mediante o uso de intermediários.
Apesar de tantos sobressaltos, "Les Enfants du Paradis" é uma obra perfeita com toda a riqueza e complexidade de um grande romance novecentista. Nas cenas de multidão, passadas no buliço do boulevard, foram empregues 1500 figurantes que, numa profusão desordenada, enchem todos os cantos do ecrã com vida e pormenor. Muito embora a França estivesse ocupada, o filme não tem medo de exaltar o teatro Gaulês e de nos oferecer uma meditação, a vários níveis, sobre a natureza da representação, da fantasia e da máscara. Todos os diálogos são enfatizados e todas as acções são encenadas com mestria. Os três protagonistas masculinos dão vida a artistas: Lemaitre (Pierre Brasseur), o grande actor romântico, Debureau (Jean-Louis Barrault), o insigne mimo; e Lancenaire (Marcel Herrand), o dramaturgo falhado, que se transforma em dândi e mestre do crime. Essas três personagens existiram realmente, mas a mulher que amam, a grande horizontale Garance (o papel mais sublime de Arletty), é pura ficção. Não é um ser de carne e osso. É antes o ícone do eterno feminino, ilusório e infinitamente desejável.
Apesar das suas mais de três horas, "Les Enfants du Paradis" nunca parece ser demasiado longo. Para além de celebrar o teatro, enquanto arte popular do século XIX (função que o cinema preenche no século XX), o filme combina farsa, romance, melodrama e tragédia numa narrativa empolgante.Carné era, antes de mais, um director de actores soberbo, e a sua obra brinda-nos com um festim de desempenhos memoráveis, que se deixam acompanhar pelo humor, graça, paixão, e por uma atmosfera de trasitoriedade - a melancolia característica de toda a arte romântica."
Texto de PK. Legendas em inglês.
Filme escolhido pelo Luís Vintém.
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