quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Cedo Demais / Tarde Demais (Trop tôt/Trop tard) 1981

Cedo Demais/Tarde Demais é uma espécie de filme ensaio. É composto por duas partes. Na primeira são lidos excertos de uma obra pouco conhecida de Engels, «A Questão Camponesa na França e na Alemanha» de 1894. A segunda parte é constituída pela leitura de algumas partes do livro do historiador e sociólogo marxista egípcio Mahmoud Hussein, «Luta de Classes no Egipto de 1946 a 1968». Ao contrário de alguns filmes anteriores dos realizadores que juntava textos distintos, esta reunião é totalmente assimétrica em termos de duração: a primeira parte dura apenas 27 dos 104 minutos de duração total do filme.
Se o cinema de Huillet e Straub se caracterizam por uma radicalidade sem concessões a qualquer estrutura convencional, Cedo Demais/Tarde Demais vai ainda mais longe nessas premissas. Podemos dizer que, mais do que em qualquer outra das suas obras, estamos em presença de dois filmes: o das imagens e o das palavras. Compete-nos a nós os espectadores, fazer essa ligação entre o que vemos e o que ouvimos. As imagens do segmento de Engels são rodadas em França, primeiro na praça da Bastilha e depois em algumas aldeias, com uma ou outra incursão pontual pelas cidades. As imagens do segmento Hussein são filmadas na Egipto, predominantemente em áreas rurais. Se no segmento inicial existe um ritmo relativamente constante entre o que câmara vai captando e o que a voz off (de Danièle Huillet) vai relatando, no segmento final temos longos períodos em que apenas vemos imagens sem qualquer acompanhamento sonoro, para além dos ruídos naturais ou das vozes de fundo dos transeuntes. Normalmente é utilizada uma câmara fixa, embora também existam alguns planos circulares e outros tirados a partir de um veículo em movimento. O objectivo é, por via de uma atitude eminentemente contemplativa, reforçar o poder das palavras e, simultaneamente, subverter as estruturas convencionais de realização de filmes. Não que isto seja novo no cinema de Straub e Huillet, mas não deixa de fascinar esta vontade de ir sempre um pouco mais longe. E não tenhamos dúvidas que Cedo Demais/Tarde Demais força todos os limites numa espécie de reinvenção do tempo de mostrar as imagens, de as deixar fluir fazendo-as valer por si próprias numa espécie de invulgar autonomia visual.
O segmento Engels começa com uma proclamação do filósofo revolucionário alemão que remonta à Revolução de 1789. Foi a acção decidida do povo que impediu que a revolução fracassasse, face às hesitações conciliatórias da burguesia, mas foi a mesma burguesia que impediu o seu aprofundamento. Na voz monocórdica de Danièle Huillet desfilam números sobre a pobreza nos campos de França. Houve uma revolução feita em nome do povo de que aproveitou apenas a burguesia que substituiu a velha na aristocracia na exploração dos camponeses sem que a situação deste se tenha alterado de forma significativa. A situação dos camponeses é o elo de ligação com o segmento de Hussein que começa igualmente com uma proclamação: é falsa a ideia amplamente propalada de que o povo egípcio aceitou de forma plácida a dominação estrangeira, aliada aos seus serviçais internos. O historiador vai evocando e analisando as diversas revoltas, sobretudo camponesas, primeiramente contra a dominação francesa que remonta ao bonapartismo, depois ao imperialismo inglês, finalmente e após a independência do país, contra as diversas formas de exploração e de corrupção praticadas pela classe dominante. Nesse sentido, é significativa a visão particularmente crítica do governo de Nasser. Recorrendo a imagens de arquivo das proclamações do antigo presidente, o texto reafirma a tese de que, na sua essência, pouco se alterou no Egipto com a ascensão de uma nova classe dominante atolada no nepotismo e na corrupção.
Parece certo que o papel central do campesinato na Revolução só se materializa com as teorias Mao Tsé-Tung e o seu papel determinante no sucesso do processo revolucionário chinês. Isto não significa que outros pensadores marxistas, a começar pelo próprio Karl Marx, não tenham reflectido abundantemente sobre o papel desta classe nas transformações sociais. Um papel frequentemente ambíguo e contraditório. Se os camponeses estão sujeitos a uma exploração por vezes até mais intensa do que a dos operários, a tarefa de os trazer para a Revolução é particularmente árdua, uma vez que eles são vulneráveis a ser conquistados para o campo das forças retrógradas, muitas vezes através de superstições infundadas que persistem ao longo de séculos. Talvez esta seja uma explicação possível para o enigmático título do filme. Na Revolução Francesa talvez fosse demasiado cedo aspirar a uma sociedade que derrubasse a exploração e a desigualdade; nas lutas camponesas do Egipto, talvez seja demasiado tarde, sobretudo se tivermos em conta que depois de Nasser, a situação dos trabalhadores egípcios ainda se degradou mais. 
É redundante afirmar que Cedo Demais/Tarde Demais é uma obra prima, uma vez que tal designação se aplica a grande parte da obra de Straub e Huillet. Mas pelo que acima foi exposto, este filme é literalmente imperdível.
Texto de Jorge Saraiva

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