terça-feira, 8 de agosto de 2023

Othon (Les yeux ne veulent pas en tout temps se fermer, ou Peut-être qu'un jour Rome se permettra de choisir à son tour) 1970

Othon é o primeiro filme a cores de Straub e Huillet (que desta vez também assina a realização) e a sua segunda longa metragem. Em muitos aspectos é também a sua primeira obra em que aparecem de forma vincada algumas das características da sua obra posterior: o tom vincadamente teatral e o mergulho no mundo clássico a que regressariam frequentemente, desta vez, através da adaptação da tragédia de Pierre Corneille (1606-1684), Othon, uma das suas obras mais tardias e menos conhecidas. Straub dedicou o filme a todos os falantes da língua francesa que não tiveram o privilégio de conhecer a obra de Corneille, propondo que desta forma o escritor tivesse uma audiência mais larga. O verdadeiro título do filme é Les Yeux ne veulent pas en tout temps se fermer, ou Peut-être qu'un jour Rome se permettra de choisir à son tour, dois versos da tragédia, embora tivesse sido o nome da própria tragédia que tivesse prevalecido.
A tragédia original de Corneille situa-se no período do Império Romano, mais precisamente no ano 69 D.C. Galba o imperador romano aproxima-se do fim da sua vida e hesita na escolha do seu sucessor, ao mesmo tempo que se vão sucedendo jogadas de bastidores entre aqueles que o influenciam no sentido de se perfilarem de forma mais favorável para a sua sucessão. Um dos mais temerários é Othon, que não sendo um dos favoritos de Galba, é, no entanto, um dos mais hábeis na arte de manipular as peças que lhe permitam aceder ao poder. Embora se esteja ainda naquilo que se convencionou chamar de apogeu do Império Romano, os sinais de deterioração começam a notar-se, ainda que de forma não facilmente perceptível. A forma de Straub e Huillet transporem a tragédia para o cinema é absolutamente radical. Em momento algum podemos dizer que estamos na presença de uma adaptação romanesca que é comum relativamente às obras literárias. O que a dupla de cineastas faz (e voltaria a repeti-lo variadas vezes ao longo da sua carreira) é pôr os actores a recitar o texto na íntegra. A tarefa é árdua, uma vez que a tragédia é composta por versos alexandrinos, extremamente trabalhados, quer na sua forma gramatical, quer na sua forma fonética. O resultado é estarmos na presença de um filme feito de palavras. Os momentos de silêncio são raros, os monólogos frequentemente sobrepõem-se aos diálogos, embora nunca exista a sensação de que estes não existam. As personagens «conversam» umas com as outras, mas nunca se interrompem. Os movimentos dos actores são escassos, muitas vezes aparecem de forma inopinada na tela sem se fazerem anunciar, os planos são longos e quase sempre focados nos rostos dos actores. Estes, como se tornará num hábito nos filmes da dupla, são amadores e muitos deles nem têm o francês como primeira língua, o que gera uma notável confusão de sotaques. Othon foi filmado no Monte Palatino e na vila Doria-Pamphilj a partir de uma autorização conseguida junto do município romano por Alberto Moravia e Laura Betti a quem o filme é dedicado, para além do próprio Corneille. E embora os actores estejam vestidos com trajes da época, o enquadramento de fundo é o da Roma actual, com os seus edifícios modernos e o seu fluxo constante de tráfego automóvel. Parece que o propósito é bem claro: Othon une três épocas distintas, ou seja, o período do Império Romano em que a acção decorre, o século XVII em que foi escrito e o final da década de 60 do século XX em que foi filmado. Tratando-se de uma tragédia de cariz essencialmente político, o seu conteúdo transcende tempos e lugares. A luta desenfreada pelo poder, a manipulação através de jogos de bastidores, a ambição desmedida, a exploração de sentimentos alheios para benefício pessoal, não são apanágio de uma determinada época, antes atravessam todas como se fossem uma marca indelével da sociedade de classes. 
Este universalismo da mensagem sobre uma clique da classe dominante e dos seus jogos de poder é profundamente pedagógica. Straub achava que o filme poderia ser exibido nas fábricas e que seria facilmente compreendido pela classe operária e ajudá-la na sua tarefa de transformação da sociedade. Descontando os excessos revolucionários próprios da época e de que os cineastas (felizmente!) nunca se afastaram, percebe-se que a escolha da tragédia de Corneille não foi arbitrária, uma vez que ela tem uma vitalidade enorme que pode ser perfeitamente transposta para a actualidade.
Legendas em inglês.
* texto de Jorge Saraiva

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