Proposta em Quatro Partes foi uma encomenda para a RAI que a exibiu no seu terceiro canal na noite de Natal de 1985, entre O Messias de Rossellini e a Orestíade Africana de Pasolini. É um filme de pouco mais de 40 minutos que passa por ser uma das suas obras menos conhecidas de Straub e Huillet, limitando-se a sua exibição em sala a sessões especiais de festivais ou de retrospectivas extensas da sua obra.
Trata-se, antes de mais, de um trabalho de montagem e colagem. Tal como o nome indica, juntam-se aqui quatro filmes ou excertos de filmes distintos: um excerto longo (quase integral) do filme de D. W. Griffith realizado em 1909, A Corner in Wheat; uma passagem com cerca de dez minutos do filme Moisés e Aarão de 1975 e inspirado na ópera incompleta de Schöenberg; Fortini-Cani (1976) aparece com um extracto de cerca de 15 minutos praticamente silencioso; finalmente são retomados cerca de oito minutos de Das Nuvens à Resistência de 1978. Ou seja, são retomadas três longas metragens consecutivas da sua filmografia da segunda metade da década de 70, antecedidas por uma pequena curta de Griffith dos primórdios da história do cinema. Como seria de esperar não existem introduções, comentários entrevistas ou qualquer tipo de explicação para esta associação. Isto significa que teremos que ser nós os espectadores a procurar encontrar ou recriar esse nexo causal que liga as diversas partes.
Essa ligação mais óbvia parece-me relacionada com o tema da Terra não na sua dimensão metafísica, mas enquanto fonte de sustento dos seres humanos. O excerto de Moisés e Aarão reporta-se ao momento em que a água do Nilo é transformada em sangue, esse mesmo sangue que constantemente aduba a terra através do trabalho. A parte respeitante a Fortini-Cani, a mais longa, é quase integralmente composta por paisagens naturais do Egipto num momento em que as palavras do livro Cães do Sinai do escritor italiano Franco Fortini são substituídas pelo silêncio das imagens. O extracto de Das Nuvens à Resistência é o da conversa entre pai e filho sobre a falta de chuva que é necessária para que as colheitas floresçam e a ligação entre os rituais de sacrifício e a exploração dos camponeses pelos patrões. Finalmente a curta metragem de Griffith tem um simbolismo muito peculiar. O filme, que no original tem treze minutos, parece-se fatalmente com um objecto de propaganda revolucionária. Começamos por ver a vida dura dos camponeses a semearem trigo, segue-se a especulação bolsista dos capitalistas que fazem subir artificialmente o preço do trigo para aumentarem os seus lucros o que se reflecte fatalmente no preço do pão aos consumidores, antes de terminar com um desses especuladores literalmente afogado até a morte no trigo que ilegal e especulativamente tinha armazenado. Griffith é um cineasta ambíguo e agridoce para muitos cinéfilos. Ninguém põe em causa a sua genialidade, mas quando vejo uma obra prima como Birth of a Nation não consigo ficar indiferente ao elogio final à Klu Klux Klan, a organização terrorista e racista americana. É certo que em Intolerância, Griffith quis emendar a mão, mas há erros que são muito difíceis de reparar. Straub e Huillet trazem-nos um Griffith anterior de um tempo em que o ciclo da produção de alimentos estava indissociavelmente ligado à desigualdade e à exploração.
Proposta em Quatro Partes é um olhar de Straub e de Huillet sobre o cinema. O seu e o dos outros. Marca igualmente a incorporação da obra de cineastas relevantes na sua obra. Agora foi Griffith, mais tarde será Renoir. Claro que ninguém fica dispensado de ver os filmes na íntegra...
Sem legendas
* Texto de Jorge Saraiva
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