quarta-feira, 29 de abril de 2020

40 dias 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera: “O Cavalo de Turim”, de Béla Tarr

O Jornal do Fundão, os Encontros Cinematográficos, o Lucky Star – Cineclube de Braga, o My Two Thousand Movies e a Comuna associaram-se nestes tempos surreais e conturbados convidando quarenta personalidades, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos para escolherem um filme inserido no ciclo “40 dias, 40 filmes – Cinema em Tempos de Cólera”, partilhado em segurança nos ecrãs dos computadores de vossa casa através do blog My Two Thousand Movies. O vigésimo nono convidado é a montadora e professora Cristina Amaral, que escolheu O CAVALO DE TURIM de Béla Tarr. Sobre esta obra final do realizador Hungaro escreveu-no o texto abaixo.

Sinopse: Turim, 3 de Janeiro de 1889. O filósofo Friedrich Nietzsche sai de casa. Ali perto um camponês luta com a teimosia do seu cavalo, que se recusa a obedecer. O homem perde a paciência e começa a chicotear o animal. Nietzsche aproxima-se e tenta impedir a brutalidade dos golpes com o seu próprio corpo. Naquele momento perde os sentidos e é levado para casa onde permanece em silêncio por dois dias. A partir daquele trágico evento Nietzsche nunca mais recuperará a razão, ficando aos cuidados da sua mãe e irmãs até ao dia da sua morte, a 25 de Agosto de 1900. Partindo deste evento, o filme tenta recriar o percurso do camponês, da sua filha, do velho cavalo doente e a sua existência miserável.

Cristina Amaral sobre O Cavalo de Turim: 

«O CAVALO DE TURIM – Béla Tarr 

Um cinema raro, com escrita própria, com um tempo particular. Rigoroso, milimetricamente encenado. E, por todos esses motivos, muito arriscado, o que o faz escapar da monotonia e da previsão. 
Eu me lembro de quando assisti O CAVALO DE TURIM pela primeira vez. 
Deixou-me atordoada. É um filme que nos coloca frente a frente com um fim de mundo real, sombrio, muito próximo de nós – não mais o da ficção científica, não mais o dos blockbusters, ou dos disaster movies. 
Austero desde os créditos e o texto inicial. O preto e branco – presente em praticamente toda a sua filmografia (dos que conheço apenas o OUTSIDER é colorido) completa esse mundo onde não há espaço para dispersão. Aqui, a música é palavra, e o vento é música. 
Os longos planos-sequência revelam também uma montagem bela e inteligente, a partir de seus movimentos de câmera e enquadramentos primorosos. E cada corte, é uma cortina que se abre para esse mundo interiorizado, monossilábico, e que roda em círculos. E, também mérito dessa mise en scène, não soa repetitivo. 
“Mãe, eu sou um tolo.” 
Descrito em off, o pranto de Nietzsche, abraçado ao cavalo é, com certeza o ato mais humano dentro do filme – é o sofrimento da poesia diante da dureza e da estupidez. 
Além disso, apenas um fiapo de vida para nos apoiar, que é passagem dos ciganos pela casa, rápida, fugaz, mas transgressora. E agressiva também. O resto é uma morte que se deixa acontecer. 
O CAVALO DE TURIM é quase premonitório desses tempos que vivemos agora, em que estamos confinados, onde a doença e a morte são os perigos que nos rondam de perto, à espreita do lado de fora das nossas casas. 
É visionário, preciso, rigoroso. Traz dor, beleza, e a vida escapando com o vento inexorável. A natureza não nos perdoa. 
Um cinema que nos obriga a repensar o mundo, nossa forma de viver, e a buscar urgentemente uma nova humanidade.»

Amanhã, a escolha de Carlos Natálio.

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