sexta-feira, 11 de julho de 2014

Memórias do Cárcere (Memórias do Cárcere) 1984



 Da esmagadora quantidade de filmes que retratam a ditadura militar no Brasil, sobretudo aqueles que se prestam a uma abordagem mais direta da questão, apenas uma minoria consegue escapar do estigma da tortura. Enquanto alguns empregam recursos narrativos ou de linguagem (cinematográfica) para sugerir o tema, outros só veem seu discurso validado, ou se encontram verdadeiramente respaldados, quando a prática é explicitamente explorada. O segundo exemplo sempre corre o risco de se tornar apelativo, especialmente quando mal trabalhado, ao apostar na empatia do público com os personagens na base da marra – basta pensar no uso de cobaias em pesquisas científicas, cujas imagens são suficientemente capazes de despertar repulsa mesmo em um círculo de entusiastas inflexíveis.
Embora Nelson Pereira dos Santos não tenha feito um filme da ditadura militar no Brasil ao adaptar Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos (ela já estava enfraquecida, mas não de todo exterminada), ele aproveitou a urgência da questão para resgatar o livro do autor alagoano que descreve sem rodeios sua experiência como prisioneiro durante o Estado Novo de Getúlio Vargas. Mesmo que a distância de quase 50 anos que separa os dois governos autoritários possa ter contribuído para corroborar com práticas mais duras de tortura, a ponto de justificar o seu emprego em produções da época (o assunto ainda estava saindo do forno), Nelson adota o discurso estoico de Graciliano Ramos, fundamentado no domínio da palavra e da escrita (na educação, no sentido mais amplo do termo), para condenar os procedimentos abomináveis praticados pelos agentes da lei em vigência. Nele, a violência física nunca é explicitada; sempre que ela está prestes a ser cometida, um fade out poupa o espectador do espetáculo lamentável. O diretor, contudo, não economiza negativo para mostrar a miséria da condição de vida dos presos, bem representada pela precária alimentação dos mesmos – que motiva o próprio Graciliano a se negar a comer o que era servido.
Das pouco mais de três horas de projeção, o filme se dedica quase que exclusivamente ao período em que Graciliano esteve encarcerado. Após uma breve aparição do mesmo em uma repartição pública do Alagoas, que registra a Intentona Comunista de 1935, seguida de uma cena em casa com a mulher (Glória Pires) e filhos, logo ele é encaminhado para o périplo de aproximadamente um ano por cárceres do país. Por meio dos presos que dividem o espaço com o escritor, sejam eles políticos ou comuns, Nelson traça um panorama da população brasileira com ênfase nos aspectos determinantes do nosso atraso, próprio dos países subdesenvolvidos. A ignorância funcional salta aos olhos, sobretudo na terceira e derradeira parte, quando os companheiros, e até mesmo os seus detratores, já reconhecem a fama dos seus escritos. A cena em que Graciliano (Carlos Vereza) faz a correção do texto dos comunistas, contracenando com Tonico Pereira, é hilária. Um tom mais grave é empregado quando uma autoridade lhe solicita um discurso para ser pronunciado na data do aniversário do diretor do presídio, a qual lhe é negada – a argumentação é perfeita, impecável, embora seja involuntariamente humilhante.
Sem amenizar o tom da jornada de sofrimento e punição, Nelson se serve da prosa de Graciliano Ramos para veicular o seu discurso, mais calcado na esperança de mudança do que na permanência da estupidez – vale lembrar que na época do lançamento do filme o movimento pelas “Diretas Já” estava a pleno vapor. No último terço do filme, em que Carlos Vereza encontra-se de cabeça raspada por exigência da direção carcerária, sua figura assemelha-se a de Gandhi, fragilizado pelos sacrifícios assumidos em prol da sobrevivência moral. Recolhido em um canto do presídio, sentado ao lado de uma valise com suas valiosas anotações, enfraquecido pela dieta sofrível imposta e venerado pelos seus semelhantes, bem como pelas autoridades que o mantiveram sob custódia, Graciliano Ramos emerge com o único resquício de dignidade capaz de ser preservado em ambiente tão hostil. Pena que o seu bastião configure ainda hoje material escasso em nosso país. Um dos grandes filmes brasileiros.
Por Rodrigo Duarte. Daqui.

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3 comentários:

Rodrigo Duarte disse...

Francisco, felicitações cinéfilas. Não conhecia o seu espaço, mas já o listei no gadget "Os Comparsas" do Canto do Cinéfilo.
Serei frequentador do My Two Thousand Movies.
Tenho a impressão de que você escreve de Portugal, correto?
Abraço.

Gustavo disse...

Desculpa Francisco, mas o link parece já não estar disponível...
Gostava muito de ver este filme, pois agora estou a viver no Brasil e tenho andado a ler/entender sobre este periodo... Mil Obrigados!!

My One Thousand Movies disse...

Rodrigo, exactamente, de Portugal. Prazer :)

Gustavo, o link parece-me bom. Abraço.