O Jornal do Fundão, os Encontros Cinematográficos, o Lucky Star – Cineclube de Braga e o My Two Thousand Movies associaram-se nestes tempos surreais e conturbados convidando quarenta personalidades, entre cineastas, críticos, escritores, artistas ou cinéfilos para escolherem um filme inserido no ciclo “Cinema em Tempos de Cólera: 40 dias, 40 filmes”, partilhado em segurança nos ecrãs dos computadores de vossa casa através do blog My Two Thousand Movies. O vigésimo convidado é o escritor e tradutor Paulo Faria, que escolheu O Acossado de Jean-Luc Godard.
Sinopse: Ao lado de "Les 400 Coups", o outro grande "filme-símbolo'' da Nouvelle Vague, e também o primeiro sinal de que, como escreveu Serge Daney, este novo cinema não só não se contentava em sacudir o "antigo" como ameaçava, literalmente, destrui-lo. "À Bout de Souffle" é um dos filmes que melhor ilustra as consequências práticas e teóricas dos postulados da Nouvelle Vague, fazendo "explodir" o cinema para depois o reinventar. A primeira longa-metragem de Godard resultava, por si mesma, num nos momentos mais decisivos de toda a história do cinema. Texto: Cinemateca Portuguesa.
Sobre esta obra rompedora, Paulo Faria ofereceu-nos um generoso texto:
Não há amores infelizes
(O Acossado, de Jean-Luc Godard)
Paulo Faria
Numa entrevista dada em 1961, no ano seguinte à estreia de A Bout de Souffle (O Acossado), Jean-Paul Belmondo contou que, quando o abordou para fazerem este filme, Godard lhe passou para a mão três folhas pequenas, nas quais escrevera: «O fulano parte de Marselha, rouba um automóvel, quer ir novamente para a cama com a rapariga, mas ela não quer. No final, ele morre ou foge. Logo se vê.» Desde os primórdios da sua concepção, portanto, O Acossado foi um filme sob o signo da liberdade absoluta. Um filme que nasceu sem guião, sem final predefinido, ao sabor do génio de Godard. E vê-lo é para mim, sempre, uma experiência radical de liberdade. Durante os 87 minutos que O Acossado dura, sou livre. O filme acaba e regresso à minha condição de homem agrilhoado às minhas ansiedades, aos meus medos, às minhas inseguranças.
Reza a lenda (e, neste caso, a lenda coincide com a realidade) que, durante as cinco semanas que durou a rodagem, Godard se sentava todas as manhãs na sala dos fundos de um café parisiense e se punha a escrever os diálogos para as filmagens daquele dia. Ao fim de uma hora ou duas, ia ter com Belmondo e Jean Seberg, que estavam na esplanada, a matar o tempo depois do pequeno-almoço, e entregava-lhes os diálogos. Eles liam, davam as suas sugestões e, logo em seguida, as filmagens começavam. Para um ansioso incurável como eu, imaginar este método de trabalho tem qualquer coisa de assombroso, deixa-me siderado, cheio de um misto de admiração e inveja. Sei que, numa situação assim, seria incapaz de escrever uma linha de jeito, um diálogo como deve ser. Sei que a minha criatividade não resistiria a esta prova de fogo. O génio talvez seja apenas isto: a inteligência descontraída. Ao pequeno-almoço, Godard escrevia tranquilamente os diálogos do dia, pensando, provavelmente, «eles que esperem». Diálogos geniais, réplicas fulgurantes, tudo com aquele travo de espontaneidade sem ligeireza, de sagacidade cortante, mas sem arrogância.
Godard incentivava os actores a improvisarem, a darem ideias, a serem livres. Belmondo sentia-se como peixe na água neste ambiente caótico, Seberg nem por isso. Godard não tinha autorização para filmar em muitos locais onde o fez. Os exteriores foram rodados à socapa, à má-fila, ou então à descarada, a pisar o risco. O Acossado é um filme transgressivo até ao osso, livre até ao tutano. Nos Campos Elísios, no célebre diálogo em movimento entre Seberg e Belmondo («New York Herald Tribune!», apregoa ela de vez em quando, numa voz que me comove, porque sei como ela foi infeliz, como morreu tragicamente), Godard usou uma câmara oculta, montada num carrinho de três rodas coberto por um oleado escuro, onde haviam recortado um buraco para a lente. Dentro do carrinho, todo encolhido, o operador de câmara invisível recolhia as imagens, como um repórter de guerra. Quanto aos interiores, improvisou-se: o quarto da rapariga a quem o herói furta dinheiro, logo no início do filme, era o quarto da própria actriz, Liliane David, e os móveis, objectos e roupas que ali vemos eram os dela. Nas filmagens, usaram-se os automóveis dos amigos de Godard, o Simca do próprio Godard, o descapotável Triumph de dois lugares do marido de Seberg. E as personagens secundárias do filme foram, quase todas, interpretadas por amigos e colaboradores de Godard. Já para não falar dos figurantes, que o foram no verdadeiro sentido da palavra: meros transeuntes que apareceram no filme sem querer, desprevenidos, que se desviaram dos actores e ficaram a olhar para a câmara, espantados com o que se estava a passar. Tudo isto transparece no filme, mas, como que por magia, não há, no produto final, ar de improviso nem de coisa atabalhoada. O Acossado é a vida tal como ela é, caótica, trepidante, febril.
Michel Poiccard (Belmondo) e Patricia Franchini (Seberg) são o casal mais arrebatador da história do cinema. Eu sempre quis ser Michel Poiccard, mas sempre soube que nunca o seria. Ele é um malandro de coração puro, eu sou um obsessivo-compulsivo, incapaz de mandar os outros passear, incapaz de mandar o mundo passear. Mas, sempre que quero, durante 87 minutos, sento-me em frente ao ecrã e sou Michel Poiccard. Ele corre desalmadamente o filme inteiro, naquelas suas passadas largas e ligeiras, com aqueles seus movimentos elásticos e felinos, e, mesmo moribundo, alvejado a tiro nas costas, continua a correr, a correr sem parar. Acende cigarros uns nos outros, pergunta as horas a toda a gente, compra jornais atrás de jornais, faz telefonemas atrás de telefonemas. É um marginal bizarro, pouco convencional, que corrige o francês das namoradas, que prefere «os velhos» à juventude. Conta histórias fantasiosas sobre as suas origens, sobre o pai, sobre o avô, olha-se longamente ao espelho, mente, rouba. Não possui uma beleza convencional. Tem o nariz esborrachado, os lábios grossos, os olhos esbugalhados. Patricia, por seu lado, pergunta constantemente o significado das palavras e expressões francesas que não entende, faz um ar pensativo, magoado, parece hesitar. Há nela uma tristeza funda, sem remédio. Tem as mãos feias, de dedos curtos, mas um rosto de anjo, um sorriso arrebatador. Tira os sapatos brancos de salto alto e corre, mas o correr dela é ligeiro, os pés quase não lhe tocam no chão.
Também ela se vê inúmeras vezes ao espelho. Michel e Patricia parecem duvidar da própria existência, parecem precisar de se certificar de que não se eclipsaram, de que ainda estão ali. São duas crianças, crianças como eu nunca soube ser. Brincam com bonecos de peluche, macaquinhos e ursos, e, na lendária sequência no quarto do Hôtel de Suède, entregam-se a jogos pueris. Ele diz-lhe: «Vou contar até oito. Se não sorrires para mim, estrangulo-te», e, pouco depois, é ela quem lança um desafio: «Vou olhar-te nos olhos, e veremos quem é o primeiro a desviar o olhar.» Das duas vezes, é Patricia quem perde, quem fraqueja. Da primeira vez, quando ele conta muito devagar, como fazem os garotos, «sete, sete e meio, sete e três quartos», ela deixa-se vencer e sorri. Da segunda vez, é também ela quem cede e desvia os olhos, para logo espreitar o rosto dele através de um cartaz enrolado, como fazem as crianças para se esconder. Dir-se-ia que é ela a mais vulnerável, a mais pueril. No fim de contas, não é bem assim. No fim de contas, é Michel o idealista, que declara: «Dizem que não há amores felizes. É precisamente ao contrário. Não há amores infelizes.» Ao passo que Patricia, racional, fria, afirma: «Fiz-te mal para ter a certeza de que não te amo.»
Todo o filme se joga na tensão entre a infância (ou antes, a juventude como prolongamento da infância), despreocupada e transgressora, e a idade adulta, aborrecida e regrada. O Acossado é um filme para meninos sérios como eu, que foram adultos antes do tempo e que, depois, passam a vida a querer ser crianças. Em vão, claro. Michel e Patricia são crianças a tentar apreender o mundo. Debitam generalizações sobre «os franceses», «as mulheres», «os homens», «as suecas», «os americanos», como se tentassem organizar o caos que os rodeia. Como se tentassem criar à sua volta um mundo previsível, para não terem tanto medo.
Numa cena lindíssima, Patricia, ao atravessar a rua numa passadeira, marcada no empedrado escuro com duas fiadas paralelas de chapas metálicas redondas, saltita de chapa em chapa, como uma criança a cruzar um regato, de pedrinha em pedrinha. No final, traído por Patricia, que escolheu, afinal, a sensatez e a vida adulta, Michel morre, estendido no empedrado da rua, numa passadeira em tudo idêntica àquela, entre duas fiadas de chapinhas redondas. Caído de costas, solta a sua última baforada de fumo de tabaco. Segue-se uma troca de palavras, a última do filme, em que, sucessivamente, Michel, o agente da polícia e Patricia usam de novo a palavra que já tantas vezes foi declinada ao longo da película, em milhentos contextos: «dégueulasse» («nojento»). Patricia faz então o mesmo que ela e Michel tantas vezes fizeram ao longo do filme, isto é, fitar a objectiva e falar directamente comigo. E, por último, a palavra «Fim» surge no ecrã em letras garrafais, e eu torno a ser adulto e esquizofrénico, torno a viver a minha vida de todos os dias. Mas, durante 87 minutos, fui Michel Poiccard, namorei com Patricia Franchini. De noite, sonho que Godard mudou de ideias e decidiu optar pelo outro final, rabiscado nas folhas que mostrou a Belmondo. Sonho que Michel e Patricia fogem de carro para Roma, têm filhos e vivem felizes para sempre. Sonho que Michel Poiccard tem, afinal, razão: não há amores infelizes.
Paulo Faria
Março de 2020
Amanhã, a escolha de Mathilde Ferreira Neves.
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