quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Fortini/Cani (Fortini/Cani) 1976

Franco Fortini foi um poeta, ensaísta e tradutor italiano de inspiração marxista nascido em 1917 e que faleceu em 1994. A sua vida teve um percurso sinuoso: filho de mãe cristã e pai judeu, sofreu as agruras do fascismo na sua juventude, foi soldado, afastou-se da guerra e exilou-se e voltou a Itália para se juntar aos guerrilheiros que combateram a ocupação alemã. Depois da libertação foi professor secundário e universitário, sempre com uma postura marcadamente de esquerda, embora se tivesse afastado de posições mais ortodoxas após a invasão soviética da Hungria, que, aliás, vivamente repudiou.
Fortini/Cani é o primeiro filme de Huillet e Straub falado em italiano abrindo caminho para que os cineastas se radicassem neste país. Trata-se literalmente de filmar um livro, neste caso, Os Cães do Sinai escrito por Fortini pouco depois da Guerra dos Seis Dias que opôs Israel ao mundo árabe e que lhe permitiu ocupar territórios do Egipto, da Síria e da Jordânia. Ao contrário do que normalmente sucede em cinema, não se trata de adaptar uma obra literária como eles próprios já tinham feito no início das suas carreiras com dois livros de Heinrich Boll. Tanto mais que Os Cães do Sinai não é um romance, mas sim um ensaio, o que torna mais desafiante a possibilidade de o filmar. Sendo então o livro o elemento central do filme, importa analisar a forma como os cineastas o transportam para o ecrã. Primeiro há em off uma voz que vai lendo o livro ao mesmo tempo que vemos paisagens naturais italianas, filmadas em longos travellings desprovidas de som, excepto um outro ruído natural; depois vemos o próprio escritor a ler excertos da obra sem nunca fitar directamente a câmara; por vezes reina o silêncio absoluto e a câmara incide directamente sobre as páginas do livro. Existe assim uma espécie de banco de imagens (que nalguns casos recorre mesmo a artigos de jornal) com que a dupla de realizadores vai «encenando» a leitura do livro e que foi, tal como é seu apanágio, minuciosamente ensaiada. Às paisagens naturais sucede-se uma cerimónia religiosa e na parte final, algumas imagens da cidade de Florença dos anos 70. No início do livro Fortini escreveu que não há cães no deserto do Sinai (ocupado ao Egipto durante a Guerra dos Seis Dias e devolvido no final da década de 70 depois do acordo de Camp David). O objetivo é claramente político: denunciar a política agressiva do estado de Israel perante os seus vizinhos árabes, apoiado pelas grande potências internacionais e com a conivência dos media e de grande parte dos intelectuais europeus num racismo anti-árabe dificilmente disfarçável. Numa segunda parte o livro torna-se autobiográfico na medida em que relata a forma como o escritor, ainda então uma criança, assistiu ao crescimento do anti-semitismo durante o fascismo italiano e as perseguições de que o seu pai foi alvo na cidade de Florença. Este período foi igualmente muito bem descrito num dos derradeiros filmes de Vittorio de Sica, O Jardim dos Finzi-Continis que relata a perseguição de judeus em Ferrara nos final dos anos 30. Na parte final, o livro regressa ao tempo presente a partir da ideia da formação do estado de Israel e de como ele serviu para lavar a consciência burguesa das grandes potências e da sua indiferença perante o Holocausto provocado pelos nazis e de como o próprio estado de Israel atraiçoou os seus princípios originais de pluralidade e de abrangência, tornando-se cada vez mais num estado dos judeus, numa regressão a uma visão medievalista teocrática. E aborda também a forma como o racismo anti-semita do passado não pode ser combatido com o sionismo anti-árabe e a forma como estes povos têm sido sistematicamente oprimidos pelo imperialismo internacional e pelos governos corruptos dos seus próprios países. 
Do ponto de vista estético estamos em presença de um exercício primoroso. Se a propósito de Moisés e Aarão, o seu filme anterior, tínhamos afirmado que a ópera nunca tinha sido filmada desta forma, Fortini-Cani filma um livro de um modo totalmente anti-convencional. Mas, talvez sejam os aspectos políticos que aqui se impõem. Mais de 50 anos depois da Guerra dos Seis Dias e mais de 40 após o filme, a situação em nada se alterou naquela região do planeta, ou, em certos aspectos, até se agravou. O que, para além da actualidade quer do livro, quer do filme, dá razão às palavras certeiras de Straub quando afirmou que o que o verdadeiramente o interessava «era a cólera de um homem já idoso, filho de pai judeu e mãe cristã e que teve a coragem, enquanto intelectual italiano, de escrever um panfleto».
Legendas em inglês.
* Texto de Jorge Saraiva

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quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Moisés e Aarão (Moses und Aron) 1975

Depois da curta Introdução a «Música de Acompanhamento para uma Cena de Cinema», Huillet e Straub regressam a Schoenberg no seu filme seguinte, Moisés e Aarão. Vinte e dois anos depois ainda voltariam ao compositor austríaco com o filme que adapta a ópera num único acto, Von Heute auf Morgen. Esta insistência no compositor prende-se mais com razões estéticas do que políticas: Schoenberg foi um dos grandes inovadores musicais de todo o século XX e foi sempre uma personalidade solitária, avessa a modas e a palcos mediáticos (mesmo os da sua época) características que são partilhadas pela dupla de realizadores.
Moisés e Aarão transpõe para cinema a ópera homónima. Inicialmente seria uma ópera em três actos, mas apenas foram escritos e compostos os dois primeiros. Schoenberg destruiu algumas ideias comuns em matéria de composição. Uma delas é que a música deve ser escrita anteriormente ao libreto. Neste caso específico, havia ideias específicas em termos de libreto para o terceiro acto, mas que nunca foram musicadas. A ópera baseia-se de forma livre em passagens do Exodus do Antigo Testamento que descreve a fuga dos judeus do Egito em busca da Terra Prometida. Schoenberg gosta particularmente da figura de Moisés e do seu radicalismo sem compromissos, da adoração de um Deus que não se vê e na visceral aversão às cedências do irmão (Aarão) de fazer o povo adorar um bezerro de ouro. O judaísmo terá, aliás, um papel preponderante na vida e nas concepções do compositor que terá afirmado: «finalmente aprendi a lição que me foi imposta no ano passado, e não vou esquecê-la. Não sou nem alemão nem europeu, e talvez nem sequer humano, mas sou judeu». O que Straub e Huillet fizeram foi transformar em teatro filmado o pequeno terceiro acto (que corresponde à acusação de Aarão pelo seu irmão Moisés) e esta é a única parte do filme que não é cantada. Deve estabelecer-se de imediato uma diferença de fundo. Normalmente os cineastas filmam óperas no contexto em que são executadas, ou seja, numa sala de concertos. Moisés e Aarão não é uma ópera filmada, mas um filme sobre uma ópera. Foi filmado na Itália e no Egito, sempre em cenários naturais, em som directo e sem actores a serem dobrados por cantores. A música e os cantores são os mesmos que surgem numa gravação da ópera numa edição da Philips datada de 1974. Os cenários naturais, do céu às pedras e montes, têm um papel crucial no desenvolvimento do filme, havendo mesmo uma parte, na fase final do segundo acto que foi filmada à noite. O que os cineastas fizeram «foi aquilo que ninguém faz: procurar as nervuras na partitura para saber onde será possível intervir, mudar de plano, começar um bloco sonoro e interrompê-lo» (palavras de Straub). O filme tem momentos de beleza transbordante e de uma espiritualidade surpreendente (sobretudo para os cineastas a quem não se conhece qualquer crença de natureza religiosa), bem expressas no monólogo inicial (acto I, cena I) de Moisés em que este fala com Deus. Não são as imagens que devem despertar sentimentos nos espectadores, mas sim, elas próprias, já estão impregnadas de sentimentos. 
Há aqui um paralelismo na actividade de desconstrução: embora incompleta Moisés e Aarão é justamente considerada um momento fundamental de desconstrução da ópera clássica através da introdução dos conceitos estruturais do dodecafonismo; Straub e Huillet filmaram-na de forma magistral transformando a ópera num filme rompendo com todos os cânones tradicionais de fazer cinema. 
PS: A única nota política consiste na dedicatória do filme ao estudante de cinematografia Holger Meins que se juntou ao Exército Vermelho no princípio de 1970 e que acabou por morrer de greve de fome na prisão. Por esse motivo a dedicatória chegou a ser alvo de censura por parte das autoridade alemãs. 
Legendas em inglês.
* texto de Jorge Saraiva

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