"“Santiago” (2007), documentário dirigido por João Moreira Salles, é um exercício de problematização de gênero. O diretor começou a filmá-lo em 1992, ao perceber a singularidade da personagem que intitula a obra, Santiago Badariotti Merlo, mordomo da casa em que Salles passou a infância, solitário, e com o encantador hábito de redigir textos a respeito da história da nobreza de povos do mundo todo. O documentarista abandona o projeto iniciado na década de 90 (único filme de sua carreira que não conseguira realizar) e retoma o material (30 mil páginas e 9 horas de cenas registradas) apenas 13 anos depois. Neste ponto, resolve traçar um exercício reflexivo a respeito daquilo que havia filmado, organizando, assim, uma impressionante discussão em torno dos limites entre a documentação e a ficção, cujo eixo é não mais exclusivamente a vida de Santiago, mas também a memória do diretor e suas decisões narrativas.
As primeiras cenas de “Santiago” optam pelo close in (procedimento muito raro no filme) em direção a uma série de fotografias, enquanto o narrador explica: “Há treze anos, quando fiz estas imagens, pensava que o filme começaria assim: Primeiro uma música dolente. Não essa que eu só conheci mais tarde, mas algo parecido; depois um movimento lento em direção a três fotografias.” Neste momento, se estabelecem, portanto, dois níveis narrativos. O primeiro refere-se à esfera metaficcional, no qual o artista lança comentários a respeito da própria obra. O segundo, por sua vez, se ocupa da história de Santiago e sua relação com a família de Salles. Logo, o narrador estabelece uma tênue ligação com o personagem que dá título ao filme, já que o antigo mordomo o ensinava a equilibrar copos com a bandeja na mão, enquanto o pequeno patrão “brincava de servir” com os irmãos, distinção servo/proprietário que guiará as principais escolhas da obra. Deve ficar claro, entretanto, que ambos os planos da história dividem-se também em duas dimensões: a do passado e a do presente, duas temporalidades que, uma vez documentadas, se complementam na trama.
O documentário, termo utilizado na França dos anos vinte e, provavelmente, estabelecido definitivamente por John Grierson nesta mesma década, é um gênero tradicionalmente marcado por seu caráter não ficcional. Contudo, já as primeiras definições do termo o diferenciavam dos chamados “cinejornais”, visto que o documentário executaria o “tratamento criativo” da matéria tratada, sendo, portanto, mais do que reprodução mecânica da realidade. Este ideal está impresso nas cenas iniciais de Santiago, já que a câmera permite que percebamos algo para além das imagens fixas do passado, representadas pelas fotografias que inauguram a história. Logo, João Moreira Salles define aquele que deveria ser efetivamente o primeiro plano do filme. Ouvimos a voz de Santiago, a tela está escura, revelando à assistente de filmagem, Márcia, que gostaria de começar a filmagem com um pequeno depoimento preparado com todo o carinho, ao que a responsável negaceia. Jamais saberemos o que Santiago gostaria de ter expressado e esta inacessibilidade é uma constante em todo o filme. Em seguida, vemos a claquete mediando nossa percepção na primeira vez na qual, finalmente, vemos o ex-mordomo, em uma cena repleta de signos e, mais ainda, de significados."
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