quarta-feira, 24 de setembro de 2014
O Passo Suspenso da Cegonha (To Meteoro Vima Tou Pelargou) 1991
Alexandre, um repórter, é destacado para fazer a cobertura televisiva da situação dos refugiados albaneses, turcos e curdos numa cidade fronteiriça. De entre estes, o repórter repara num velho homem que julga ser um importante político grego desaparecido misteriosamente há alguns anos atrás. De volta a Atenas, Alexandre pede á viúva do político que o acompanhe no regresso á cidade para o ajudar na identificação do homem. A partir daqui, dá-se início a uma seca e lenta reflexão sobre a desumanidade das fronteiras…
"Angelopoulos filma aqui uma espécie de desespero radical, de quem perdeu todas as ilusões diante de um final de século em que o mundo aparenta optimismo mas, na realidade, se encontra privado de todas as esperanças. A euforia demoliberal que atravessa o Ocidente, com o fim dos regimes ditatoriais da América Latina e África (mas outros nascem...), com o fim da divisão da Europa em dois blocos antagónicos, com a aparente «conversão» universal às virtudes de um único sistema económico e político, é orquestrada com fanfarras de unanimismo, como se o livre comércio e o parlamentarismo burguês fossem um ideal planetário e avançássemos para o melhor dos mundos possíveis. Mas não é assim, porque a História não pára, nem as contradições sociais e étnicas, nem os movimentos da Terra. E descobrimos, perplexos (?!), novas dobras de dor e sofrimento, pulsões que se julgavam erradicadas, intrincados nós no caminho da espécie humana. Com uma angústia porventura mais densa do que antes: é que as utopias morreram - e morreram a sangrar de vergonha...
O Passo Suspenso da Cegonha é um filme que respira essa angústia, esse vazio desesperado de horizontes, possíveis ou miríficos. Na sua imediata aparência fala de uma questão pontual, o problema dos refugiados à beira das fronteiras inultrapassáveis, divididos pelo absurdo de uma linha no solo, um risco na paisagem. Mas nas suas entranhas é algo muito mais vasto que palpita. É a suspensão da acção, a impotência de mudar, a resignação ao cinzento. É a descrença na política como fonte de alteração das coisas, é o alheamento. Se o personagem central de O Passo Suspenso da Cegonha abandonou tudo é porque só pode acreditar numa coisa pequena, palpável, directa: a partilha franciscana do sofrimento com os deserdados. Tudo o mais colapsou.
Muito bonito é que o desespero tenha notações que remetem também para a memória do cinema. Que outra leitura para a presença de Marcello Mastroianni e de Jeanne Moreau, num casal estraçalhado pelo vazio, senão uma reminiscência que poderá conduzir - em fim de caminho - a A Noite de Antonioni? Reminiscência que passa pelo que esses dois actores foram neste século em que os vimos envelhecendo connosco, à medida que o cinema europeu perdia a fé em si mesmo e perdia a cumplicidade do público. Não são eles, também, náufragos de qualquer coisa que o andar dos dias afundou?
Angelopoulos é o primeiro cineasta a captar algo que anda por aí a corroer-nos. Fá-lo no seu jeito calmo, um pouco formal, hierático, varrendo a paisagem a voos de plano-sequência, mais os silêncios que as falas, mais o tempo que a acção. Estaremos dispostos a deixarmo-nos possuir por este ritmo contrário ao frenesim com que o cinema costuma, hoje, agitar-nos? Estaremos disponíveis para um discurso que é tudo menos exaltante? Se o estivermos - mas O Passo Suspenso da Cegonha caminha contra-a-corrente - por certo que não receberemos «entertainment» e fogo de artifício, evasão e divertimento. Só seremos confrontados com o que não queremos ver. Mas desde quando o cinema serve apenas para fugir de casa, do quotidiano e dos calados medos?"
Jorge Leitão Ramos, Expresso, 17/4/92
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