Abnegação (The Battle Hymn) marca a incursão de Douglas Sirk nos filmes de guerra, que viria a retomar, embora num outro contexto, em Tempo de Amar, Tempo de Morrer. Trata-se do relato da vida do coronel da Força Aérea Dean Hess. Na altura foi também publicado um livro autobiográfico cujos lucros o autor resolveu doar a instituições de apoio a órfãos de guerra.
Ao contrário de outros filmes, Sirk não se pôde queixar da falta de meios. A Universal possibilitou a utilização do Cinemascope e, embora as filmagens tivessem ocorrido no Arizona e não na Coreia, houve uma preocupação de reproduzir o mais fielmente possível todo o ambiente de guerra, particularmente o modelo de aviões de combate daquela época. O filme marca uma interrupção dos melodramas de Sirk, embora o tema da culpa e da remissão já existente em Sublime Expiação, ressurja neste Battle Hymn. O coronel carrega o fardo de ter bombardeado por engano um orfanato alemão durante a segunda guerra mundial que provocou a morte de 37 crianças. Amargurado, torna-se pastor protestante, mas não consegue acalmar os seus remorsos. Decide então abdicar dessa actividade e aceitar um convite para se tornar instrutor de pilotos no início da guerra da Coreia. Aí vai ser confrontado com o drama das crianças órfãs de guerra, expostas a ataques militares e à fome e por quem ele se vai esforçar com a ajuda de alguns militares e de altruístas coreanos a encontrar um local seguro onde possam estar a salvo. Numa primeira leitura o filme parece ser maniqueísta e até historicamente pouco verdadeiro. Os americanos são apresentados como os bons, os que ajudam desinteressadamente as populações, enquanto que os do Norte são invasores sem escrúpulos que bombardeiam aldeias e não têm piedade por ninguém, seja militar ou civil. Sabemos que as coisas não se passaram assim. Aliás nunca se passam desta forma. Não há inocentes entre beligerantes. Mas uma leitura mais fina (e em Sirk é sempre necessário fazer uma segunda leitura dos seus filmes) a ideia principal que emerge é a da inutilidade da guerra, seja ela qual for e seja quais forem os motivos que a justifiquem. O filme apresenta um contexto moral que ultrapassa o próprio âmbito político em que se possa enquadrar. A guerra é sempre uma barbaridade e as crianças são as suas maiores vítimas. Não há aqui nenhum resquício de lamechiche, até porque o filme não explora de forma intensiva esse aspecto. Os chamados danos colaterais que matam muitos inocentes que nada têm a ver com o conflito (e temos inúmeros exemplos recentes) são encarados pelos responsáveis militares como um mal menor e inevitável. Aliás há um diálogo muito significativo entre Hess e um seu velho companheiro da segunda guerra mundial, com o coronel ainda a expiar a culpa do seu erro, a negar a inevitabilidade e a menorização dos chamados danos colaterais.
Parece que Sirk não ficou totalmente satisfeito com os resultados do filme. No seu início há uma apresentação da figura de Hess feita por outro militar que foi inserida à sua revelia. O filme apresenta sensíveis mudanças em relação ao livro, a mais importante das quais é a transformação da protectora das crianças de uma mulher de meia idade, numa jovem muito atraente a ponto de chegarmos a pensar que haverá um envolvimento entre ela e o coronel, o que nunca chega a suceder, para descanso da sagrada instituição chamada matrimónio. Parece que Sirk não gostou especialmente dessas mudanças, mas o sistema de Hollywood é mesmo assim, até para cineastas que sempre tiveram fama de serem ciosos da sua independência, como é o seu caso. Em resumo, Battle Hymn não está entre os melhores filmes de Sirk, mas, ainda assim, é muito interessante.
* Texto de Jorge Saraiva
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