sábado, 19 de maio de 2018

Ao Sul (Ao Sul) 1995

"Ao Sul" é a história de um homem (Henrique/Antonino Solmer) que regressa da Holanda a Portugal, depois de muitos anos de ausência, o coração dividido entre insatisfatórios amores abandonados, a vontade de retorno ao Alentejo natal como bálsamo para uma vida que percebemos ter sido gasta em coisas sem importância. Agarrar o tempo e a raiz - eis o seu projecto. A realidade que vem encontrar é-lhe, todavia, hostil. Em Lisboa, a memória de ocorrências na Guerra colonial reacende conflitos esquecidos; o Alentejo, incapaz de se reconverter a uma agricultura concorrencial, recebendo-o como um traidor que vem trabalhar para uma grande empresa holandesa. Um sopro de desespero atravessa "Ao Sul" como uma adaga suspensa sobre o pescoço de todos nós. Em Portugal abafa-se.
Fernando Matos Silva filma esta respiração sufocante, fazendo-se cruzar no filme uma miríade de personagens. Primeira constatação: a maior parte dessas personagens existe, quer dizer, tem, mesmo se a sua passagem é curta, densidade humana, peso, justificação dramática. Mérito, já agora, também dos actores. Não falo de Antonino Solmer, que desde já tem aqui o melhor desempenho da sua carreira cinematográfica,  mas dos outros, dos que pouco espaço e pouco tempo têm para nos convencer, como José Manuel Mendes, Luísa Cruz, Miguel Guilherme ou Manuel Cavaco: brevíssimas interpretações, perfeito entendimento. E se também há personagens frágeis (caso do avô louco, interpretado por Canto e Castro, ou de Liberato/João Cabral), isso se deverá mais a problemas do argumento que a inabilidade dos intérpretes. É que Fernando Matos Silva (que teve Maria Isabel Barreno como co-argumentista) não resistiu à tentação dos símbolos, a uma sobrecarga de elementos que desviassem a leitira do filme para lugares mais vastos, introduzindo, aqui e ali, desequilíbrios incomodativos, porque tornando óbvio o que melhor seria ir perdurando subterraneamente. Aliás, "Ao Sul" teria ganho muito com algum incremento de contenção.
Estamos em presença de um filme que gere precariamente os equilíbrios. Constatação que não deve iludir-nos o essencial. A força de uma narrativa que trás dentro de si uma convicção e uma força humana que nenhuns desequilíbrios anulam. A dor no rosto de Luísa Cruz, a luz do espaço alentejano, o homem que corre a medir o espaço de uma casa, seu novo território, uma cena de amor físico que cheira à mais funda solidão, são coisas destas que nos fazem guardar um filme e saber o que quer dizer pensar cinema. Coisas que estão em "Ao Sul", feito por um cineasta que sabe o que fala.
Texto no Expresso de 2-9-1995

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